Qual quê! … Além de não tirar os olhos de mim, à distância
de uns trinta ou quarenta metros, assestando o seu inseparável arrocho aos meus
olhos, quase furioso, berrou de novo: Salazar! Ó Salazar! … Estuga as patas!
Assim mesmo! E quando já me conformava com tão despropositada quão notável
alcunha, ele, ao perceber um misto de estupefação, ironia e mal disfarçado
gáudio nos semblantes da outra canalhada, meus companheiros de infortúnio, para que não restassem dúvidas e para
que constasse, avançou corredor fora com modos de quem vai fazer alguma.
Chegado a mim, desferiu duas valentes arrochadas nas minhas nalgas,
vociferando com superior exuberância: “És tu! Tu é que és o Salazar”!!!!...
Com apenas treze anos ia lá agora discutir com quem tanto
sabia…! Para mais armado daquela maneira!... Só seremos heróis se, tendo
consciência do perigo e por cuidada avaliação o desconsiderarmos, o atacarmos e
o vencermos. Se assim não for, o mais que seremos é estúpidos, embora por vezes
protegidos pela sorte! Neste caso, nem sorte nem ataque nem contra-ataque, era
comer e calar!
Mais tarde, aproveitando uns minutos que sobraram do frugal almoço, e vendo pelo ar do vigilante “redolho” que o momento era propício, enchi-me de coragem e, com a maior humildade que consegui, perguntei-lhe: “Ó ti Joaquim, por que me chama Salazar?” Para meu espanto, e meu bem, não se escandalizou, e explicou-me então que o meu falecido pai é que era o Salazar, porque era um homem que sabia como ele e discursava como ele. “Dava gosto ouvi-lo! E ninguém levava preso aquele sacana!” … Poças! Que elogio! Mas seria bem melhor se não me fosse custando umas boas arrochadas!
Assim, aos poucos, ia compreendendo por que
alguma gente mais velha tanto gostava de “molhar a sopa”. Mas o “redolho”,
caindo em si, e admirado por ter sido tão condescendente em dois ou três
minutos de fraqueza sentimental, logo tentou emendar o lapso, e batendo com o
pau na lata protetora de uma roda cremalheira, gritou: “mas isso era o teu
pai; tu não vales nada… Fora daqui, vai trabalhar e depressa senão levas com o
arrocho.”
Pois é, mas ao meu pai nunca ouvira contar o que quer que fosse
acerca dos seus discursos e das suas lutas; mesmo a minha mãe, da família Gil
do ramo do Ourondo, quando o desposou já isso tinha acabado e ele já era então
o Geral – o capataz dos capatazes; cargo aliás que manteve por
pouco tempo (três anos), pois quando eu nasci já o não era, porque a politica
tinha mudado e a companhia parece que tinha feito as pazes com a “Situação” e
com a Igreja e o meu pai, diziam, era um comunista.
Talvez não fosse, pelo menos não estava filiado em qualquer
organização política, e quando alguém se atrevia a chamar-lhe isso logo se
apressava a responder que não, porque não tinha categoria nem classe para o
merecer… Deveria ser somente coisa da sua personalidade e consciência de
classe, porquanto, não raro, ainda se ouvia dizer: “Trabalhador que se preze,
enquanto tal, deve ser sempre contra o chefe, contra o patrão e contra o
governo”, explicando, logo de seguida, que a palavra contra deveria
ser entendida no sentido exclusivo de em oposição ao…
Os últimos cinco ou seis anos de vida passou-os já doente,
completamente rebentado pela sílica adquirida atrás de um martelo
pneumático. Triste, muito triste e sem vontade de falar de quase nada. A
única coisa de que o ouvi gabar-se, com certo orgulho, ao coberto, para os
vizinhos amigos, foi de que fora ele quem fizera a minita da
selada, à fontanheira, que alimenta o tornadouro com um caudal que nem os
ribeiros. A sua biblioteca era uma gaveta bem fechada com apenas três livros: O
Capital, de Karl Marx, O Imperialismo, de Lenine e – pasme-se! – O Homem Que
Ri, de Vítor Hugo. O que fazia ali este livro? Li-o (ao que me lembro era sobre
saltimbancos) e da sua leitura não encontrei coisa que se
identificasse com a doutrina que era atribuída ao Zé Maria. Quanto aos
outros, que nunca li, minha mãe deve tê-los queimado com medo da “tosse
convulsa” salazarista e cerejeirista.
Como se infere do exposto, querer contar coisas que não
vivi, de uma pessoa tão íntima e de quem nunca as ouvi, torna-se um pouco
frustrante. Mesmo assim, já que os seus conterrâneos apenas davam crédito e
valor a quem tinha e dizia ámen e ele apenas
tinha o que era ou o que tinha sido e a
palavra ámen não era do seu vocabulário, encontrei, por lá,
mas de outras terras, alguém que sabia algumas coisas. Além disso, há testemunhos
escritos por pessoas insuspeitas que dão bem conta da sua inigualável luta e
contributo para o progresso e bem-estar da vida mineira. Por exemplo, com a
devida vénia aos autores, embora com uma certa crítica por não terem recolhido os
elementos no cerne, transcrevo algumas passagens do livro “A Guerra da Mina”,
de Fernando Paulouro Neves e Daniel Reis:
Página 13
“Procurámos ouvir da boca dos mineiros mais antigos e dos
mais jovens, quantas vezes seus filhos, algo dessa história de lutas, desde o
dia em que um mineiro de nome Zé Maria, chamuscado nas escaramuças que
precederam a Guerra Civil de Espanha, subiu a uma lapa e arengou aos mineiros
levando-os a arrancar para a jorna de oito horas, até às lutas sindicais…”
Página 46
“António Lopes, do Sobral de S. Miguel, a poucos quilómetros da Panasqueira. Chegou à Mina no dia célebre em que “um gajo de S. Jorge chamado Zé Maria” levou os mineiros à greve pela jorna de oito horas.” (…).
Página 48
– (…) “Trabalhava-se dez horas por dia. Depois veio um gajo de
S. Jorge, chamavam-no Zé Maria. Veio de Espanha. Ele já sabia daquilo do
sindicato. Era sócio e tal. Andou lá a trabalhar muito tempo. Depois chegou aí
e viu que isto ainda era as dez horas. (…) foi mesmo no dia em que vim pedir
trabalho que eles andavam com a greve. O gajo convidou o pessoal para a
revolta. Fez um discurso ali na Galeria Cinco, outro no Escritório. Estava cá o
Regimento 21 da Covilhã e veio a Infantaria de Castelo Branco. Eram dois
Regimentos só para ameaçar o pessoal.
O Diretor trazia os ordenados atrasados seis meses. A
gente quando começava a trabalhar andava seis meses sem receber e só ao sétimo
é que recebia o primeiro. (…) Pois esse tal Zé Maria entrou aqui. Falava como
um polícia, o gajo. Olhe que ninguém o prendeu, não. Fez o discurso ali na
Galeria, fez outro nos Cambões. Subiu para cima de uma fraga, estava ali tudo
cheio de gente, tropa e tudo. Tudo junto a ouvi-lo. (…) Depois dali foi para a
Córrega Seca, fez a mesma coisa. A tropa foi-se embora e o Diretor, à semana
seguinte, pagou logo três meses. Na outra semana pagou dois. (…) Sabe o que é
que fizeram a esse tal Zé Maria? Puseram-no de capataz-geral.”
Pelo que testemunhas oculares me contaram, um certo dia,
acho que no discurso da Córrega Seca, tinham improvisado um palanque destinado
aos promotores e mentores da greve; todos de pé – não havia direito ao luxo de
mesas e cadeiras, microfones e altifalantes; era puxar pelos pulmões que, nesse
tempo, felizmente, ainda davam para tal….
Abria ele então o seu discurso, gritando à multidão: –
“Mineiros!... Povo!... Militares!... Senhores Diretores”... eis senão quando,
do seu lado, de supetão, surgiu um companheiro da direção da luta e, em tom de
voz e aspeto sério e convincente, diz: “Alto! Alto! Interrompo… Os homens tiram
o chapéu e as mulheres ajoelham, e podem acreditar que tudo o que o Zé Maria
disser é verdade e nada mais que a verdade. Podes continuar”. Perpassou então
pelo auditório um zombeteiro murmúrio, um sorriso de cumplicidade e de
tolerante compreensão pela brincadeira que lhe foi proposta, porque,
realmente, de brincadeira não passava e apenas serviu para descontrair os menos
afoitos…
… e descontraída e afoitamente continuou o tal Zé Maria
… e de que maneira!...
O tal Zé Maria (José Maria Figueiredo) nasceu em Cebola;
fora para as Astúrias onde trabalhou em minas durante alguns meses, mas vários
anos antes da Guerra Civil de Espanha. Faleceu a 2 de Março de 1949, no
hospital da Covilhã. Tinha cinquenta e cinco anos. Deixava onze filhos todos
nascidos e criados em Cebola… eu sou o sétimo.
Constantino Braz Figueiredo
Q
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