sábado, 23 de maio de 2009

UM GRILO NO ACERVO



 UM GRILO NO ACERVO

O dia estivera quente – um sábado dos mais quentes de sempre, lembravam os mais velhos. Levantei-me às cinco da manhã para pegar ao trabalho às sete, na correia, a “torradeira de zinco” da Barroca Grande. Mal me livrei daquilo, às três da tarde, assim que tocou o apito para a rendição de turnos, depressa me dirigi em direção à minha terra, a velha Cebola… para casa o caminho é sempre a direito! Mas estava calor, mesmo muito calor… então naquela vertente que dá para o rebordão até se atingir a selada cova, onde se transpõe a serra, parecia-me comer lume!... Era aonde só as alegres e sonhadoras cigarras gozavam a efémera vida, nas estevas e carrascos, cantando como se estivessem no Scala de Milão!...

Chegado ao “doce lar”, logo peguei numa toalha e alguma roupa lavada e fui refrescar-me, e ao mesmo tempo cuidar da higiene que era o que o corpo necessitava e mais me pedia – uma barrela!

Tomei as levadas da ar-chã (?), e subi o barroco da fassoute (?) em busca das suas entranhas. Olhei o pequeno desfiladeiro e os barrancos que ladeavam este arcano lugar, que descobri ainda miúdo aquando das minhas andanças por fragas e matagais, barrocos e barroquitos, ribeiros e regatos, onde primeiro olhei o mundo sem o ver. Procurava cogumelos e armava aboizes para apanhar a passarada, mormente tordos e melros que tivessem por guloseima roliças e suculentas minhocas ou apetitosas azeitonas pretas, luzidias e bem madurinhas. Assim, ali, emparedado pelas ribanceiras que quase se tocavam e tão íngremes que impediam qualquer aproximação às suas bermas, fiquei protegido de qualquer olhar indiscreto.

Banho é banho e requer privacidade…

O generoso fio de água fresca que caía da pequena cascata, por caleiro hábil e antecipadamente engendrado com folhas de um secular e imperial castanheiro que, ali perto, dominava majestaticamente a entrada daquele labirinto, ao bater-me no corpo desnudo lembrava-me um propalado líquido expressamente deificado e que serviria de lenitivo e purgante para todos os males espirituais, mas que, neste caso, além de celestial tonificante regenerador, servia também para expurgar a sujidade acumulada durante toda a semana. De torneira sempre aberta, incessantemente me refrescava enquanto um naco de sabão azul-e-branco, o tal “macaco” que tirava as côdeas da roupa, percorria-me literalmente.

Cumprida essa grande necessidade, tornei ao povoado e ainda passei por casa para prover o estômago de algo substancial, de que bem carecido estava. Havia leite de cabra e broa… miguei a broa e comi à colherada … nada mau! Sai, e olhando para a avesseira reparei que a sombra já ia a meia canada, o que significava que seriam seis, seis e meia da tarde. Haveria ainda pelo menos três horas até ao crepúsculo. Eram as horas melhores de vivência na aldeia. Ainda hoje me lembram as belas tardes longas e amenas… Cedo o sol começava a esconder-se ao “seixo”, por cima dos lameiros, por cima das quebradas, deixando as casas à sombra, mas com plena claridade diurna durante algumas horas. Se de alguma coisa, cá longe, se sente nostalgia é daquelas tardes propícias para passeios e para convívios, vendo a sombra, vagarosa, a subir, palmo a palmo, a encosta da avesseira.

Passei pela eira, pelo clube, fui ao “povo”, e, uma vez encontrados alguns amigos que procurava, dirigimo-nos, conversando, pelo incontornável caminho da capela, onde, chegados, nos sentamos nas escadas do pedestal. Cavaqueando, comentamos tudo o que fora notícia lá na terra, e não só…! Quase sem darmos por isso, a sombra tomara já o cume do cabeço carvalheiro; na Panasqueira acendiam-se as luzes públicas; lá longe, no horizonte, para as bandas da raia de Espanha, divisava-se já por cima dos montes uma cinta escura pronunciando a noite; no céu, apareciam algumas estrelas; de frente para o povoado ainda se podiam enxergar as chaminés com o característico fumo do lume aceso para preparação do caldo e dos feijões.

Ali estivemos até ao toque das trindades. “O doce toque das trindades” … Havia naquele ritual qualquer coisa de místico e romântico. As pessoas paravam, e, enquanto durasse o tanger do sino, ali ficavam na posição em que se encontrassem logo à primeira badalada – estáticas, concentradas, talvez rezando…

Entretanto, já tinha escurecido por completo. Era uma daquelas noites em que da lua não havia conhecimento – nem cheia, nem metades, nem quartos -  era uma noite de lua nada! Daí que as estrelas tivessem um brilho inusitado.

O Sol – que nos perdoe Galileu –, cumprindo a asserção de Fernando Pessoa, de que “a noite é a nossa dádiva de amor aos do outro lado do Planeta”, continuava a sua marcha para outras terras – estrepôs a serra das Meãs, esgueirou-se por Coimbra, saiu pela Figueira da Foz, entrou no Atlântico…de fuso a fuso, meridiano em meridiano, foi dar luz e calor aos pescadores da Terra Nova, beijar os states e colher uma fresquinha folha de plátano um pouco a norte dos Grandes Lagos. Entraria no Pacífico para saudar os corais e seus atóis; na terra dos nipónicos espreitará e, se apanhar distraído o samurai, entregará a folha a uma linda gueixa – “toma lá, com os cumprimentos da múmia das arcadas”. Apressa-se na China para não estragar os arrozais aos simpáticos sinos, mas cuidará de saber como vão monges, budistas e confucionistas; vai admirar a Índia e dizer aos nirvanistas que sim senhor, que fazem bem em professar e praticar o Bem, em serem íntegros e calmos, mas que não temam o desejo…desejar é querer, é viver, lutar e amar.

Chegando-se mais para ocidente verá terras da admirável Pérsia de xás, rajás e marajás carregados de ouro e marfim; nos guerreiros otomanos encontrará grandes vizires, sultões e sultanas, haréns, odaliscas e favoritas, favores, desfavores e intrigas palacianas. Mais a sul terá de aceitar e admirar o domínio dos grandes comerciantes xeques, califas e emires.

Já no mediterrâneo terá saudades das grandes civilizações da antiga Hélade e dos seus mais ilustres helenos – Sócrates e Aristóteles, Arquimedes, Pitágoras e Euclides… e de Péricles, talvez o maior de todos, comummente reconhecido como o pai da democracia. Decerto que não esquecerá as grandes obras dos faraós, os senhores do Nilo, e a fecundidade de Ísis e Osíris.

Depressa ultrapassará a Europa que o reconhecerá, saudando-o, e vem contente por voltar a Portugal, a Fernando Pessoa que o “deu” por amor àqueles de lá, e vem ansioso porque simpatiza com as nossas gentes. Mas Sol, poderoso Sol, não te jactes de teres visto admiráveis coisas que nós não vimos; por cá, às escuras por culpa tua ou do Fernando, também se passaram das boas … tais que quase se cora só de nelas pensar…!

Voltamos ao povoado.

Depois de deixar os amigos, passei de novo pelo clube… jogava-se à sueca, ao pingue-pongue, ao dominó. Falava-se, convivia-se. Pouca mora porque me pareceu que, à eira, haveria espetáculo do melhor. Ainda à tapada, já ouvia o melancólico e dolente planger de uma guitarra no seu habitual, inalterável e inconfundível três-e-quinhentos-quatmirrés. Haveria baile? Só cantigas? Talvez uma desgarrada… Com efeito, nas fraguitas, frente à porta térrea do ti Zé Benjamim, voltados para o tronco, encontravam-se já o guitarrista e uns tantos rapazes, parecendo esperar mais público ou mais coragem para o início.

Olhei em redor e vi o que poderia ver, pressentindo mais do que via, mas habitualmente toda a gente reconhecia toda a gente só pelos vultos, silhuetas, pelo falar, pelo odor …até pelo respirar. Assim, não tive qualquer dificuldade para saber quem se encontrava. Não demorou, contudo, que o lugar fosse bem iluminado por dois gasómetros dos utilizados pelos mineiros, a combustível de carbureto.

Era rapaziada ainda nova.

A despeito da ancestral tristeza enraizada por séculos de opressão e precariedades; do temor não isento de ameaças de penas eternas servidas por dogmas concetuais, subtis e ambíguos, mas de todo incompreensíveis e inexplicáveis, que, metodicamente, com precisão cirúrgica, logo  e antes mesmo do entendimento lhes foram inoculados por gerações vacilantes e reverentes sob intolerantes agentes obscurantistas; e ainda que exauridos pela árdua semana de trabalho dentro das minas, por ora abstraídos de todos os fantasmas, esquecidas as dificuldades, ali estavam, soltos e emulados e prontos e empolgados para o seu lúdico serão, onde, nesse instante, apenas prevalecia o escopo que os animava – a alegria suprema de divertir divertindo-se, que era, essa sim, afinal, a sua verdadeira natureza.

Neste entrementes ouvi o cricri de um bucólico grilo no acervo de lenha para o forno do pão de trigo – um montão de chamiços, carquejas, monhiços, giestas, moitas, estevas, carrascos, queirogas e alguma rama seca de pinheiro, bem encostado ao muro que dá para os quintais…cricri, cricri…era o grilo que abria as hostilidades!

Fosse por isso ou não, ouviu-se então o Zé Benjamim dizer: “Bom… começo eu e segue a eito pela direita”: 

Salvo quem está a chegar

Saúdo os que já cá estão

Atiro com a boina ao ar

Vai cair na Malhada Chão 

 Resposta: 

Caía na Malhada Chão

Se fosse boina de primeira

Mas parece um chapelão

E não passou da Cerdeira

Os da Malhada Chã não os levaram a mal…

Venham juntar-se a nós

Não se ponham na retranca

Vamos levantar a voz

Pra se ouvir na Covanca

 

Depois entraram em escaramuças e picardias brejeiras, de que não consegue lembrar-se. Seguidamente, houve quem estendesse a contenda para o genuíno vernáculo de Cebola:

Cantas mal não cantas bem

E pensas que és o primeiro

Mas pior seria se fosse

O amigo Xico Moleiro 

Quem tal cantou, fê-lo apenas para trazer o Xico à colação, pois sabia ser um elemento imprescindível nestes eventos, dado que era, reconhecidamente, um repentista nato, sempre espontâneo nas respostas em qualquer situação, e então ouviu:

Daí só espero asnera

Desse canal arranhado

            Parece uma tripa caguera

Cheia de vento atrasado 

O guitarrista, raramente cantava, mas este não se conteve: 

Comigo já tinhas emprego

E não te ficavas a rir

Pagava-te pra de joelhos

Veres o meu vento a sair

Havia muita gente a assistir, de ambos os sexos e de várias idades, e Baco, sempre pronto e à espreita de qualquer motivo para se insinuar, apareceu, como gosta, dissimulado em dois grandes jarros de vinho trazidos por duas belas moçoilas.  Então, o Zé Benjamim, aproveitando para acalmar as hostes e olhando para os jarros, atirou:

Com aquilo é que eu vos calo

Por agora está tudo dito

Vamos fazer intervalo

Vamos beber um copito

Do campanário chegou o som das onze badaladas. Amanhã era o dia do Senhor e do senhor padre Artur para lhes sarar as mazelas espirituais; a mim esperava-me outro senhor: fora marcado um treino para as oito, na portela, a que não faltaria. Era preciso olear a máquina.... Chegara a hora de ir descansar.

Aproveitando a pausa das cantigas, retirei-me mais para o meio da eira, e pude então observar melhor todo o campo circunstancial, e vi a ti Rosa que, de candeia na mão, na varanda, chamava o Ramiro para cear; nas suas escadas de pedra, junto à porta de entrada, sentava-se o ti Zé Benjamim (pai), puxando da latita para aspirar mais uma pitada de rapé, talvez a derradeira do dia; ainda se ouvia a fonte, ao centro do largo, despejando o seu caudal para um regador que um ou uma retardatária enchia; a grande mimosa, junto ao chafariz, na quietude dos seus frondosos ramos, observava silenciosa; cães latiam no outeiro; nos seus estábulos, à tapada, bufavam vacas e bois, orneavam jumentos e mulas; nas pocilgas, grunhiam porcos esperando a vianda; a essa hora, ainda os galos estavam em silêncio  limitando-se a manter as galinhas na ordem.

Cumpria-se também a Ordem Natural do Universo – e, olhando na direção do vale da colher, por cima do cabeceiro, vi a triste Ursa Menor, que, pelo rabo, era uma eterna cativa da Estrela Polar, incapaz de se soltar da pequena órbita, mais parecendo um burro, com talas, à volta do poço…; ao centro, mesmo em cima da ponte, podia ver-se, cintilando alegremente, a Ursa Maior; lá para os lados do cabeço dos Cambões, surgia já o Sete-Estrelo, as Plêiades, as sete irmãs, filhas de Atlas, fugidas do caçador Oríon, que caçava mal pois que só chegaria pouco antes do nascer do Sol. Olhei mais uma vez a penumbra das serras, que só adivinhava pelo ápice e recorte, orlado pelo contraste com a claridade do céu estrelado.

E o grilo, sem sono, aproveitava o ligeiro descanso dos artistas, para saciar, também ele, a sua fome exibicionista: cricri, cricri, cricri!

Fui para casa. Pela rua acima até à costa, nos sítios do costume, ainda se conversava animadamente…. Até amanhã… boa noite, ia salvando quem estava.

Comi um caldito e fui deitar-me. Ainda peguei no livro que tinha à cabeceira – o Monte dos Vendavais, da linda Emily, a irmã do meio das três escritoras da família Bronté. Um livro da inevitável estante do Tonh’Abílio, meu habitual fornecedor. Não podendo comprá-los, recorria à boa vontade de amigos que os tivessem. Retribuía como podia, com reconhecimento e amizade e – imagine-se! – com o mundo aventuras, uma publicação semanal da qual era assinante e que nesse tempo fazia furor, e que emprestava a quem gostasse de histórias aos quadradinhos…

Só que, agora, com o livro encostado ao peito, não conseguia avançar uma linha. Assaltavam-me as sensações vividas durante esse longo dia, e, de todas, por absurdo que pareça, era o cantar do simpático grilo que mais me preenchia o pensamento.

Ele há coisas…!

Não deixava de ser curioso ter arranjado tal empatia com esse bichinho. Sabia que, mal abrissem o forno, ele iria, inevitavelmente, ser queimado e ajudar a cozer-nos o pão. Deu-me ganas de ir lá, procurá-lo e escondê-lo ou levá-lo para longe dali, ou de não comer o pão dessa fornada…, mas logo descobri que no meu subconsciente apenas se estabelecia um paralelo, uma analogia: enquanto o grilo iria do montão de lenha para o forno, eu já estava na torradeira da correia, onde, lenta e inexoravelmente, era torrificado e do qual não via como sair, pensasse o que pensasse! Ao menos se o grilo me aconselhasse…! Mas estava já bastante cansado para destrinçar as variáveis desta equação. Arrumei o livro, apaguei a luz do candeeiro a petróleo, espichei-me, e, enquanto na minha cabeça o grilo ainda continuava o seu alegre cricrilar…cricri, cricri, cricri…, fui “tomado” por Morfe

Constantino Braz Figueiredo


 

        


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