quinta-feira, 28 de maio de 2009

O PIONEIRO

O PIONEIRO



Foi ele…

Naquele dia de primavera alta, ainda lusco-fusco, antes do fogoso sol despontar por detrás da encosta maciça que sempre nos escondeu a Covilhã (talvez a querer dizer-nos quão distante e desconexa com as nossas realidades estava a concelhia), o que por calculadas contas de muitos contares só aconteceria mais ou menos no instante em que transpusesse o ligeiro planalto da Selada Cova, onde a “minha” vereda Cebola - avesseira - fraga alta - vale d’ermida cruza a estrada Minas-Portela de Unhais, começando depois o declive do rebordão para os lados da Barroca Grande e freguesia de S Francisco de Assis, subia, sem desânimo, passo certo, que nessa longínqua data, diga-se, pouco custava. Com a respiração desforçada e ritmo constante ia olhando,  vendo, desfrutando… e assegurando-me de que não era ouvido, pensava…

Foi ele…

Com o céu ainda salpicado de pontos cintilantes que, consoante o seu valor astral, a própria grandeza e intensidade iam esmorecendo gradual e proporcionalmente à medida que a aurora se impunha, sumindo-se de vez, tímidos e envergonhados pela anunciada chegada do imperador que aos primeiros clarões apaga e esconde todos os concorrentes estelares, a terra submete e ilumina com o seu majestoso esplendor, e a natureza campestre, agradecida, repete-se em manifestação de vida rumorejante, e brota e renasce e desabrocha e floresce…

Cruzava ainda a abeceira – digo abeceira, étimo que se impôs pela via popular, em vez de avesseira do léxico erudito, porquanto, nestes casos, é o povo que manda até prova em contrário! –, um pouco acima das hortas em socalco, e já quase a chegar ao viso, logo acima dos enigmáticos “barreiros” de terra semibranca, semi chumbo, de cuja proveniência não há vestígios nem indícios que justifiquem a sua textura geológica, cor e disposição naquele local. 

Lembrei-me então de quando mais jovem o meu colega me rendia no posto de trabalho, um pouco antes do turno que acabava às três da manhã, e, sem esperar pelos mineiros que sairiam à hora certa, demandava a nossa terra, passando as serras sozinho e completamente às escuras. Chegado ali, onde agora seguia em sentido inverso, sentava-me durante algum tempo se fosse verão, olhando, mas mais percebendo do que vendo, o decrépito casario, amontoado inexpressivo, guardando e selando o mistério de cada vida em plena escuridão e silêncio…


Meu povo vem à janela
Firma bem o teu olhar
E vê como a noite é bela
Até mesmo sem luar


Começava a dobrar a aresta que nos vira para o vale d’ermida e já se iam notando as rugosas serras em íngremes lombas descendo para nascente, abertas em concha, como se em sublime dádiva e entrega sem reservas à fecundidade do astro-rei. É a eterna partilha em cópula deleitosa, sempre renovada, resultante de tácito acordo legalizado por escritura intemporal, em obediência a ditames universais! 

Lá em baixo, as hortas, courelas e lezírias de couves, legumes e hortaliças e milho já alto, verdejante, ladeavam a ribeira. Os barrocos e ribeiros, com árvores de fruta, videiras e oliveiras transmitiam um total aproveitamento dos espaços construídos com suor, sofrimento e… muitos calos. Nada era desperdiçado porque tudo era necessário. A despeito do dinheiro das Minas, havia que não descurar essa essencial complementaridade, sem a qual não haveria modo de dar de comer a tanta gente. Nunca se contaram tantos habitantes. Falava-se em duas mil e duzentas pessoas só no burgo principal… 

Em frente, os barroquitos do vale de ermida estavam completamente esburacados em rescaldo e testemunho do que fora a procura do estanho durante os períodos do kilo e do saltipilha. O trilho que seguia, a vereda, era de pedras soltas; umas reboladas lá de cima com as chuvas e os ventos, outras, a grande maioria, reminiscências do período garimpeiro. A serra, nesse lugar, estava feia, triste, paupérrima, quase despida de vegetação. Lembrava carências… a miséria de tempos idos, mas bem próximos. As poucas moitas, assim como as pedras, estavam ainda suadas pelo orvalho da noite… Mais ao longe, o manto de neve que ainda há pouco tempo cobria toda a serra do nosso horizonte nordestino recuou, e agora parecia-se a um gorro branco ou cabeça de bisavô encanecido, tapando apenas o cocuruto continental! 

Ainda os sinos da torre da igreja não tinham batido as seis badaladas; ia pegar às sete, e ia só, e ia pensando…! Apesar de nesse tempo ser proibido e crime de lesa a pátria tomar tal atitude, pensava,

Foi ele…

O nosso povo, tal como os povos de todo o mundo, tal como os povos de todos os tempos, mais e quase sempre por razões económicas, nunca financeiras, poucas vezes políticas, começou a emigrar e desta vez parecia ser a sério. Quem ficasse sujeitar-se-ia a ficar sozinho… Tinha chegado da Índia no ano anterior e tudo parecia ter mudado, até as mentalidades!... Já não havia equipa de futebol; a filarmónica estava desfalcada ou já não tocava; deixara de haver atividades culturais e recreativas organizadas, e  as lúdicas eram raras e já não faziam sentido. Três anos na tropa foram suficientes para não reconhecer a juventude pujante e impetuosa que fora na década de cinquenta e impusera Cebola ao respeito de todas as outras terras circunvizinhas. Não porque mudassem ou fossem piores ou diferentes…! Apenas porque, paulatinamente, foram dispersando à procura de melhores dias para eles e para os seus. Havia também que dar outro rumo à vida, à minha vida, e ia pensando, mesmo sendo proibido, pensava,

Foi ele…

Várias gerações de dedicados e incansáveis arqueólogos e antropólogos, pelos conhecimentos adquiridos com estudo e aturado trabalho, e pelos cálculos e leituras dos materiais encontrados e exumados de escavações de ruínas até aí ocultas, que pacientemente inventariaram e classificaram, vão-nos transmitindo como foram as grandes urbes do antanho, desde os tempos primitivos, com raízes muito anteriores ao Paleolítico, o seu modo de vida, a sua sociedade, sem embargo de, não raro, tais descobertas se encontrarem já conspurcadas, adulteradas e profanadas por salteadores, oportunistas ou simplesmente ignorantes; ou arrasadas e roubadas por conquistadores impiedosos e exércitos sem escrúpulos, por isso mais difíceis de interpretar, mesmo considerando o avanço das ciências e o saber e ousadia desses meticulosos peritos. 

Apenas temos a certeza incontestável do seu modo de vida referente aos últimos seis-sete mil anos pelos documentos escritos que as civilizações já muito avançadas nos legaram; primeiro a dos sumérios e mesopotâmicos em cuneiforme, depois pelos hieróglifos egípcios, e também pelas suas obras monumentais. 

Por esses testemunhos, sabe-se que o homem era instintiva e naturalmente gregário como todos os seres vivos por variadas razões, sendo que a primeira se confinava à necessidade de proteção e segurança e a segunda, não menos importante nem dependente daquela, à luta pela sobrevivência. Só vivendo em grupo se sentia seguro, e mesmo que assim não fosse, a necessidade de vivência com outras pessoas obrigá-lo-ia à união com a própria família e ao seu clã, e depois a integrar-se no seio da sociedade, de todo o seu povo, para se reproduzir e se continuar, obedecendo, mesmo sem se dar conta, ao apelo da sua própria natureza. 

Era nómada enquanto vivia apenas dos recursos naturais que não careciam de cuidadas técnicas de tratamento, tais como a caça, a pesca e depois o pastoreio. Percorria então grandes distâncias à procura de locais de clima mais acolhedor, tal como já o faziam e fazem milhares de seres vivos da fauna e até mesmo da flora. Com a descoberta da agricultura há mais de quinze mil anos, já no vislumbre do mesolítico, logo se adaptou a viver como sedentário, construindo casas e monumentos pagãos e religiosos que deram lugar a belas cidades, grandes metrópoles, enormes civilizações. Produziram leis que foram sendo transmitidas pelas gerações, e que, embora corrigidas e adaptadas, ainda são, hoje, a base do direito que nos rege. Tudo, afinal, está tão ligado, tão próximo…! 

O Tempo parece, por vezes, confundir-se com a História, e parar... - mas não. A História talvez, mas unicamente para melhor se adaptar e conhecer os povos, reis e senhores  das guerras que em certos periodos a vão escrevendo a seu bel-prazer, e depois, sem avisar, como castigo,  tirar-lhes a pena e a tinta e dá-la a outros povos, a outros reis, a outros senhores das guerras, e continuar então a sua marcha, enquanto o Tempo, indiferente e imparável no seu espaço e movimento, não encontra patamares para repousar, exercendo e mantendo sem descanso a inexorável lógica evolutiva da relatividade cósmica.

O viver dos povos não foi sempre bom em todo o lado. Tinha fases, épocas. Quer porque a produção sazonal não fosse suficiente, quer porque a demografia tivesse aumentado descontroladamente em tempos de maior fartura; para minorar essa dificuldade, impunha-se a procura de terras mais ricas para dar sustento ao povo excedentário, que era sempre, por óbvias razões, a classe mais carenciada, as famílias mais numerosas. Então os mais afoitos, insatisfeitos com o precário modo de vida, abandonavam o seu território procurando onde melhor pudessem angariar aquilo de que necessitavam. E esses, não sendo egoístas, logo transmitiam e convidavam e aliciavam outros e estes, mais outros… Não havia papelada nem fronteiras, de tal sorte que, a dado passo, em vez de imigração controlada, os povos recetores viam-se a braços com verdadeiras invasões de hordas de famílias esfomeadas, primeiro entrando pacificamente, depois, com aguerridas forças armadas, conquistando os territórios acolhedores.

Mas os tempos mudaram. Embora continuasse a haver povos e territórios mais ricos que outros, agora já transformados em grandes nações com fronteiras, delimitações vincadas e quase invioláveis, com muros ou guardas bem equipados, tinham contudo necessidade de contratar mão-de-obra para, em desenvolvimento pacífico e harmonioso, colaborar em fábricas, construção e outros serviços primários; e assim, legalmente, começou a migração dos povos modernos no sentido das nações modestas para as mais ricas… 

E porque daqui, de Cebola, embora esporadicamente houvesse um ou outro aventureiro que fosse trabalhar para a Venezuela, Brasil, USA, Canadá, Colónias ou África do Sul, nunca isso foi considerado como emigração de massas porque esses “atrevidos”, isolados, sempre por lá ficaram sem darem cavaco…e por isso eu ia pensando… sem o dizer não fosse o diabo tece-las, pensava…

Foi ele

Ele, por mais paradoxal que pareça, era um empregado de escritório; estatuto social invejável nos tempos de então!... Trabalhava no escritório central das Minas, na Barroca Grande – departamento de estudos. Não sei qual seria o montante do seu vencimento; julgo que seria bem modesto; se calhar era inferior ao de um mineiro; não sei nem nunca lho perguntei porque nunca tivemos grande confiança. Era um pouco mais velho que eu e morava no extremo oposto, lá bem no cimo do Outeiro. Não era músico, não jogava, nem alinhava em certas atividades, pelo que, em toda a vida, não devemos ter trocado mais que meia dúzia de palavras ocasionais, sem significado. 

Não sei onde mora, como vive, se vive (oxalá que sim e por muitos anos); sei, contudo, que foi ele que um dia, sem se esperar, emigrou para França; de lá logo chamou os irmãos, estes chamaram os cunhados, os cunhados, os irmãos e os irmãos dos cunhados, mais os primos; e os primos, outros irmãos e cunhados... 

Da França foram para a Suíça, Luxemburgo, Alemanha, para o Canadá; a febre alastrou e mesmo os que não foram para o estrangeiro viajaram para Lisboa (aconteceu comigo e ainda vim a tempo de aqui trabalhar um pouco mais de quarenta anos!) e outras terras de Portugal. Haverá alguns cuja saída, como é o meu caso, nem terá a ver diretamente com essa concatenação de “chamamentos”, mas estou certo que foram propelidos para essa atitude dentro do espírito, da “febre”, que o precursor do movimento lhe incutiu, e esse, quer se queira quer não, até prova em contrário, foi quem penso que foi, porque já nessa altura, de baixinho para eles não o saberem, pensava…

Foi ele…

Ele é o que está sentado no lado direito da foto em baixo, de fato preto e chama-se Zé Fontes; José dos Santos Fontes ou José Fontes dos Santos; filho de uma senhora que era forneira e trabalhava no forno do Terreiro. Creio que todos os emigrantes da primeira, segunda e terceira geração, assim como os remigrados, lhe deveriam dar o nome de uma rua, que poderia ser a rua da casa onde nasceu; ou até um busto custeado pela emigração para o estrangeiro e para o território nacional. Bem merece ser recordado e ficar para a posteridade da nossa terra.




Constantino Braz Figueiredo

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