sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O GAVROCHE DE CEBOLA




Sempre que a meio da manhã e a meio da tarde, diariamente, era libertada dos bancos escolares por um efémero espaço de tempo concedido por decreto, vulgo recreio, habitualmente fruído à eira, local mais adequado pela proximidade das escolas então existentes, a pequenada, contente por comum sentimento de alívio, descia as escaleiras de pedra em anárquico tropel, soltando, a um tempo, as bem timbradas e frescas vozes – agradável e cândido reboar que só tinha semelhança com vistoso bando de passarinhos, a chilrear em gratuita exibição campestre, saudando uma agradável manhã de florida e risonha primavera.

Jaime sabia com que ansiedade lá dentro se aguardava esse momento. Sabia-o, e agora, sob outra perspetiva, ainda o esperava como se fosse uma hora mágica! 
Como se também lhe pertencesse pelo direito que a idade justificava e o íntimo requeria, mas que precocemente perdeu sem o pedir por o terem empontado para a rua, onde paradoxalmente se viu só, "banido", numa 
terra de centenas de crianças de mais ou menos a sua idade.

Que estranho!... 

Em vez de natural orgulho por já se encontrar fora daquelas amarras, apenas tinha saudades do convívio, da comunicação inocente e salutar, da amigável cumplicidade nas descobertas, jogos e brincadeiras juvenis. Sentia-se triste! Eram os seus companheiros de quem fora obrigado a desligar-se. Ainda se lembra dos sábados em que os alunos, em marcha, iam para o campo aprender uns rudimentos de botânica e ele, sorrateiro, meter-se numa das filas, começar a marchar, para logo ser denunciado – “Sr. professor, este já não anda na escola”.  Atitude ingénua e sem maldade já que o “xiba” até era seu amigo.

Gorada a tentativa, voltava à eira!

Naquele carismático largo, a bola, as casas circundantes e seus donos, quem passava e as pessoas que iam à fonte – Jaime gostava do fontanário ao centro, de torre poliédrica, que era, ao tempo, o único monumento público civil com algum relevo – eram testemunhas e sofriam as consequências das correrias e chutos a solo contra aquelas paredes convertidas em prestimosas auxiliares para lhe devolverem a bola. Foi assim que, favorecendo o sinistro, depressa passou de destro a ambidestro, até o confundirem com um esquerdino nato.

– “O raio do garoto não sai daqui” …

– Ainda hoje é memória residual entre anciãos o episódio em que sua mãe, ao tomar o abastecimento de água na fonte para os seus afazeres caseiros, o repreendeu chamando-o para casa, o que levou alguém, aproveitando a ocasião, a animar-lhe as intenções: “Leve-o, leve-o, sr.ª Teresa, que já o não podemos aturar”! Mas esta, que detetou qualquer coisa depreciativa no tom da voz, retorquiu: “Ai é?!... Agora ficas! Joga agora que mando eu”!...

Tinha qualquer coisa de gavroche, embora seja abusiva a comparação com aquele garoto que Victor Hugo, seu criador, descreve em “Os Miseráveis” – Gavroche era um filho de Paris, das ruelas de Paris, deambulante dissimulado, conhecedor de toda a arte de viver do nada no libertino submundo onde se movimentava; descontraído e desenrascado mercê do treino intensivo adquirido nos sombrios esconsos da grande urbe, enganando, subvertendo e … conseguindo – menos desviar-se da bala perdida de um gendarme a quem fora roubar munições para os seus amigos amotinados e em escaramuças pós napoleónicas, ao passo que ele, Jaime, embora sadio, irreverente e traquinas, era de Cebola e Cebola estava a anos-luz de Paris, daí que, terminada a escola, só lhe restasse esperar e tirar partido do que a sorte, tato e instinto lhe oferecessem, porquanto, por proibição familiar e intrínseca convicção pessoal, estava impedido de pedir esmola ou favores e muitos menos de roubar, ainda que fosse fruta. “Quem rouba fruta logo rouba outra coisa se tiver ocasião”. E “Quem pede esmola perde a dignidade e a autoestima; pode-se aceitar sem pedir – dádiva não pedida é oferta, não esmola”!

Não demorou, pois, que alguém com mais posses olhasse e visse que aquele ladino garoto, que corria que nem um galgo sem qualquer proveito, poderia ser útil para uns servicitos. Jaime era prestável e de confiança, sobretudo discreto, e a partir daí, eram vários os recados e mandados, outras utilidades e préstimos para que constantemente era recrutado. Desde acarretar água da fonte para encher banheiras e outro consumo doméstico, levar o almoço ao campo e às minas aos burgueses que se davam a essas mordomias, ir pela serra afora registar cartas nos correios da Barroca Grande que era a estação mais próxima com esse serviço, limpar e untar o interior das grandes pipas dos tasqueiros em preparação para receberem a vinhaça que haveria de embebedar os homens da terra, e, mais que tudo, dada a aura de garoto que aprendia bem e depressa, atender os vários convites para dar explicações escolares a alguns menos vocacionados para a aprendizagem, que aliás consistiam apenas em ajudá-los a fazer os trabalhos de casa, ler e escrever cartas às gentes que necessitavam de comunicar com familiares e amigos ausentes…

Mas, uma vez…

… Jaime foi chamado a casa de duas senhoras completamente analfabetas para ler uma carta e escrever a resposta. O sobrescrito já estava aberto e foi-lhe presente o conteúdo; pegou na folha dobrada e logo viu que aquilo não iria acabar bem. Se aquelas nada sabiam, quem escreveu deveria saber pouco mais. Tentou uma, duas vezes, três… ficou desconfortável, a coçar-se, a mexer-se no banco, e palavra da carta … nada! As senhoras olhavam para a carta, para ele, para ele e para a carta… até que é dito: “Bom, temos de resolver isto mais tarde, por agora vamos escrever a nossa carta”, sendo de imediato colocado em cima da mesa o papel, uma caneta de pau e um tinteiro. Jaime animou-se. Pegou na caneta e começou a escrever o que lhe ditavam. Chegado ao fim, dizem-lhe: “Lê lá o que escreveste” . Obviamente que a carta foi lida sem qualquer dificuldade. “Mas o que ele escreve lê bem”! – admiraram-se. Então, uma delas, pegando na carta que chegara no correio da tarde e que não foi lida, pôs-se a mirá-la de alto a baixo, de viés, de lado, e sentenciou: “E se ela escreve bem… uma letra bonita como poucas”!

Com letra bonita ou com gatafunhos quase ininteligíveis, comunicar foi e continuará a ser a chave de entendimento de todos os seres vivos, uma necessidade insubstituível, que, entre os humanos, sofre constantes enriquecimentos evolutivos, e Jaime, cotejando hoje o patamar alcançado com as realidades de Cebola daquele tempo, onde quaisquer progressos ou melhoramentos se resumiam a arranjos de calçadas e outros pequenos benefícios de serviços e equipamentos, desde há muito conhecidos e esperados, porque “em tempo oportuno” anunciados pelos senhores mandantes e que chegavam paulatinamente, sem pressas nem surpresas, por isso encarados e recebidos com toda a calma e normalidade, logo concluiu que qualquer similitude é pura fantasia.

Desde o tempo dos grunhidos e riscos em forma de desenhos de coisas e animais nas cavernas, passando pelas transmissões com fumos a uma distância já considerável, ao aperfeiçoamento da palavra escrita, à circulação de barcos, carros e aviões, ao manar de notícias pela rádio e televisão, hoje, quase sem nos darmos conta, consentimos que deixaram de ser virtuais as imparáveis torrentes de informações e conhecimentos, porque novos caminhos e portas de relacionamento bem reais se abrem num simples estalar de dedos (um clic), chegando em catadupa, como se um formidável aluvião nos inundasse com ímpeto fulgurante e avassalador. De tal sorte que um “gavroche” de Cebola, já ancião, quantas vezes ou já não pode ou não consegue acompanhar tais ofertas, sobretudo as frenéticas tecnologias de cariz social, via Internet ou telemóvel, como os SMS, mails, as transmissões de fotografias e filmes particulares, as possíveis videoconferências profissionais ou familiares, a participação adequada nas redes sociais Twitter, Facebook, Instagram e outras, num mundo que encolheu, em suma, e nada mais é longe…


Constantino Braz Figueiredo

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