Ao escrever o texto que se segue, A Justa Sentença,
tinha em mente que os destinatários de então que o lessem compreenderiam que se
tratava de uma ficção, alegoria pouco abstrata e nunca ao arrepio das
circunstâncias temporais e dos motivos que o originaram, pelo que seria para
eles, todos meus conterrâneos, de fácil interpretação.
Tanto assim será que, volvidos alguns anos e embora
visitado com alguma assiduidade, não foi manifestada qualquer estranheza ou
dúvida quanto a dificuldades de perceção. Contudo, tenho a certeza que será
impossível, a quem não conheça a raiz deste assunto, conotá-lo com qualquer
realidade, próxima ou remota.
Daí o conselho para que primeiro deve ser lido e interpretado o escrito anterior com o título:
Põe o Testo na Panela
.....///.....
A JUSTA SENTENÇA
Bolbolónia é uma pacata e quase insignificante metrópole perdida no interior do sistema montanhoso luso-castelhano. Um dia, sentindo-se vexada por acontecimento de certo modo irrisório mas que beliscou o moral da sua cumpridora e ordeira gente, achou que a ofensa, conquanto não fosse grave, não poderia ficar impune. Era preciso que a sua reputação, adquirida, caldeada e cimentada em tantos sofrimentos, canseiras e sacrifícios ao longo de séculos, no bom conviver e bem receber… e no bem visitar, não ficasse manchada por ligeiras nódoas, ainda que facilmente laváveis numa primeira água sem carecerem de ensaboadela. Contudo, alguém tinha de as lavar, e isso só poderia ser por quem derramou os pingos que sujaram o manto branco de virtudes que o povo tinha e julgava merecer.
Para o efeito, reuniu a assembleia dos doze membros que era constituída por uma representação de cinco elementos dos que tinham onde cair mortos; duas pessoas do conselho de anciãos, já muito anciãos; dois representantes dos mais honestos e respeitáveis e justos, à justa; um membro do núcleo de feiticeiros, que a ninguém enfeitiçavam; outro das bruxas, que eram puras amadoras naquela arte, mas bem representadas pela sábia sibila do pombal; e, por último, o representante dos zés-ninguém, que também não aspiravam a zés-alguém…!
Discutidos e ponderados os pontos da ordem de trabalhos, mais os
que posteriormente foram admitidos e aduzidos, foi decidido, por maioria
absoluta, o seguinte:
1.
considerando (…);
2.
considerando (…);
3.
considerando haver
matéria para agir, aja-se em conformidade;
4. considerando todos os considerandos considerados e
mais os considerandos desconsiderados, e dentro das prerrogativas que nos são
conferidas pela soberana soberania do povo, determina-se:
§ único – Imediatamente eleita pelos presentes, é nomeada
uma comissão composta por três elementos para que, dentre os maiores sábios de
sempre, cuja ética e insenção sejam universalmente reconhecidas, e que
uma vez escolhidos nunca possam ser postos em causa, nem pelos vivos de agora
nem pelos vivos futuros, se vá encontrar um juiz que julgue e lavre sentença, a
qual, para este povo, valerá e servirá de guia e conduta até ao marco-limite
dos tempos.
Eleita e sancionada pela assembleia, logo a comissão se
pôs a trabalhar e a estabelecer um plano para, dentro do que historicamente
se conhecia, encontrar quem estivesse disposto e fosse capaz de julgar
causa tão importante quão singular.
E então, lembrou o comissário mais velho, assumindo, descaradamente, a liderança do grupo:
- Babilónia é um local cujo nome é parecido
com o da nossa terra, e é sítio onde as civilizações são das primeiras e a
justiça foi pioneira e aplicada com grande sabedoria por Hamurabi e seus
seguidores.
Que não, argumentou o segundo na idade, porque a lendária
Babilónia era um campo de ruínas; a torre de babel caíra devido às guerras que
assolaram a região, ao muito uso e à falta de obras de restauro periódicas e
adequadas; já não existiam jardins suspensos porque as correntes e colunas que
aguentavam a suspensão enferrujaram, partiram e os jardins sucumbiram; e o leão
da rainha espiritual Istar, já instável, velho, coxo e sem juba, deixou-a sem
meio de deslocação; por lá, agora, só se for o Bin Laden… mas talvez na China –
milenar encontro de civilizações de todos os continentes que afluem às afamadas
curas e outros predicados das águas do Ganges, o Santo Rio, onde Buda era
grande e justiceiro e Confúcio fora conhecido como grande ético e filósofo.
- Talvez…talvez - retorquiu o terceiro comissário, que era o
mais novo - mas, se bem me lembro, Buda passou-se para o lado da Índia e foi
aliar-se aos hindus e aos nirvanas… e aquilo agora na china são todos
comunistas. Até o Mao já é bom… e estão mais amarelecidos que nunca… ademais
com as Olimpíadas à porta…não, não… não é conveniente…decididamente, ali não!
Porque não ficamos antes pela Europa que nos conhece tão bem e que nós tão bem
conhecemos, e tem sábios e História como os outros continentes? Por exemplo
Odim, guia guerreiro e espiritual dos teutónicos e povos escandinavos, senhor
do pensamento, espírito e razão que lhe chega pelo corvo hugin e da memória e
entendimento que recebe através do outro corvo munim, era bem capaz de
ser o mais certo para um julgamento deste cariz.
-Também não - tornou o primeiro - porque as Valquírias
ficaram aloiradas e espalharam-se por aí com uns fulanos… além do mais, os
vikings, que o deveriam transportar, deixaram de trabalhar, ou, quando muito,
fazem-no a seis horas por dia e quatro dias por semana… e os corvos emissários
da sabedoria, coitados, já nem grasnar grasnam… mas, deixem ver (chefe é chefe
e tem sempre o último trunfo ainda que seja na manga) … e se fôssemos à Grécia,
mãe da cultura, ciências, matemáticas e justiça europeias?
Olharam-se, entenderam-se e assentiram de imediato, e o
pensamento dos três comissários, em perfeita sintonia, velozmente voou para a
Grécia e para a sua antiga civilização.
Sem grandes dificuldades chegaram ao monte do Olimpo, na
Tessália. Uma vez ali, dirigiram-se, sem delongas, ao santuário de Epiro, sob a
égide de Zeus, onde foram recebidos por uma sacerdotisa, que, posta ao corrente
das suas pretensões e depois de consultar toda a documentação e exposição que
fora primorosamente elaborada até ao último detalhe, enviou como mensageiro o
oráculo de serviço para receber ordens de Zeus.
Este, que dada a sua condição de supremo dos supremos já
sabia de tudo, devolveu o oráculo à origem com a seguinte comunicação: fala
Zeus, que por minha voz fala… reúna-se um séquito composto por duas
sacerdotisas, uma deste santuário, protetora da haurição, da família de Hades,
guardador dos tesouros do subsolo, e a outra do santuário de Delfos, da
jurisdição de Apolo, parente próxima de Orfeu, o lírico musico e poeta, que
terão por missão fazer boa companhia ao réu e zelar pelo seu bem estar antes e
durante o cumprimento da pena; mais Nestor, meu jovem oficial, guerreiro e
argonauta, de patente inferior, muito ensimesmado, por vezes com discurso breve
e cheio de alegorias, demasiado abstratas que só hermeneuta profissional
consegue descodificar, que será suficiente para cuidar da defesa dos meus
emissários, além de lhe confiar as rédeas de Pégaso, o meu cavalo alado, que é
expressamente cedido para levar o séquito ao local onde será executada a pena;
e, por fim, Morfeu, lendário mito dos sonos e dos sonhos que fará de meu
relator e conduzirá, passo a passo, o réu ao cumprimento integral da sentença
conforme por mim, Zeus, foi lavrada.
Ficou dito. Cumpra-se ainda hoje!
- Morfeu?!... Morfeu?!... – escandalizou-se o mais novo dos
três emissários – Mas esse não é o que se deita com as cachopas e as faz sonhar
com chocolates? Depois, dizem que o tipo é todo ai-ai… ainda nos pinta a manta de cor-de-rosa!... Qual quê,
disse o mais velho. Ele deve ser do tipo bem ui-ui, senão elas não gostavam
tanto dele, e, ao que me dizem, gosta é de cores bem vivas, como o encarnado,
também tanto ao gosto do réu. Bom, diz o do meio: não nos devem preocupar os
seus gostos. Morfeu traz uma missão bem precisa, e temos a garantia de que a
cumprirá…aceitemo-lo, então, assim.
A primeira parte era esperar que o réu se deitasse
comodamente e com saúde e boa disposição na sua cama e que adormecesse
profundamente. E aí, sob o olhar atento das sacerdotisas, com Nestor, logo que
acomodou Pégaso, em vigilância permanente num espaço exterior, mas contíguo,
Morfeu entrou em ação, sussurrando-lhe: és escritor, um bom escritor, a tua
missão é escrever, então toma um caderno e uma caneta e acompanha-me que vamos
viajar…
Num ápice chegaram
a um monte onde se encontrava um monumento, tendo um letreiro do lado voltado
para nascente a dizer Bolbolónia e outro, a poente, com a toponímica
Medialónia, e uma escadaria mesmo ao jeito de quem se quer sentar. Sentaram-se.
Morfeu logo se apressou a lembrar-lhe a caneta e o caderno para que escrevesse,
dizendo: manda Zeus, e a obedecer és obrigado, porque, neste caso, exageraste.
Tomaste a parte pelo todo ou o particular pelo geral. Assim, escreverás três
páginas desse caderno sobre a gesta
do povo da terra que vês lá ao fundo e publicá-las-ás no teu próximo livro que,
pelo conteúdo, deverá ter garantia de sucesso. Assim Zeus o decretou!... Assim
se cumpra!... Não se fez rogado o réu – escrever era com ele…
Entretanto, lá
pelo meio já da terceira página, passa um homem com um burro sem carga e tira o
chapéu em jeito de respeito pelo monumento ou saudando quem estava sentado;
olhando o gesto, o escritor levantou-se e correspondeu. Diz o homem do burro
que desconhecia com quem falava: não tirei o chapéu a si, mas ao monumento.
Responde o escritor: essa é velha… também não o cumprimentei a si, mas ao seu
burro, ah, ah, ah… riu-se também o dono do burro e lá foi. De repente, começa a
insinuar-se uma leve aragem que vinha dos lados do acume da serra; mais um
pouco e forma-se a neblina que depressa se transforma em nevoeiro cerrado.
Ficou sem enxergar o que quer que fosse…
Nesse momento passou-lhe pelo corpo um ligeiro arrepio,
não de medo, não de frio, e, sem saber se de perto se de longe, se saía do seu
interior ou se vinha com a aragem, ouviu uma voz cavernosa, como saída das
entranhas da terra, a murmurar-lhe confiantemente e modo quase familiar: e esta Mané?... Mané não
conhecia aquela voz, mas não lhe custou admitir que era a voz de um fantasma…
perscrutou melhor o interior da névoa e pôde intuir que se tratava da sombra de
algum desgraçado, ainda cheirando a vinho e com marcas de agressões várias, e,
então, em sua memória, retorquiu: e agora Mané?...
Estavam os Manés quase a entabular conversa, quando, do Sul,
reaparece o homem com o seu burro… olhe, senhor que escreve, o meu burro chegou
ali e recusa-se a andar. Acho que simpatizou consigo e teima em levá-lo. Não quer
ir? Olhe que é o melhor transporte cá do sítio!
Diz o escritor: bom… uma vez que terminei o trabalho e
dadas as circunstâncias, boleia assim não é para desprezar, mas nós somos dois,
eu e este… Não percebendo o homem do burro que o escritor se referia a Morfeu, logo
respondeu: nós também somos dois!... Bom, vamos lá… O burro, via-se nele, ficou
todo contente e orneou qualquer coisa impercetível, mas reveladora de simpatia
(hin-hã), e pacificamente deixou que o escritor lhe trepasse para o dorso. Sabe,
diz o do burro, este é esperto: é um burro das arábias, foi-me oferecido por um
vizir quando me desloquei à Mesopotâmia, junto ao fértil Eufrates… aprendeu
algumas coisas durante o tempo em que conviveu com fundamentalistas talibãs,
numa cova onde você nunca iria e onde a palha escasseava… nem queira saber,
tive um trabalhão para o morigerar… o pior é quando o encontro em reflexão… aí
fica imperscrutável e nunca tenho a certeza se este seráfico crânio asinino prepara a evacuação de restos
fisiológicos não assimilados para os largar em lugar menos conveniente,
conspurcando-o, ou se está a perpetrar um atentado daqueles de fazer tremer o
universo!...
O burro,
arrebitando as orelhas, levantou a beiçola
superior e mostrou a dentuça
enorme, parecendo rir-se… tal era a felicidade que o invadia naquele
momento; e porque desconhecia que o atrevimento é diretamente proporcional à
ignorância, despejou, por sua vez, em
bom zurrar: hin-hã, hin-hã, hin-hã. Tragam toda gente, quero testemunhas; toquem
campainhas, repiquem os sinos, deitem foguetes… chamem toda a comunicação. Que
fique bem gravado no mar, céu, terra e ar… a tinta indelével… a ferro e fogo… que
sou o jerico mais feliz do universo! O que eu esperei por este momento! Se
um burro carregado de livros é um doutor, o que serei eu agora que carrego o Saber de todos os livros do mundo?
- Arre, burro!...
Levantou-se uma brisa mais consistente e todo o nevoeiro
se varreu, dando lugar a um dia soalheiro de soberba visibilidade onde se
podiam facilmente distinguir alguns pinheiros, as moitas, as carquejas e os
seixos brancos que parecia brotarem do solo; as lombas, os contornos das
serras e suas vertentes de fragas e carrascos com o horizonte a perder de vista. Lá ao fundo o povoado despertava para os afazeres quotidianos. E, como como corolário da natureza campestre, o brinde de um estridente e
mavioso trinado, como qualquer quebra-nozes tchaikovskiano, de um melro de bico
amarelo que os saudou do galho de um cachapeiro…
E o escritor, enquanto com a mão afagava o cachaço
inquieto do burro, mal disfarçando um sorriso de magnânima compreensão, mirou pela última vez o sítio que momentos antes abandonara,
de fantasma já não havia sinal, mas pôde ver um significativo conjunto de
coloridas mariposas, algumas ainda quase crisálidas, adejando em busca de
protagonismo e da fama de novo adiada, e, de si para si, comentou: ainda não
foi desta… a história ora contada não vos pertence…talvez a próxima… persisti,
pois, hoje, amanhã e sempre…sem desânimo!
Olhou agora mais
adiante, e…o que via? As paredes interiores do seu quarto com as persianas já
corridas e através das janelas a Ponta do Papagaio, em Arrecife; as ondulantes
águas do Oceano Atlântico marulhando a costa pedregosa da ilha… e a sua bela e
grave governanta, de ascendência romana, Vestal, como gostava de ser tratada, e
que, com um sorriso bonacheirão de confiança sabiamente adquirida ao longo dos anos que o vinha servindo, lhe dizia:
- Bom dia, dorminhoco, tem o banho preparado, vou já tratar
do seu desayuno… que tal a soneca? Deve ter sido muito boa pois há
pouco ainda sorria… Era, decerto, de bons humores…
– Era, de facto – disse, sorrindo enigmaticamente, o
escritor –, mas pela salutar vivência com burlescos e peregrinos doutores!...
Constantino Braz Figueiredo
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