sábado, 23 de maio de 2009

UM GRILO NO ACERVO



 UM GRILO NO ACERVO

O dia estivera quente – um sábado dos mais quentes de sempre, lembravam os mais velhos. Levantei-me às cinco da manhã para pegar ao trabalho às sete, na correia, a “torradeira de zinco” da Barroca Grande. Mal me livrei daquilo, às três da tarde, assim que tocou o apito para a rendição de turnos, depressa me dirigi em direção à minha terra, a velha Cebola… para casa o caminho é sempre a direito! Mas estava calor, mesmo muito calor… então naquela vertente que dá para o rebordão até se atingir a selada cova, onde se transpõe a serra, parecia-me comer lume!... Era aonde só as alegres e sonhadoras cigarras gozavam a efémera vida, nas estevas e carrascos, cantando como se estivessem no Scala de Milão!...

Chegado ao “doce lar”, logo peguei numa toalha e alguma roupa lavada e fui refrescar-me, e ao mesmo tempo cuidar da higiene que era o que o corpo necessitava e mais me pedia – uma barrela!

Tomei as levadas da ar-chã (?), e subi o barroco da fassoute (?) em busca das suas entranhas. Olhei o pequeno desfiladeiro e os barrancos que ladeavam este arcano lugar, que descobri ainda miúdo aquando das minhas andanças por fragas e matagais, barrocos e barroquitos, ribeiros e regatos, onde primeiro olhei o mundo sem o ver. Procurava cogumelos e armava aboizes para apanhar a passarada, mormente tordos e melros que tivessem por guloseima roliças e suculentas minhocas ou apetitosas azeitonas pretas, luzidias e bem madurinhas. Assim, ali, emparedado pelas ribanceiras que quase se tocavam e tão íngremes que impediam qualquer aproximação às suas bermas, fiquei protegido de qualquer olhar indiscreto.

Banho é banho e requer privacidade…

O generoso fio de água fresca que caía da pequena cascata, por caleiro hábil e antecipadamente engendrado com folhas de um secular e imperial castanheiro que, ali perto, dominava majestaticamente a entrada daquele labirinto, ao bater-me no corpo desnudo lembrava-me um propalado líquido expressamente deificado e que serviria de lenitivo e purgante para todos os males espirituais, mas que, neste caso, além de celestial tonificante regenerador, servia também para expurgar a sujidade acumulada durante toda a semana. De torneira sempre aberta, incessantemente me refrescava enquanto um naco de sabão azul-e-branco, o tal “macaco” que tirava as côdeas da roupa, percorria-me literalmente.

Cumprida essa grande necessidade, tornei ao povoado e ainda passei por casa para prover o estômago de algo substancial, de que bem carecido estava. Havia leite de cabra e broa… miguei a broa e comi à colherada … nada mau! Sai, e olhando para a avesseira reparei que a sombra já ia a meia canada, o que significava que seriam seis, seis e meia da tarde. Haveria ainda pelo menos três horas até ao crepúsculo. Eram as horas melhores de vivência na aldeia. Ainda hoje me lembram as belas tardes longas e amenas… Cedo o sol começava a esconder-se ao “seixo”, por cima dos lameiros, por cima das quebradas, deixando as casas à sombra, mas com plena claridade diurna durante algumas horas. Se de alguma coisa, cá longe, se sente nostalgia é daquelas tardes propícias para passeios e para convívios, vendo a sombra, vagarosa, a subir, palmo a palmo, a encosta da avesseira.

Passei pela eira, pelo clube, fui ao “povo”, e, uma vez encontrados alguns amigos que procurava, dirigimo-nos, conversando, pelo incontornável caminho da capela, onde, chegados, nos sentamos nas escadas do pedestal. Cavaqueando, comentamos tudo o que fora notícia lá na terra, e não só…! Quase sem darmos por isso, a sombra tomara já o cume do cabeço carvalheiro; na Panasqueira acendiam-se as luzes públicas; lá longe, no horizonte, para as bandas da raia de Espanha, divisava-se já por cima dos montes uma cinta escura pronunciando a noite; no céu, apareciam algumas estrelas; de frente para o povoado ainda se podiam enxergar as chaminés com o característico fumo do lume aceso para preparação do caldo e dos feijões.

Ali estivemos até ao toque das trindades. “O doce toque das trindades” … Havia naquele ritual qualquer coisa de místico e romântico. As pessoas paravam, e, enquanto durasse o tanger do sino, ali ficavam na posição em que se encontrassem logo à primeira badalada – estáticas, concentradas, talvez rezando…

Entretanto, já tinha escurecido por completo. Era uma daquelas noites em que da lua não havia conhecimento – nem cheia, nem metades, nem quartos -  era uma noite de lua nada! Daí que as estrelas tivessem um brilho inusitado.

O Sol – que nos perdoe Galileu –, cumprindo a asserção de Fernando Pessoa, de que “a noite é a nossa dádiva de amor aos do outro lado do Planeta”, continuava a sua marcha para outras terras – estrepôs a serra das Meãs, esgueirou-se por Coimbra, saiu pela Figueira da Foz, entrou no Atlântico…de fuso a fuso, meridiano em meridiano, foi dar luz e calor aos pescadores da Terra Nova, beijar os states e colher uma fresquinha folha de plátano um pouco a norte dos Grandes Lagos. Entraria no Pacífico para saudar os corais e seus atóis; na terra dos nipónicos espreitará e, se apanhar distraído o samurai, entregará a folha a uma linda gueixa – “toma lá, com os cumprimentos da múmia das arcadas”. Apressa-se na China para não estragar os arrozais aos simpáticos sinos, mas cuidará de saber como vão monges, budistas e confucionistas; vai admirar a Índia e dizer aos nirvanistas que sim senhor, que fazem bem em professar e praticar o Bem, em serem íntegros e calmos, mas que não temam o desejo…desejar é querer, é viver, lutar e amar.

Chegando-se mais para ocidente verá terras da admirável Pérsia de xás, rajás e marajás carregados de ouro e marfim; nos guerreiros otomanos encontrará grandes vizires, sultões e sultanas, haréns, odaliscas e favoritas, favores, desfavores e intrigas palacianas. Mais a sul terá de aceitar e admirar o domínio dos grandes comerciantes xeques, califas e emires.

Já no mediterrâneo terá saudades das grandes civilizações da antiga Hélade e dos seus mais ilustres helenos – Sócrates e Aristóteles, Arquimedes, Pitágoras e Euclides… e de Péricles, talvez o maior de todos, comummente reconhecido como o pai da democracia. Decerto que não esquecerá as grandes obras dos faraós, os senhores do Nilo, e a fecundidade de Ísis e Osíris.

Depressa ultrapassará a Europa que o reconhecerá, saudando-o, e vem contente por voltar a Portugal, a Fernando Pessoa que o “deu” por amor àqueles de lá, e vem ansioso porque simpatiza com as nossas gentes. Mas Sol, poderoso Sol, não te jactes de teres visto admiráveis coisas que nós não vimos; por cá, às escuras por culpa tua ou do Fernando, também se passaram das boas … tais que quase se cora só de nelas pensar…!

Voltamos ao povoado.

Depois de deixar os amigos, passei de novo pelo clube… jogava-se à sueca, ao pingue-pongue, ao dominó. Falava-se, convivia-se. Pouca mora porque me pareceu que, à eira, haveria espetáculo do melhor. Ainda à tapada, já ouvia o melancólico e dolente planger de uma guitarra no seu habitual, inalterável e inconfundível três-e-quinhentos-quatmirrés. Haveria baile? Só cantigas? Talvez uma desgarrada… Com efeito, nas fraguitas, frente à porta térrea do ti Zé Benjamim, voltados para o tronco, encontravam-se já o guitarrista e uns tantos rapazes, parecendo esperar mais público ou mais coragem para o início.

Olhei em redor e vi o que poderia ver, pressentindo mais do que via, mas habitualmente toda a gente reconhecia toda a gente só pelos vultos, silhuetas, pelo falar, pelo odor …até pelo respirar. Assim, não tive qualquer dificuldade para saber quem se encontrava. Não demorou, contudo, que o lugar fosse bem iluminado por dois gasómetros dos utilizados pelos mineiros, a combustível de carbureto.

Era rapaziada ainda nova.

A despeito da ancestral tristeza enraizada por séculos de opressão e precariedades; do temor não isento de ameaças de penas eternas servidas por dogmas concetuais, subtis e ambíguos, mas de todo incompreensíveis e inexplicáveis, que, metodicamente, com precisão cirúrgica, logo  e antes mesmo do entendimento lhes foram inoculados por gerações vacilantes e reverentes sob intolerantes agentes obscurantistas, e ainda que exauridos pela árdua semana de trabalho dentro das minas, por ora abstraídos de todos os fantasmas, esquecidas as dificuldades, ali estavam, soltos e emulados e prontos e empolgados para o seu lúdico serão, onde, nesse instante, apenas prevalecia o escopo que os animava – a alegria suprema de divertir divertindo-se, que era, essa sim, afinal, a sua verdadeira natureza.

Neste entrementes ouvi o cricri de um bucólico grilo no acervo de lenha para o forno do pão de trigo – um montão de chamiços, carquejas, monhiços, giestas, moitas, estevas, carrascos, queirogas e alguma rama seca de pinheiro, bem encostado ao muro que dá para os quintais…cricri, cricri…era o grilo que abria as hostilidades!

Fosse por isso ou não, ouviu-se então o Zé Benjamim dizer: “Bom… começo eu e segue a eito pela direita”: 

Salvo quem está a chegar

Saúdo os que já cá estão

Atiro com a boina ao ar

Vai cair na Malhada Chão 

 Resposta: 

Caía na Malhada Chão

Se fosse boina de primeira

Mas parece um chapelão

E não passou da Cerdeira


Venham juntar-se a nós

Não se ponham na retranca

Vamos levantar a voz

Pra se ouvir na Covanca

 

Depois entraram em escaramuças e picardias brejeiras, de que já não consigo lembrar-me. Seguidamente, houve quem estendesse a contenda para o genuíno vernáculo de Cebola:

Cantas mal não cantas bem

E pensas que és o primeiro

Mas pior seria se fosse

O amigo Xico Moleiro 

Quem tal cantou, fê-lo apenas para trazer o Xico à colação, pois sabia ser um elemento imprescindível nestes eventos, dado que era, reconhecidamente, um repentista nato, sempre espontâneo nas respostas em qualquer situação, e então ouviu:

Daí só espero asnera

Desse canal arranhado

            Parece uma tripa caguera

Cheia de vento atrasado 

O guitarrista, raramente cantava, mas este não se conteve: 

Comigo já tinhas emprego

E não te ficavas a rir

Pagava-te pra de joelhos

Veres o meu vento a sair

Havia muita gente a assistir, de ambos os sexos e de várias idades, e Baco, sempre pronto e à espreita de qualquer motivo para se insinuar, apareceu, como gosta, dissimulado em dois grandes jarros de vinho trazidos por duas belas moçoilas.  Então, o Zé Benjamim, aproveitando para acalmar as hostes e olhando para os jarros, atirou:

Com aquilo é que eu vos calo

Por agora está tudo dito

Vamos fazer intervalo

Vamos beber um copito

Do campanário chegou o som das onze badaladas. Amanhã era o dia do Senhor e do senhor padre Artur para lhes sarar as mazelas espirituais; a mim esperava-me outro senhor: fora marcado um treino para as oito, na portela, a que não faltaria. Era preciso olear a máquina.... Chegara a hora de ir descansar.

Aproveitando a pausa das cantigas, retirei-me mais para o meio da eira, e pude então observar melhor todo o campo circunstancial, e vi a ti Rosa que, de candeia na mão, na varanda, chamava o Ramiro para cear; nas suas escadas de pedra, junto à porta de entrada, sentava-se o ti Zé Benjamim (pai), puxando da latita para aspirar mais uma pitada de rapé, talvez a derradeira do dia; ainda se ouvia a fonte, ao centro do largo, despejando o seu caudal para um regador que um ou uma retardatária enchia; a grande mimosa, junto ao chafariz, na quietude dos seus frondosos ramos, observava silenciosa; cães latiam no outeiro; nos seus estábulos, à tapada, bufavam vacas e bois, orneavam jumentos e mulas; nas pocilgas, grunhiam porcos esperando a vianda; a essa hora, ainda os galos estavam em silêncio  limitando-se a manter as galinhas na ordem.

Cumpria-se também a Ordem Natural do Universo – e, olhando na direção do vale da colher, por cima do cabeceiro, vi a triste Ursa Menor, que, pelo rabo, era uma eterna cativa da Estrela Polar, incapaz de se soltar da pequena órbita, mais parecendo um burro, com talas, à volta do poço…; ao centro, mesmo em cima da ponte, podia ver-se, cintilando alegremente, a Ursa Maior; lá para os lados do cabeço dos Cambões, surgia já o Sete-Estrelo, as Plêiades, as sete irmãs, filhas de Atlas, fugidas do caçador Oríon, que caçava mal pois que só chegaria pouco antes do nascer do Sol. Olhei mais uma vez a penumbra das serras, que só adivinhava pelo ápice e recorte, orlado pelo contraste com a claridade do céu estrelado.

E o grilo, sem sono, aproveitava o ligeiro descanso dos artistas, para saciar, também ele, a sua fome exibicionista: cricri, cricri, cricri!

Fui para casa. Pela rua acima até à costa, nos sítios do costume, ainda se conversava animadamente…. Até amanhã… boa noite, ia salvando quem estava.

Comi um caldito e fui deitar-me. Ainda peguei no livro que tinha à cabeceira – o Monte dos Vendavais, da linda Emily, a irmã do meio das três escritoras da família Bronté. Um livro da inevitável estante do Tonh’Abílio, meu habitual fornecedor. Não podendo comprá-los, recorria à boa vontade de amigos que os tivessem. Retribuía como podia, com reconhecimento e amizade e – imagine-se! – com o mundo aventuras, uma publicação semanal da qual era assinante e que nesse tempo fazia furor, e que emprestava a quem gostasse de histórias aos quadradinhos…

Só que, agora, com o livro encostado ao peito, não conseguia avançar uma linha. Assaltavam-me as sensações vividas durante esse longo dia, e, de todas, por absurdo que pareça, era o cantar do simpático grilo que mais me preenchia o pensamento.

Ele há coisas…!

Não deixava de ser curioso ter arranjado tal empatia com esse bichinho. Sabia que, mal abrissem o forno, ele iria, inevitavelmente, ser queimado e ajudar a cozer-nos o pão. Deu-me ganas de ir lá, procurá-lo e escondê-lo ou levá-lo para longe dali, ou de não comer o pão dessa fornada…, mas logo descobri que no meu subconsciente apenas se estabelecia um paralelo, uma analogia: enquanto o grilo iria do montão de lenha para o forno, eu já estava na torradeira da correia, onde, lenta e inexoravelmente, era torrificado e do qual não via como sair, pensasse o que pensasse! Ao menos se o grilo me aconselhasse…! Mas estava já bastante cansado para destrinçar as variáveis desta equação. Arrumei o livro, apaguei a luz do candeeiro a petróleo, espichei-me, e, enquanto na minha cabeça o grilo ainda continuava o seu alegre cricrilar…cricri, cricri, cricri…, fui “tomado” por Morfe

Constantino Braz Figueiredo


 

        


A Boceta de Pandora


A BOCETA  DE PANDORA 

O que eram esses tempos!... O que foram os tempos inóspitos da nossa infância…! E o que teriam sido os tempos dos infantes que nos precederam?...

Fora um período difícil para toda a gente, vivesse, trabalhasse ou tivesse a profissão que tivesse. Estava-se em plena Guerra Mundial; tinha acabado a Guerra de Espanha.

Paradoxalmente, só depois das guerras é que foram os dias piores para os nossos pais, já que, enquanto na Europa, Ásia e África se combatia pelo domínio dos Povos, em Cebola ganhava-se dinheiro como nunca, nalguns casos mesmo muito dinheiro! Se a década de trinta tinha sido a das lutas pelos horários e por melhores condições de vida, a dos quarenta fora a década do “kilo”.

 De todo o lado, das potências em conflito, havia apelo às matérias extrativas de que o nosso subsolo era fértil, e a diretoria das minas deu liberdade para exploração própria, e a esmo, do rico mineral, contanto que lhe fosse “vendido” pela tabela por ela fixada. Era dinheiro fácil, aparentemente fácil, porque além de não passar de ilusão ardilosa, também fora onde os mineiros mais arruinaram a sua saúde, pois trabalhavam sem quaisquer condições de ventilação, sem descanso, mal alimentados e sem higiene. Mesmo assim fizeram, modificaram e pintaram as suas casas; fizeram mais filhos, e beberam, beberam… Nunca houve tantas tascas por metro quadrado e por pessoa!

 Um dia, a guerra acabou, o “kilo” acabou, e eles, tristes, com as ferramentas que haviam adquirido no Fundão, volveram, sem emprego, para junto das suas aflitas mulheres e da prole que teria de ser alimentada, vestida e educada.

Aos poucos, as minas iam adquirindo o seu ritmo normal, e os mineiros da nossa Terra iam sendo integrados na exploração. Crê-se que foi a partir daí que o Couto Mineiro terá atingido o seu apogeu; em 1950 dizia-se que eram cinco mil as pessoas que trabalhavam para a Companhia, dentro e fora da mina.

 Entretanto, durante o lapso de tempo que mediou entre o “kilo” e a sua nova admissão nos quadros da empresa, recorreu-se ao famigerado saltipilha e foge (ou será assalta, pilha e foge, expressão que terá redundado em saltipilha por força da declinação semântica através de via popular, já que a construção literária assim nos obriga a pensar?) e aí então eram “admitidos” todos: homens, mulheres e adolescentes. Na qualidade de crianças, podíamos, de longe, assistir ao deprimente espetáculo da GNR atrás dos mineiros por aquelas serras da Abeceira (Avesseira) e do Vale de Ermida, assim como nas ribeiras do Vale de Muro, vale d’Água até Porcim. Fazia-se pela vida deitando a mão a todos os recursos possíveis. Era assim; assim tinha de ser.

O que eram esses tempos! O que foram esses tempos…

Aos homens com mais de dezoito anos era concedido o exclusivo de serem admitidos para trabalhar dentro da mina e a prerrogativa de encherem os pulmões da venenosa sílica que, insidiosa e insinuante, os tomava até os aniquilar, dando-lhes uma sedutora esperança de vida até aos cinquenta e poucos, sem que antes passassem por degradante sofrimento, durante os últimos cinco-dez-anos, de sentirem o seu pobre aparelho respiratório em acelerada e irreversível decomposição, tossindo e expetorando sangue e outras esquisitas matérias segregadas pelas entranhas dos seus arruinados pulmões.

 O que eram os tempos, o que foram esse tempo!

 Às mulheres fora dada a veleidade de fazerem todo o trabalho caseiro, das hortas e courelas, de cuidar do seu homem, de parir, criar e educar os filhos e aguentar sem desfalecimento todo aquele desabar de vida quando a saúde faltava e o dinheiro não chegava. Depois, já quando os seus homens não podiam, devido a doença ou morte, lançavam-se, elas mesmas, heroicas, sublimes, a qualquer esforçado trabalho que lhes desse sustento para a família. E então era vê-las, orgulhosas pelo êxito, e mais por terem conseguido sem qualquer auxílio das entidades instituídas – as chamadas forças vivas – tampouco das estruturas sociais, que, dessas, não se tinha conhecimento local, concelhio ou nacional. Cada um por si. Ou seja, cada uma por si mesma!

Têm razão as mulheres, as mães da nossa Terra e de todas as terras do chamado Couto Mineiro… e as daqueles que, vindos de longe, pernoitavam nos barracões da Panasqueira e Barroca Grande e só iam a casa uma vez por semana, onde chegavam extenuados pela árdua semana de trabalho e pelo cansaço de, a pé, por montes e vales, por veredas e atalhos chegavam ao Paul, Silvares, Erada, Casegas, Sobral, Dornelas, Covanca e muitos outros burgos circunvizinhos. Têm razão as mulheres “mineiras”. Nunca serão reconhecidos os seus sacrifícios, as suas canseiras e angústias.

 Se fosse possível contar a experiência de cada um, ou cada um contar a sua própria experiência, honestamente, sem rodeios, e sem eufemismos que tudo subvertem e que de tão adocicados só nauseiam… se houvesse relatos justos, verídicos, a História da nossa Terra seria real e séria. Deixemos a pesquisa para os estudiosos sociólogos e antropólogos da nossa praça, e confiemos…

 O que foram esses tempos…

 E dos filhos? Alguém se lembra deles? Garotos … bah! É preciso é que vão à escola, à doutrina, que “apanhem” e, logo que possam, que vão trabalhar, pois a vida custa a todos! Começavam por carrear mato para estrume do porco ou das cabras, e a lenha que fazia falta para cozinhar e aquecer no rigoroso inverno logo aos nove ou dez anos iam com as mães para a ribeira, e enterrados na água até às coxas apanhavam terra que era suposto “pintar” para as garimpeiras mães lavarem em bacia adequada, à espera que lá no fundo surgissem minúsculos grãos de minério. Depois, logo aos doze treze anos empregavam-nos nas minas, na correia, alfobre de mineiros.

 Bom… a correia! A correia não deveria contentar-se com um parágrafo, nem com um livro! A correia fora degradante para os garotos de Cebola, sobretudo para os órfãos. A correia era um barracão baixo e comprido com paredes exclusivamente de chapa de zinco e coberto com placas de lusalite, com intervalos em cima e em baixo para arejar. Imagine-se então o que era estar ali no verão durante oito horas! A correia, afinal, consistia em duas passadeiras transportando cascalho, uma em frente da outra com as torvas no meio; o cascalho passava e o “filão”, seixos e minérios, era escolhido e deitado para as torvas. Ah! Havia meia hora para almoço.

 Ainda falam da “frigideira” do Tarrafal… Haviam de ver o que foi a “frigideira”, vulgo correia... e o trabalho em si, com as mãos engadanhadas pelo frio, sempre dentro do cascalho húmido mesmo no inverno rigoroso. Depois eram os castigos. Pediam para ir à sanita… e o vigilante espetava dois dedos na sua direção e marcava a hora: dois minutos; a água que bebiam era trazida por um caneco de madeira em que faziam um furo na parte inferior tapado com um espeto que se tirava para aparar com inclinação do corpo para o lado e um caricato esgar bocal. Podia ser fresca na origem, mas ali ficava “choca” (inerte e morna).

 Depois eram as incontornáveis chicotadas com que todo o dia eram mimoseados por vigilantes, capatazes e capatazes-gerais. Trabalhavam que nem escravos, e o chicote, manuseado por aqueles pobres de espírito que mandavam e vigiavam, zurzia-lhes os corpos imberbes e indefesos sem dó nem piedade. O maior exercício intelectual daquelas mentes patológicas, sádicas e perversas, consistia em encontrar maneira de um sobrepujar o outro na arte de bem azorragar. Havia “menino” que cortava uma mangueira de regar em seis ou oito tiras, deixando dez centímetros para punho.

 Eram tempos…

A sorte é que ainda não havia por cá originários de África, porque se houvesse e vissem como era a escravatura branca, logo debandavam a sete remos a refugiarem-se no colo de Gungunhana, porque esses ainda tinham os seus sobas para os protegerem. Ao invés, aqui, neste país ocidental dito civilizado, não havia uma voz (uma só!) que viesse a terreiro denunciar tais atropelos a todas as leis internacionais humanitárias. Nem sindicatos, nem autoridades oficiais e muito menos ainda os lídimos senhores da ética, da metafísica, que esses, por tradição, apenas se dão bem com as classes dirigentes, dominantes e possidentes.

 …esses tempos…

 E as nossas infantas? Tudo o que foi dito acerca das mães e mulheres tem merecida aplicação nas raparigas da Terra de que tanto gostavam, apenas com a diferença de que trabalhando de igual modo, ou mais, o faziam com redobrada alegria. Compreensível… irreverência juvenil! … Cantavam, dançavam divertiam-se, namoravam. Eram airosas, esbeltas e brejeiras, sem serem boçais… maliciosamente encantadoras essas meninas!... A elas se deve em muito a edificação da nova igreja. De facto, foram elas quem mais trabalhou, graciosamente, na ajuda diária aos artífices contratados; eram escaladas, por grupos e por zonas de habitação. Eram, além do mais, abnegadas, estoicas como toda a gente da Terra, embora esse estado nada tivesse a ver com o estoicismo de Zenão, de Cícero, já que esses eram conscientemente passivos, consciente e filosoficamente doutrinados para sofrerem, enquanto os de Cebola o eram sim, estoicos ativos e heroicos, mas por necessidade compulsória

  …ainda esses tempos…

 Todavia, não se infira daqui que só Cebola e povos limítrofes da Minas sofreram. Salvo raras exceções, para a regra ser regra e continuar axiomática, havia dificuldades em todo o lado, em todo o Globo. Em Lisboa, a capital do Império, havia milhares de pessoas a viver em barracas, mal alimentadas e com precária ou quase inexistente assistência social; havia milhares de casas urbanas, já com água potável é certo, mas sem casa de banho e – pior! – sem um ribeiro ou uma presa por perto onde pudessem lavar o dianteiro sequer o traseiro! E a vida nas grandes urbes do mundo não diferia muito – Roma, Paris, Berlim, Londres, Buenos Aires, Tóquio… a China a Cochinchina sofriam do mesmo mal. E isto cotejando apenas as nossas aldeias com as grandes cidades do mundo evoluído. E como seria a vida nas aldeias desses países? Como seria nos arrabaldes e periferias de Moscovo, Berlim, Paris, Manchester… nas favelas, no sertão, nas pampas?... Tudo é relativo e tudo tem de ser relativizado e enquadrado no espaço e no tempo e no conhecimento evolutivo das gerações. As pessoas não eram insensíveis ou indiferentes às agruras da vida, mas haveria melhor? Aqui sofria-se pelo trabalho das minas, a silicose, a morte; aqueles, lá longe, sofriam com as guerras e suas sequelas, as epidemias, a morte… qual a diferença?

 Postas assim em evidência tantas canseiras e ralações desta gente poder-se-ia pensar a priori que outra coisa não se faria do que carpir mágoas. Puro engano! O povo era entusiasta, alegre e participativo. A juventude, pujante e criativa, como aliás se depreende pelas fotos que vão chegando ao tópico “Antigas” deste formidável e útil Site. A década de cinquenta foi um manancial de atividades lúdicas e associativas, culturais, desportivas e religiosas. Como bem revelam tanto essas fotos como os relatos ou simples comentários de “viver” ou de ouvir contar, “A Nossa Gente” era bastante versátil e eclética. Não havia… inventava-se! Havia cinema, teatro e (imagine-se!) até uma gala de fado com artistas de Lisboa, donde ainda nos recorda uma quadra da desgarrada com que esse evento encerrou.

Estes espetáculos tinham lugar num barracão que havia na rua do corredouro construído para esse fim, e que morreu porqueo Clube da Panasqueira  resolveu enviar a Cebola, aos sábados, um autocarro sem custos acrescidos ao bilhete de entrada no cinema. Era bom! Quanto ao teatro passou a ser no nosso Clube, e fora bastante… Alguém hoje acreditaria, se não houvesse testemunhos disso, que  cinco grupos cénicos, compostos exclusivamente por filhos da Terra, ali  representaram e que todos tiveram um hino?

 Havia uma Filarmónica constituída por muitos membros que abrilhantava as festas de Cebola e todas as festas dos arredores e até no Distrito de Coimbra. Também o grupo de futebol, O Estrela da Serra, do qual hino ainda nos lembra o último verso (”na vida ele há de ser a nossa boa estrela”), semeava o “pânico” por todas as terras onde passava. Que o digam os de Silvares, do Fundão, Tinalhas, Panasqueira, Barroca Grande, etc. Para o meio, era uma “máquina infernal” de fazer golos. Só à Panasqueira que tinha uma boa equipa – dizia-se –, em dois jogos o Estrela marcou 18 golos; 11 na portela, 7 na Panasqueira! Os manos Vítor e Xico destruíam qualquer muralha defensiva ainda que fosse construída com aço e betão! Nunca se empatou nem se perdeu qualquer jogo! Havia ainda em Cebola o Clube, as festas e seus mordomos, além das instituições Junta de Freguesia, Regedoria e Paróquia, sem esquecer o ti Zé retratista que, sebento e envolto em mistério apareceu nos anos trinta, sebento e misterioso viveu sozinho no seu tugúrio e reinou com o seu monopólio na década de quarenta até que morreu, sebento e em mistério tal como tinha chegado. 

Com o surgimento dos kodak’s, o reinado da fotografia passou a ser de um senhor do Terreiro. Depressa essas máquinas proliferaram e o negócio foi-se… Ainda tardariam as polaroides, as digitais, as webs cam’s… as transmissões diretas… lá se chegará em breve…. Havia cantores, compositores, poetas e artistas; tímidos e espontâneos; gagos e repentistas; pedagogos e demagogos, mas doutores e políticos, não. Está a falar-se já da década de cinquenta… e um relógio de pulso custava quinhentos escudos … quase o ordenado mensal de um mineiro!

Depois desses tempos, outros tempos…

Tal como na mitologia grega, em que todo o mal da humanidade terá tido origem na boceta que Pandora abriu por curiosidade, o mal, aqui, ao que parece, terá sido a abertura da mina. Trazia algum bem: o dinheiro, coisa nova, já que antigamente as transações seriam feitas com géneros. Tomara-se-lhe o gosto e jamais se pôde viver sem ele; era uma ilusão: trabalhava-se para comer e mal se vegetava. A ilusão penetrou e a saúde esfumou-se. 

Mas a década de cinquenta estava a declinar. Os anos de juventude dos irreverentes “filhos” do kilo estavam a terminar dando lugar a homens mais conscientes, fortes e viris. Já tinham ido à tropa, uns, outros preparavam-se para ir. E no alvor da década de sessenta, já com outros conhecimentos, adquiridos nas minas pelo contacto, pela comunicação com pessoas de outros lugares, pela troca de ideias, sabia-se que os países que mais sofreram com os conflitos mundiais estavam a transformar-se em economias florescentes, carentes de mão de obra para a reconstrução das suas estruturas abaladas ou destruídas pela Guerra. Da França, Alemanha, Suíça… até do Canadá chegavam rumores dessa necessidade. Concomitantemente, das colónias sopravam ventos anunciando novos conflitos, de lutas pela emancipação. 

Era tempo de pensar…

Pandora, talvez arrependida e envergonhada do mal que causara, abriu a boceta mais um pouco… mais ainda… arrancou a tampa! E viu, assombrada, que, lá bem no fundo, havia algo mais poderoso que todas as desgraças e calamidades que afligiam a humanidade, um Bem que o Mal não pode vencer: a esperança - principal e importante lenitivo e consolo dos desfavorecidos.

Chegara a hora das grandes decisões. 

Já, de algum modo, escorados nas informações e conhecimentos adquiridos, os heroicos e sacrificados mineiros viram a mina destapar-se qual boceta e libertar das entranhas a sempre fugidia e negada esperança por que tanto ansiaram. Agitados pela emoção, logo cavalgaram esse sentimento com alegre e sublime coragem cientes de que estava criada a grande oportunidade de darem verdadeiro rumo às suas vidas, o ensejo para melhorar o próprio futuro e devir dos seus filhos. E então do seu peito transbordou, intenso, um grito uníssono, um clamor fremente e incontido: Basta!...

 …a diáspora começara…

 

Constantino Braz Figueiredo

       Um talo DE CEBOLA

 




 








Pandora - gravuras retiradas da Google