sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O Novo Acordo Ortográfico


Se me derem verga e tempo, hei de fazer alguns cestos ainda, ou, dito doutra maneira, tenho como ato consciente que devo, que posso e hei de ainda escrever umas coisitas. Pode parecer, com esta idade, digamos, uma pretensão algo bizantina. Será? O problema é: quem as vai ler? No entanto, se o quero fazer, tenho de me apressar antes que seja despejado lá numa cova adrede aberta para a minha carcaça no cemitério de santa marta, onde inevitavelmente serei aterrado e servirei de pasto e hospedeiro a simpáticos mas vorazes bichinhos, que começarão por acariciar-me o corpo e a locupletar-se com os meus lombos e bíceps, em que os mais espertos e atrevidos se apressarão em correria desenfreada e desordenada, rasteirando, empurrando e atropelando, jogo sujo, jogo rasteiro (que falta ali não fará um árbitro, zeloso da disciplina, a apitar a plenos pulmões, a pôr ordem naquela anarquia, e a punir até à expulsão os mais exaltados e truculentos), para serem os primeiros a invadir os orifícios da boca, ouvidos, nariz, falo e ânus e por aí mais rapidamente atingirem as suculentas vísceras, cocegando-me mesmo no âmago as tripas, pâncreas, fígado e rins – que prazer hilariante e inaudito não será! –, a menos que opte por ser cremado para não dar chance ao meu querido e sempre amigo Lúcifer, que, tal como o conheço, é rapazinho para ir lá pessoalmente roubar o acepipe àquelas inefáveis criaturas e deixá-las a chuchar no dedo à espera da próxima vítima.



Um desses objetivos a que me propus, talvez o menos importante, é escrevinhar, como aliás o estou experimentando já, dentro das regras desse velho novo ou novo velho acordo ortográfico, ao qual, no que concerne ao facilitar, aderi prontamente e demonstro-o aqui, já que apenas basta aventar certos acentos, alguns hífenes, trocar maiúsculas por minúsculas e sincopar um bom punhado de consoantes mudas ou não articuladas, como o p e o c, em peremptório (que fica perentório), actual (atual), Agosto que dará agosto (mantendo, mesmo sem o A grande, o gosto, as festas e o calor) e anti-religiosa converter-se-á em antirreligiosa – mas nunca religiosa. Abaixo as beatas fingidas e hipócritas! Abaixo as beatas sérias e honestas! Abaixo a beatice… Não fumem, por favor!...

Embora facilmente se reconheça que foi o nosso país aquele que mais cedeu no acordo ortográfico estabelecido – o acordo dito possível –, se comparado com o gigante brasileiro que apenas aceitou poucas trocas e manteve, lá dentro, o status quo tanto na escrita como na fala, sou a favor. Que se lixem os velhos do restelo, sempre reativos a novidades e mudanças!... E nem dará assim tanto trabalho… Será apenas uma questão de mais atenção e maior cuidado até nos habituarmos. E pode ser que, com o tempo e com muita insistência e mais firmeza nas negociações, fiquemos de todo livres do brasilês, do palopês ou africanês e consigamos, mesmo que seja a longo prazo, a uniformidade, a universalidade deste rico idioma. Dando pouco, poderemos ser principescamente retribuídos.

É esperar para ver…

Isto, em boa verdade, só se aplicará à escrita, que será a referência paradigmática para a sustentabilidade do léxico, já que o português falado continuará a ser o galeguês, o brasuquês, pretuguês, mirandês, alentejanês, cebolês… Nunca o povo do Sobral terá a mesma pronúncia do povo de Cebola, nem em Ourondo se falará como em Casegas, e vice-versa. Não fora isso e os extraterrestres não mais comunicariam em americano, que é só o que sabem, coitados, e ainda havíamos de os ver, orgulhosos, a empunhar a gramática e o tradutor on line de marcianês-português, adotando a nossa como a sua língua oficial na Terra e a expressar-se corretamente pelo brilhante idioma de Camões.

Todavia, não suporto que, numa língua carregada de aglutinações e justaposições de duas ou mais palavras, não se aproveite a oportunidade para incluir nessa família mais algumas que em bicha esperam a sua oportunidade, e o povo, que já o faz de motu proprio, agradeceria que ao menos não lhe marcassem erro. Serve o exemplo destas duas que, afinal, são uma só: com certeza. Muita gente, incauta ou talvez não, escreve concerteza, e eu, confesso, sou a isso tentado. Congratulava-me que esta prática se generalizasse para que os lexicógrafos fossem mais generosos connosco. Por exemplo com a supressão do hífen, ora contemplada nalguns casos, como em hei de, quanto a mim, bem, porque nada adiantava, mas a saber a pouco porque poderiam aglutinar o verbo e a preposição. Se escrevêssemos: heide conseguir fazer isto ou aquilo – viria daí mal ao mundo?

Concordo com o Acordo, mas fico com a impressão de que, com outro estudo e com outra gente mais aberta às correntes jovens ir-se-ia muito mais longe. Na verdade, o que quero dizer é que o Acordo envelheceu antes mesmo de ser posto em prática. Partamos, então, aproveitando a embalagem, para o próximo que será, estou certo, muito mais profícuo do que este.

Assim, e tendo presente uma certa frustração aquando dos tristes acontecimentos que levaram à retirada pela administração dum simples escrito postado em “artigos de opinião”, que campeava na primeira página num rol a esmo das publicações mais recentes do cebola.net, retirado, quanto a mim sem razão e sem explicação plausível, talvez a mando do caciquismo que ali impera, possivelmente a troco de algumas subvenções ou contribuições, o que me levou, inchado de razão, a atirar as patas à parede e à consequente expulsão do site, pelo que aproveito, aqui e agora, para “repetir” o tal artigo, ambos os dois ou o saco e a baraça, com a aplicação das regras do Novo Acordo Ortográfico.


Ambos os dois ou o saco e a baraça foi escrito a brincar, e apenas com o intuito de brincar com as palavras. O título que logo me ocorreu foi: “Um brinco de palavras”. Porém, quando já o tinha batizado e pronto para entrar no prelo e aparecer com esse título no nosso site, lembrou-me de ir à net ver se já alguém se tinha lembrado desta expressão, e, acredite-se, levei uma joelhada no estômago! – eram aos milhares, até um blogue já existe com esse nome. Desapontado, escolhi então, desajeitadamente, aquele com que oficialmente foi publicado e que viria a redundar, depois, no POMO DA DISCÓRDIA.


E, em vez de um rico brinco, tomou então o nome de um proletário piercing usado pelos esquimós do tempo das cavernas de gelo, muito anterior aos seus modernos e invejáveis iglus.

***

AMBOS OS DOIS OU O SACO E A BARAÇA


Volátil!
Ansiosa!
Sorridente...
É a mensageira do futuro!
Uma rainha!
A imperatriz do pensamento e do espaço infinito.


Com a velocidade do relâmpago, desloca-se fluidamente por todos os lugares disponíveis e indisponíveis, desdenhando, qual divindade, de quaisquer obstáculos que lhe interponham, através da justiça, da lógica, da inteligência, pertinácia, trabalho e sedução. Desbrava lugares e povos inconcebíveis, ignorados ou desconhecidos; perspicaz e curiosa, penetra, sem pejo, em domínios senhoriais e palácios, desprezando e rindo da mais segura e disciplinada guarda real. Senta-se à mesa de reis e usufrui com os anfitriões e insignes convidados de luxuosos aposentos, benesses, iguarias, diversões sociais, caçadas, bailes, regabofes, bacanais e toda a espécie de voluptuosas orgias vulgarmente atribuídas a tais lugares. Do mesmo modo, entra em miserável, imundo e promíscuo antro de desviados, social e levianamente considerados a escória, o rebotalho. Mas aqui – alto lá! – é um campo onde pouco se detém, seja porque não gosta da deprimência, seja por imperativos relacionados com a sua habitual inconstância e irreverência mais propensos e vocacionados para nascente.


Não tem problemas de consciência, é inculpável, mas fica terrivelmente perturbada e desconfortável com quem mantém ou dá fôlego à indigência e aos desvalidos, aos marginais e a toda a cáfila de parasitas que se move em torno de quem trabalha e honestamente faz pela vida. A Sociedade que os produziu, os políticos, os governantes de todos os países de todo o planeta, numa atitude corajosa, uniforme e concertada, que faça algo a montante e a longo prazo para que o mal seja cerceado, em vez de financiar estéreis conflitos só para mostrar quem tem o poder e as armas mais destruidoras, e, principalmente, para submeter os outros povos à subserviência económica.
Com esse propósito, preconiza ações convergentes para total erradicação da pobreza que nunca será suprida nem minorada (apenas alimentada) com as habituais mezinhas caridosas, esporádicas ou pontuais, aparente ou realmente simpáticas mas não isentas de beatífica hipocrisia, quantas vezes para justificar profissões bem remuneradas. Um dia far-se-á a conta ao influxo financeiro absorvido pelos agentes do bem em detrimento dos infelizes destinatários.
Sabe como agir, mas considera que é uma área que não lhe pertence porque seriam necessários grandes investimentos, e além de muita dureza, alguma crueldade politica e socialmente incorreta… muitas linhas e anzóis, e a recuperação de forjas, ferreiros e ferradores para dar cabal cobertura ao reflorescimento das atividades necessitadas de pás, enxadas, ancinhos, roçadouras, picaretas e… ferraduras…
Mas não ficaria escandalizada com a substituição daquelas históricas e eficazes ferramentas, de romântica saudade, por tecnologia de ponta, consubstanciada em segadeiras, debulhadoras, tratores, pás mecânicas, assim como exaustiva implementação de oficinas e laboratórios de investigação, com mestres de reconhecido e elevado gabarito em todos os ramos da ciência, e equipados de aparelhagem moderna e técnicos informáticos, bem armados de magalhães, gamas, colombos e outros cabrais.


Versátil,
temperamental,
impulsiva,

se o deseja veste um cariz vulgar, civilizado, alegre ou sentimental, mas sempre prático e objetivo, e sem perder tempo à espera de permissão invade os mais íntimos e secretos esconderijos da sua paixão. Sensual, dispõe à vontade e sacia-se dos comuns desejos com a cupidez dos que em silêncio sofrem e amam, porque, imbuída do espírito destemido que lhe é peculiar, vai, ela própria, ao lugar do endereço da carta da popular trova que compôs e que nunca lhe mereceu enviar:

"Vai-te carta, vai-te carta,
Entra na primeira sala.
Se não houver quem te leia,
Abre-te carta… e fala!


Incansável.
Subtil.
Inteligente.
Sedutora.
Fatal!
Mas é, mais que tudo, razão.

É ela que, através do seu imensurável poder criativo, faz evoluir todo o universo do conhecimento.


É imparável, avassaladora e acolhe e acode a todos os ramos das ciências e das artes. Quase de graça, trabalha incansavelmente para tornar os povos mais prósperos e desenvolve e tira partido de todos os recursos da natureza para melhorar o progresso, o nível de vida, a saúde, a longevidade.


Em alguns casos parece carente, vaidosa, ciumenta, insaciável, e então pode tornar-se perigosa com as suas prodigiosas invenções, contanto que sejam levadas para sendas tortuosas e postas à disposição de déspotas de ambição desmedida ou escroques do mais baixo jaez.


Ela é – revelemos – a Imaginação, a sabedoria, mas não seria de todo feliz se não fosse complementada com o apêndice de todas as horas, de toda a vida, desde o nadir ao apogeu sideral da humanidade – o Sonho!


Mas, Sonhar…


…O sonho, embora indevida e vulgarmente confundido com a imaginação, é totalmente diferente desta. Pode, no entanto, com algum esforço, dizer-se que é a consciência, a moderação, um freio à conduta por vezes atrabiliária da sua fogosa companheira .


A imaginação é criação, esforço, aventura, realização; o sonho é fantasia, devaneio, aspiração, utopia, ilusão – almeja sem construir, deseja sem realizar. Ele é contemplativo, idealista, romântico, lírico e ingénuo; ela é a vontade perseverante, o projeto, a obra. Ele é visionário, indolente, passivo e subjetivo; ela é direta, pragmática, arquiteta e objetiva. Mas um não viverá sem o outro. São inerentes e estão ligados pela essência e intrinsecamente associados em simbiose perfeita e… eterna!


Para nosso bem, felizmente, todos nós, de per si, estamos equipados com essa prodigiosa ambivalência. Aproveitemo-la então e utilizemo-la da melhor maneira e gozemo-la generosa e abundantemente. A despeito da desolação causada pela inesperada derrocada de instituições que até aqui julgávamos intocáveis e indestrutíveis, da propaganda de descrédito e de desânimo que de lés a lés varre o Globo, sonhemos e imaginemos até fartar, mas, sobretudo, doseando o esforço… vinquemos o nosso inabalável querer, a nossa esperança e… “pensemos positivo”!...


Constantino Braz Figueiredo