quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Ali (...) Venci

Ali, em Cebola, talvez que noutra aldeia qualquer; talvez que em todas as casas de famílias de numerosa prole – um capital social, um investimento audaz e arriscado, contudo de elevada rendibilidade como mais tarde se viria a revelar – mas escrevo só sobre a terra onde nasci, vivi, senti; poderia ter sido assim nos anos trinta, quarenta e mesmo cinquenta, antes da chegada da eletricidade e da emigração, pouco diferia de casa a casa, família a família o modus vivendi, por mais que se tentasse compor o ramalhete, e é daqui que hoje falo dali, de Cebola, do que vi, do que sei… Nada de profundo, menos ainda de dramático porque isso compete a cada um deduzir conforme a sua sensibilidade, e também pouco que nos obrigue a meditar porque já tudo se esbateu nas brumas do tempo; apenas a memória persiste e é aqui refletida e evocada por ser verdade, para que se saiba e para que conste como verdade.

Nos longos serões de inverno, toda a família convergia para a cozinha, local das refeições e central do aconchego familiar, refúgio e lenitivo para os rigores do frio. Ali, em volta das brasas ou do crepitar do fogo, alumiados pelo candeeiro a petróleo, uma candeia ou uma vela, olhando sem estranheza os caibros e paredes completamente farruscos, os chouriços crestados e fumados, até à instalação dessa miraculosa “chapa”, já na segunda metade do decénio de cinquenta, com tiragem para o exterior e um artesanal regulador colocado na chaminé, que faria inveja aos modernos recuperadores de calor das lareiras da nova burguesia, mas até que assim fosse, ou enquanto assim não era, dizia, por habituação precoce e persistente dos olhos e narinas, desconsideravam-se facilmente esses incómodos fumos ou os típicos cheiros; ali se via o ultimar da ceia, com a grande panela de ferro de barriga gorda encostada ao lume a ferver e a fumegar, inchada de couves, feijões e batatas (nos dias bons). Ali se contavam as sensações, contactos e experiências vividas por cada um durante todo o dia. O que tinham feito, por onde tinham andado, consoante os seus afazeres ou diversões.

Que aventuras! E que peripécias!

Uns, desde os seis aos doze treze anos, tinham a incumbência de angariar lenha pelas serras já quase carecas, porque naquele tempo como todos a procurassem a concorrência era enorme, atendendo a que mesmo no verão era um bem indispensável à vida quotidiana, e assim, torgas, gravetos, tocos, tanganhos e carquejas ficavam cada vez mais longe. Valia que, embora carregados, “ô piabaxo todos os santos ajudam”! Essa lenha era o único sustento energético de cada lar – combustível indispensável para o aquecimento e para cozinhar os alimentos. Era nos meses do estio que era procurada e acarretada em porção calculada como suficiente para se ultrapassar o inverno sem ser necessário ir a ela nos meses de mau tempo. Se a logística falhava porque o frio durasse mais que o previsto, a solução era ir buscar mais nem que chovessem picaretas. Outros, os mesmos aliás, por necessidade e imposição, acumulavam com a escola para aprendizagem de rudimentares abecedários, da tabuada elementar e aritmética avançada (“ler, escrever e contar”), superiormente ministrados por diligentes e sacrificados mestres-escola – catequistas do ensino, missionários da formação, de louvável paciência. E ainda aqueles, os adolescentes, já com idade e corpo para o “manifesto”, no emprego pré-mineiro, sempre tocados a chicote, na correia ou a varrer as ruas e a despejar e lavar nauseabundos caldeiros móveis, cheios de trampa, dos latrinários públicos de serventia sobretudo do pessoal que habitava os barracões da Panasqueira e Barroca Grande. Enquanto isso, as irmãs trabalhavam à jorna na lavoura, em vários afazeres pontuais ou sazonais, de empreitada ou de sol a sol, nos campos de proprietários de alguma relevância. Trabalho a que por costume eufemistico chamavam “ajuda”, e que consistia em carregar, à cabeça, em cima de uma peculiar rodilha, sem luvas ou qualquer outra proteção, cestos de esterco, que era mato húmido e já apodrecido com o excremento de animais, “a dar a dar”, dos estábulos, pocilgas e dos currais para espalhar e adubar os campos de cultivo, ou a cavar, semear, sachar, regar e colher maçarocas de milho, uvas e azeitonas. A despeito de ser um labor desgastante, mal pago, era executado com salutar e contagiante alegria pelas raparigas, apanágio de quem ainda sobe a encosta da vida… Cansadas, esgotadas, cantavam, e os patrões, com mal disfarçado beneplácito e beatífica compreensão, exultavam, rezavam – trabalho feito, obreiras contentes, consciência apaziguada, o céu à vista…

Ali, ao redor das brasas, cada um tinha o seu lugar e o seu banco, sem disputas, sob o olhar benevolente dos pais, quantas vezes já só da mãe, que sempre iam aconselhando deveres corretos e condutas exemplares – “nunca se rouba e não se acompanha alguém que o faça”; “defendei-vos, mas nunca se bate aos mais fracos”; “não se põem castanhas no lume sem as esbolar” – todos se sentiam felizes, aquietados, gozando o efémero bem-estar, repetindo histórias rotas de tanto usadas, mas sempre novas quando contadas por uma criança pela primeira vez. Ali se fortalecia a ideia de grupo, de família, se adquiria caráter, se aprendia a amar – ali… naquela insignificante partícula universal, naquele mísero átomo, pulsava contudo uma família com querer, com ambições, já que era assim a natureza, a sua natureza.

Mas, mais do que confortar o corpo, ali se aquecia e alimentava o espírito. Ali se hauria, de fontes cristalinas e insofismáveis, de total confiança – verdadeira e desinteressada –, a pedagogia recíproca, a educação comum, a ética comportamental. Lá fora a vida fora – era sempre – luta desgovernada, caótica, agitação ansiosa à cata de superação e de sentido persistentemente arredio e adiado, nunca se sabendo até quando porque não havia um fio condutor com rumo objetivo, nem vislumbre de luz no horizonte dos incipientes mas já claros pensamentos da moçada. Ainda se houvesse quem lhes explicasse…

Falavam-lhes de esperança…

Esperança, sim, deve acreditar-se sempre que o melhor nos espera, mas para isso é necessário algo específico, concreto, racional. Se ninguém lhes dizia, como poderiam eles saber que o futuro começa sempre amanhã, e que esse amanhã terá como fruto o quê e como hoje for preparado? Essas piedosas fés, essas crenças obscuras e estioladas, sofismas ilusórios com que a todo o momento os bombardeavam, pareciam-se a nevoeiro artificial, inventado, inútil e incompreensível, e não seriam elas que dariam confiança aos jovens espíritos sedentos de uma vida digna. Apenas lhes incutiam o receio, o terror; mais incertezas e maior inquietação.

Ali, unidos, sob a ternura, o enlevo, a preocupação e angústia da mãe, porque lhe faltara o companheiro que prometera ajudá-la a criar os filhos, mas a quem cedo demais forças ocultas – um pó leve, insinuante, penetrante, avassalador, que no início parecia inócuo – acabariam por assassinar, deixando-a só nessa luta titânica para o mais condignamente possível educar, alimentar e orientar, no bem, as suas crianças de modo a mais tarde orgulhar-se e poder dizer: venci!

Constantino Braz Figueiredo

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