Lembranças de garoto de aldeia
Não trato aqui de contar a minha vida em Cebola, minha terra, meu orgulho. E tento desviar-me o mais que me permitem estes desajeitados relatos do recurso a repreensíveis lamechices, embora, de todo, não estarei livre de, aqui e ali, inadvertidamente, cair nessa pecha. Apenas recordo emoções, traduzidas de lembranças inapagáveis, e é meu desejo, com o melhor que sei e posso, enquadrá-las com a História, amparo deste pequeno contributo na presunção de que assim, situando as coisas, melhor se compreenderá como era a existência na nossa terra, naquele pequenino universo, cotejada com o que se passava no mundo que a influenciava; como decorriam os dias nessa longínqua época, os meus e os de muitos, ou de quase todos, nascidos durante e entre guerras, na alternância de períodos de razoáveis alegrias e satisfações e de algumas tristezas e muitas carências.
No diz tu, digo eu, em alegres e inócuas brincadeiras e bem sacrificadas atividades, caldeados nas forjas do companheirismo, da amizade e entreajuda, fomos adquirindo o traquejo, a moral, o comportamento, que pela vida fora tanto nos haveriam de valer e orgulhar, e lá fomos crescendo e assim chegámos ao trabalho, a adultos, à tropa, e assomámos ao mundo que nos acolheu naturalmente, porque para isso já estávamos preparados por adequado e bem esforçado tirocínio.
Entretanto...
Os
adultos mais esclarecidos ou para aí voltados, liam o jornal ou ouviam quem o
lia ou iam para o estabelecimento do “Pedoa”, à Cruz da Rua, que, na loja de
vinhos e outros artigos, tinha a única telefonia pública. Ali se juntavam para ouvir o noticiário da uma, sempre à espera de
uma notícia que tivesse acabado com a maldita guerra e o abominável
Hitler, e os relatos de futebol aos domingos pelas quinze.
Era o tempo da subjetiva, ostentosa e aberrativa quão descabida alcunha dos violinos, que
só tocariam música para entreter português porquanto a Espanha, a Inglaterra, a
Áustria, a Argentina, apenas com castanholas, bifanas, valsas e tangos, brindavam-nos com oito, nove ou dez e depois até já se recusavam a fazer jogos, mesmo particulares, com grupos portugueses incluindo a seleção.
Havia
mais duas telefonias, os rádios, como se dizia, uma a dos Batistas,
à Eira, que generosamente, bem alto para o povo ouvir, nos deliciava com música
e programas da Emissora Nacional, dirigidos pelos locutores Pedro Moutinho,
Igrejas Caeiro e Jorge Alves, depois Alfredo Raposo, Artur Agostinho e outros.
O Fernando Pessa era mais para documentários cinematográficos. Colocavam no ar
música sinfónica, marchas, ranchos, fados e canções ligeiras, o Alberto
Ribeiro, a Amália, Luís Piçarra, Hermínia Silva, Francisco José…. Outra
telefonia era do meu padrinho, que esporadicamente também
facultava para se ouvir o relato de jogos mais importantes…. Havia, portanto,
três rádios que pareciam caixotes como as primeiras televisões de 66cm a preto
e branco. Poderia haver mais algum, não o nego, mas dele não havia sinais.
Viviam-se
então em Cebola creio que os melhores dias de sempre. Havia dinheiro, bastante
dinheiro e fartura de alimentos. As escolas abarrotavam. As instituições
concelhias e estaduais não previram nem conseguiram acompanhar a capacidade e génio reprodutivo dos
homens e mulheres do kilo e saltipilha. De modo que, a breve trecho, eram apenas duas salas e duas professoras para mais de centena e meia de
alunos, as sacrificadas D. Maria José Ventura (rapazes) e D. Alice Clotilde
Almeida (meninas). Não sei qual o motivo, mas a proporção era de dois rapazes
para uma rapariga, em campos separados, não fosse haver
por ali algum mexerico infantil! Mesmo no Inverno rigoroso,
dentro da escola não se dava pelo frio. Pudera, com cem crianças a respirar em
sala fechada!…
De
repente…
Mil
novecentos e quarenta e cinco, seis de agosto, bomba atómica sobre Hiroxima,
três dias depois, dia nove, outra bomba é lançada sobre Nagasaki. Resultado:
cento e oitenta mil civis morreram, muitos milhares de feridos e estropiados,
mais de duzentos mil ficaram direta e psicologicamente a sofrer de doenças para
o resto das suas vidas, e as gerações seguintes, indiretamente, de outras
enfermidades causadas pela contaminação dos produtos dos solos e subsolos
(águas e colheitas hortícolas), sobretudo as crianças e pessoas de saúde mais
frágil. Aparte as razões, de justificação grosseira, embora laboratorialmente
fabricada, prevalece o senso comum de que foi um ato gratuito, de má-fé,
porquanto a guerra já tinha acabado e não foram procurados alvos militares, mas
objetivamente cidades, centros de cidades – quanto mais ao centro melhor -
porque quantas mais mortes, maior seria o êxito da operação.
O mortífero sucesso foi logo difundido por todas as comunicações
possíveis, sobretudo as militares do agressor, para que aterrorizasse todo o mundo e rapidamente se visse, se soubesse e ficasse bem vincado quem era bom, quem era o melhor e quem mandava; tal como o previsto, colheu, pois o objetivo primeiro era
impressionar as potências beligerantes; tal como o quis e julgou, serviu os seus
interesses imediatos e futuros nos domínios político-económico e militar.
Foi o
ás de trunfo para jogar forte na partilha e dissimulada protetoria dos territórios conquistados e, acima
de tudo, o primeiro ato político para a liderança e influência futura nas
nações de todo o Globo. Com o sacrifício daqueles infelizes e propaganda a condizer, começara ali a
Guerra Fria – as lutas pelas terríficas armas atómicas e nucleares e pelas
tecnologias espaciais, enfim, a luta pelos domínios do poder, do prestígio e
das influências.
Já com
quase oito anos, lembro-me de, ao coberto (onde a rua bifurca para a Costa e
para os Cabecinhos), ouvir o meu pai, que todos os dias lia o “Século”, dizer
para a sua tertúlia – os suspeitos do costume: “Pronto! Aconteceu o pior…
lançaram a primeira bomba atómica. Arranjaram-na bonita. A guerra
acabou, mas daqui em diante outras guerras virão e bem piores que esta. Cada um
vai sempre querer mais e melhores armas destruidoras que o vizinho. Só o
respeito e principalmente o medo que tiverem uns pelos outros os poderá
parar”. E tinha razão. Lá longe, tocavam já tambores para novos
conflitos - a Coreia, o Vietname, Cuba… e por aí fora.
A partir daí, Cebola, “um cantinho do céu”, como lá soía dizer-se, começou
imediatamente a ter carências de toda a ordem, o dinheiro nada valia pois não
havia o que comprar. Os mais pobres ou de famílias mais numerosas,
passaram então das boas… De pouco valia algum pecúlio proveniente do ainda quente “kilo”.
O pão, o leite, a farinha, outros artigos de primeira necessidade, eram
racionados e adquiridos com senhas que eram distribuídas consoante o agregado
familiar. Lembro-me de quando, logo às cinco da manhã, com essas senhas, ir tomar
lugar numa bicha para a padaria da Eira, onde era fornecido apenas um quarto de
um “trigo” de um quilo (quilo?!) por dia e por pessoa… até se acabar. Os outros
iam à fornada da tarde se por acaso houvesse fornada…
Enquanto isso, dizia-se que Salazar velava e Cerejeira rezava para que não
tivéssemos guerra, embora o povo morresse à míngua. Não sei, nem percebia muito
do que se passava, mas a Salazar era atribuída uma frase política bem
reveladora: “Livro-vos da guerra, mas pelo sacrifício da fome”. E Cerejeira,
também nesse tempo, agradando ao seu amigo, compunha: “Abençoada a fome que faz
o povo humilde”.
Peço desculpa por invocar alguns nomes
que cito com todo o respeito e com a disposição de que se os próprios ou os
familiares com isso sentirem algum desconforto os retirarei imediatamente.
Constantino Braz Figueiredo
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