segunda-feira, 25 de maio de 2009

AS FÍMBRIAS DO IMPÉRIO


Não obstante saídas pontuais à Covilhã para tratar de assuntos oficiais inerentes a vulgares exigências de cidadania, com breves visitas para jogar à bola às terras da vertente sul da Gardunha, e a outras do nosso concelho e do concelho do Fundão, foi para ser incorporado no serviço militar obrigatório que pela primeira vez fui arrancado à nossa querida e incomparável Cebola 

Até se me parte o coração por a terem alcunhado com nome de um intrometido que aqui não nasceu, viveu ou parentes teve… À serra não lhes foi permitido, e nem agora nem nunca o será, quer porque cá dorme eternamente o Cebola, o guardião, a quem a Terra durante séculos agradeceu o nome que seus honrados filhos dignamente e sem desdouro exaltaram pelo mundo, quer porque o nome da serra, que logicamente advém da Terra, tem registo nas organizações militares internacionais, e jamais haverá ilustres capazes de subverter a natureza da impossibilidade. 

Com orgulho mas sem apreço por quem levianamente lhe sonegou a mãe, responderá sempre, altaneira, por Serra de Cebola, ou Picoto de Cebola. E apenas sentirá saudades, grandes saudades, de ouvir de novo os maviosos andamentos quando o som emitido pelo badalar dos sinos da torre da igreja se misturava com a bucólica e ressonante parafernália de guizalhos, chocalhos e campainhas das pachorrentas cabras que diariamente a visitavam, atraídas pelos seus viçosos rebentos da mais variada flora rasteira, onde predominavam moitas, tenros carquejais e erva de húmidos e frescos lameiros.

Como se de Ares ou de Marte ou dos famosos e saudáveis ares de Marte tivessem recebido a graça para poderem dispor da nossa vontade, força e espírito para o desempenho de atividades que lhes aprouvesse, desprezando a opinião e interesses pessoais e familiares, favorecendo até, por vezes, alguma imaginação ostensiva e perversa, com foros e privilégios tomados de duvidosa proveniência ética, mas na realidade apenas mandatados pelos políticos, os profissionais dos recrutamentos e distribuição de contingentes destinaram-me como unidade de instrução o BT – Batalhão de Telegrafistas, em Lisboa, hoje Regimento de Transmissões. É perto da Graça, logo a seguir ao largo de Sapadores. 

Mal tinha posto os pés na cosmopolita Santa Apolónia, fui a Campo de Ourique em curta visita ao meu irmão Virgílio e logo me dirigi ao centro de instrução determinado. Desci do autocarro, e com a inevitável mala de cartão, passeio fora, encostado ao muro que contorna o quartel, dum amarelo esbatido pela chuva e pelo sol e encimado com pequenas ameias de castelo medieval, ia avaliando o terreno que, diga-se, pouco tinha de atrativo, e foi com algum acanhamento e ansiedade que cheguei à porta d’armas. Junto à guarita, de obsoleta arma mauser na posição de descanso, estava o guarda ou sentinela ou como lhe queiram chamar:

– Eh você, posso entrar?
– Claro que sim, ele me disse.
E repetiu-mo a berrar
Com medo que o não ouvisse

Entrei, e depois de cumpridas as formalidades de apresentação logo me misturei com a malta que vinha para o mesmo fim. Como não tive dispensa de recolher durante a primeira semana também não saí do quartel. Durante esse tempo, embora me gabasse de ter um sentido de orientação invejável (testei-o dentro das minas, aonde alguns domingos ia sozinho, descendo ou subindo a todos os níveis e galerias para recolher amostras das poeiras, medir os abatimentos do terreno e as pressões das condutas de água e de ar), com as voltas na cidade desconhecida, fiquei sem saber para que lado ficava Santa Apolónia, e, se formos a ver, é logo ali em baixo ao fundo da rua Vale de Santo António. Não será de admirar porque então não havia estes prodigiosos mapas nem acesso à informação que hoje nos é facultada, para não falar do moderníssimo GPS – Sistema de Posicionamento Global. 

Sabia, como todos, mesmo dispensando a bússola, onde era o sul, o norte, a direção da minha Cebola, mas a porta de saída… E um militar que preze a estratégia deve saber sempre o sítio preciso da saída do campo de batalha para uma eventual retirada de emergência, ou, melhor dizendo, para a necessidade de uma fuga apressada, senão está sujeito a ser outro lendário Martim Moniz que numa das investidas dos cruzados ao castelo de Lisboa ficara entalado numa porta, nunca se vindo a saber com exatidão se foi apanhado quando era o primeiro no ataque e empurrado de dentro para fora ao mesmo tempo que de fora para dentro, ou quando, por remota hipótese, era o último a fugir.

Não vou contar episódios nem peripécias de três anos passados na vida militar que me foi imposta, longe disso. É um marco indelével na vida de todos os que por lá andaram. Pouca diferença haverá. No entanto, como vim para Lisboa e para um quartel onde, parece, nunca um mancebo da nossa terra tinha assentado praça, erradamente pensava que alguém dos contrafortes das serras beirãs seria facilmente cilindrado por aquela gajada alfacinha e tripeira que era a grande maioria. Puro engano! Eles eram – tinham de o ser – do meu nível académico (o mais baixo), do meu estatuto social (o mais modesto) e, claro, da minha idade. 

A não ser a diferença de costumes, sotaques e outras expressões culturais, com realce para os idiomáticos e inócuos patuás de Alfama, Madragoa ou Bairro Alto, da repetição de slogans revisteiros do Parque Mayer ou das rábulas do Solnado que ora estavam na berra, e dos dragonados entons das Antas, ou dos atrevidos e maliciosos calões de bulhões ou boavisteiros, das Fontainhas, S. Bento ou Mira Gaia, não havia nada a temer. Assim, quando me perguntavam o nome da minha terra, imediatamente respondia com clareza e calculada altivez: Cebola. Era como se dissesse Lisboa, Paris, Londres ou Nova Iorque! 

Por vezes notava um ligeiro esgar trocista na cara de um ou outro, mas ao verem o orgulho e a dignidade com que pronunciava esse nome, e, em certos casos, o olhar furibundo com que os chispava, o assomo sarcástico logo desaparecia. Valeu-me que os iluminóides lá na terra ainda não tinham atuado, senão lá teria de ser trucidado pelos lanceiros dragons ou embrulhado em folha de alface e botado num contentor do lixo!  Acreditem,  nunca fui alcunhado de cebola, o que, para mim, até nem seria ofensa! Em termos de informação e cultura geral impunha-me sem esforço e depressa passaram a fazer-me perguntas sobre quase tudo. Admirados, queriam então saber o que fazia em Cebola, ao que eu, irónico, respondia que era pastor e que na minha terra todos sabiam mais do que eu. De tal sorte que, aceitando ou não, despistados ou não, confundidos ou não, a breve trecho tudo estava normalizado e o nome Cebola e o ceboleiro montanhês eram acolhidos sem reservas no seio dos tripeiros e alfacinhas .

Bons tempos e bons amigos!...

Falava-se então que na Índia aquilo estava aceso, melindroso, preocupante; que os sathyagrahas (?) – um punhado de ativistas coniventes com as autoridades oficiais, ditos pacifistas, pacifistas que punham bombas nas estradas e vias férreas e ateavam as mechas – haviam tomado os enclaves de Dadrá e Nagar Aveli, perto de Damão; que já havia prisioneiros, feridos, e alguns mortos nas nossas fileiras; que em Goa havia atentados de terroristas chamados libertadores, o que correspondia à verdade. O pior era que o meu quartel estava sempre na primeira linha a enviar contingentes para aqueles territórios, sobretudo radiotelegrafistas … e eu fui escolhido para radiotelegrafista! Ainda me ia calhar a mim…

Antes, já apurado e a saber onde ia ser colocado, escrevi a Salazar. Não foi um ato de coragem, mas de necessidade! Bem sabia que ele não iria ler a carta nem dela teria conhecimento, longe disso, para meu mal. Tinha gabinetes e os gabinetes é que tratam das coisas menores. Escrevia eu, não para Sua Excelência me livrar da tropa, mas para que na data da minha incorporação o meu irmão Zé Gil, que já por lá andava havia um ano, passasse à disponibilidade a fim de ajudar minha mãe a sustentar os quatro filhos mais novos, órfãos de pai, que ainda ficavam a seu cuidado. Parecia-me uma pretensão honesta e exequível. Tive resposta…respondem sempre… é a sua missão, mas nem sim nem não, era mais nim; afinal foi um não rotundo porque eu fui para a tropa, o Zé Gil ficou na tropa por mais um ano e os meus irmãos mais novos ficaram desamparados

Coisas e imposições dum Estado Novo, corporativista, de reverenciada moral, que se não fossem de pronto cumpridas por ousadia de candidato a justiceiro lhe era imposta a masmorra imediata e sumariamente.  Era acatar, concordar e… calar, por mais absurdas que fossem as determinações do poder e seus agentes. E lá me assaltava, de novo, a revolta: Como é que alguém, um governo, uma sociedade dita moderna e progressista, multirracial, pretensamente paladina e respeitadora dos Direitos Universais do Homem podia dispor da vida de um ser humano, quando nem condições, sequer uma migalha, lhe dava para atenuar as necessidades fundamentais dos entes mais queridos? 

Gozemos hoje, já que parece haver mais liberdade para protestar, reclamar e exigir, desfrutemos, faz-nos bem ao ego, mas também tudo não passará de ilusão, afinal é apenas mais um pouco de liberdade de pensamento e de expressão, porque mesmo num estado laico, dito democrático, é muito difícil ou mesmo impossível fazer prevalecer as razões que às vezes nos sobejam, e depressa chegaremos à conclusão de que, do mais alto ao mais baixo, do mais poderoso ao mais humilde, só encontraremos mais libertinagem, mais vícios e abusos, e menos respeito pelo cumprimento dos deveres e pela liberdade na verdadeira aceção da palavra.

Mas parece que tudo tinha explicação: O Zé Gil era de Infantaria. Andava lá por Tomar, Tancos, Santa Margarida em alta missão para conter as ameaças de discos voadores, e outros voadores de formas esquisitas, a que atribuíram o nome de OVNIS, onde estavam incluídas algumas classes de mosquitos e gafanhotos que pairavam aquela região. Era tido como atirador especial, sobretudo antiaéreo, e operador de elevado sentido tático e posicional… à mesa do refeitório… Com cada tiro era certo que abatia um veículo extraterrestre, seis gafanhotos marcianos e vinte mosquitos plutoides! Quanto aos caranguejos de Vega, como conta Carl Sagan em “Contacto”, não, porque esses, quando muito, ficaram-se pelas praias do litoral… na jurisdição dos fuzileiros! Também não lhes gabo a sorte!… 

Assim, voltando ao Zé Gil, como poderia alguém tão eficaz ser dispensado para dar alimento aos irmãos e cuidar da sua mãe? Que morressem de fome, a pátria é que tinha de ser salva daqueles estranhos e ferozes inimigos…

Prioridades são prioritárias!

No concernente ao meu estatuto, vim a saber depois que fora designado para feitos quase tão importantes como os do meu irmão. Não o eram porque os meus serviços seriam prestados longe da pátria-mãe, salvo seja… Alguém – eminências pardas - atuava na sombra e seguia o meu percurso utilizando satélites e outras sofisticadas tecnologias, exceto chips porque ainda não os conhecia, transmitindo em contínuo todas as informações às entidades do mais alto nível planetário.

O mundo estava em suspense…

Pandita Nehru, grande alma, como aliás seria exigível a um dos mais brilhantes discentes e fiéis seguidores de Mahatma Gandhi, negociava com o governo português a entrega dos territórios, dos sinos da Velha Goa e das bombardas de Diu, de Afonso de Albuquerque, Constantino de Bragança e de S. Francisco Xavier, tentando, para não trair a doutrina do mestre, lograr os seus intentos pela apologia da vitória sem agressão. Por outro lado, o governo português, arguto e diplomático, tudo fazia para explorar psicologicamente o apregoado e reconhecido pacifismo do chefe da potência negociante, além de politicamente confiar na diplomacia e persuasão das velhas alianças ocidentais (sobretudo Inglaterra e Estados Unidos), alianças que lhe viriam a ser tão falsas como dizem que foi a de Judas Iscariotes,,, – creio que foi aí que deram por que já estavam orgulhosamente sós. Salazar, casmurro, nada tinha aprendido com o Ultimato Inglês… 

Os argumentos esgrimidos por ambas as partes falhavam rotundamente em todas as etapas de conversações, e Nehru, o pacifista, começava a encrespar-se. Mas Salazar era macaco… raposa velha! Tinha um trunfo, melhor, uma arma secreta… O que seria, quem seria... se acaso se tratava de alguma coisa ou de alguém, só ele, os servidores de maior confiança e as altas esferas das potências mundiais o sabiam… Excitado, de pé, com os secretários e conselheiros em redor sem ousarem proferir palavra, botou um olhar de esguelha e desconfiado à sua cadeira… e, perentório, com o indicador espetado na direção do mais próximo, mandou; decretou; impôs: mobilizem o tal de Cebola! Ele que avance imediatamente. Top secret! Dera a sua ordem, e jamais haveria atrevimento ou conselheiro capaz de o dissuadir…

E é aqui que começa o meu trabalho; e é aqui que começo a compreender por que vim aqui parar. Salazar, talvez socorrendo-se de conhecimentos rudimentares que terá aprendido lá por Coimbra, quando jovem, sobre teorias e leis de atrações e repulsões de eletricidade e magnetismo de Ampère, Coloumb; de Joule, Faraday e Newton; ou matutando em estudos orientais sobre yang e yin de Fou-Hi ou Lao-Tse, queria anular um homem altamente pacífico opondo-lhe um outro totalmente inofensivo, seguindo o princípio da neutralização magnética ou atómica… ou cósmica! – Haveria ou haverá coisa assim?!... – Dois polos da mesma espécie não se tocam, não lutam; repelem-se, afastam-se, logo não haverá guerra entre eles porque são ou tornam-se reciprocamente inelutáveis!... Parece inteligente, com alguma lógica, sem dúvida, mas nunca chegou a explicar se o seu raciocínio se baseava em realidade experimental ou empírica, cientificamente comprovada, ou se era fruto de alguma incursão ao misterioso campo gravitacional do esoterismo…

Impunha-se  agir sem demora!

Ainda não tinha jurado bandeira e já estava mobilizado para seguir para a Índia. Para Salazar a paz voltaria aos territórios logo que eu lá chegasse! 

Era esperar para ver…

Não foi preciso chegar! Ainda no barco, e logo que passou o temporal que nos fustigou e perseguiu até se perderem de vista as Colunas de Hércules, e quando já quase todos recuperavam do alijar da carga ao mar, começaram a chegar-me notícias de que Pandita Nehru já recebia mensagens dos donos do mundo, dos senhores das guerras ativas, das guerras frias, mornas ou mortas, dos senhores dos países alinhados, não alinhados e desalinhados, de Nikita Khrushchev, John Kennedy, do Bando dos Quatro, Mão Tsé-tung, Liu Chao-chi, Chu En-lai, Harold McMilan, Charles De Gaulle…, para que suspendesse imediatamente todas as atividades hostis a Portugal, dado que avançava a todo o vapor a tal arma secreta portuguesa de que já há algum tempo se falava nos meandros das bem informadas e sofisticadas polícias secretas internacionais e dos enigmáticos, sombrios e eficientes agentes da espionagem mundial.

Pelo sim pelo não, Nehru que não sentia qualquer vocação para se tornar herói (não compreendia os heróis e até lhe causavam um certo desprezo), achou que era melhor parar, e parou! Não acreditava muito no que lhe diziam – arma secreta inofensiva? Hum! Dá para rir! Mas, filosoficamente como sempre o fazia, pensou em deixar amadurecer o assunto; o tempo se encarregaria de clarificar as suas razões ou os seus receios… E foi assim que, chegado lá, nem mais um tiro, nem mais uma bomba! Apenas encontrava gente da maior simpatia - afável, digna, prestável, inteligente e conhecedora da História.

Andei por todo o lado, fui várias vezes à fronteira como radiotelegrafista numa máquina sobre carris, dotada de vários equipamentos e pessoal especializado em todo o tipo de minas e armadilhas, que patrulhava a via-férrea – ora cortada, mas que antes ligava Mormugão a Bombaim ou Mumbai, a cidade mais populosa do mundo –, em missão de reconhecimento. Nunca senti a sensação de velocidade como foi o andar naquela máquina, creio que dava pelo nome de drysean ou coisa parecida. Tinha-se a impressão de que os montes, as árvores, as pessoas, as coisas eram atraídas ou aspiradas até nós. E ainda o TGV estava longe do sonho humano…! Estive destacado nos postos de rádio de cidades como Pondá, Vasco da Gama, Pangim, a capital; fui a Mormugão, a Velha Goa, Bicholim, Margão, Mapuçá… Nada! Uma paz que até me fazia guerra! 

Depois daquele marasmo, com vinte e seis meses decorridos, acharam por bem devolver-me a Cebola! Estávamos em sessenta e um… e lá me atiraram para um quadrimotor que demorou trinta e oito horas – só no ar – para poisar na Portela. Havia saído de Goa à terça e cheguei à quinta, com dormida em Barhein e outras pausas para abastecimento e manutenção técnica no Cairo e Tripoli.

Já na peluda, detive-me ainda alguns dias em Lisboa para, enfim, gozar um pouco a vida da grande urbe, com a sensação de liberdade que a roupa civil me conferia. Só quando cheguei ao Fundão telefonei então para a Terra a avisar da minha chegada na carreira da noite. E logo o Xico Moleiro, sempre em cima do acontecimento, em poucas horas arranjou um prestigiado grupo de músicos, tantos quantos conseguira encontrar disponíveis, e com eles me esperou a dar as boas-vindas, e com eles botou palavras de improviso ao Terreiro, à Eira e à Costa, anunciando ao povo, qual arauto dos tempos modernos, a chegada do mais modesto e inofensivo, mas vitorioso filho da Terra, porque um homem de Cebola nunca perdeu e jamais perderá uma guerra. Falava como se, comigo, transportasse a aura de herói nacional! Saberia o Xico da marosca de Salazar?...

Entretanto, no gabinete de Nehru começavam a entrar telegramas codificados com a assinatura dos mesmos que lhe haviam recomendado a suspensão das atividades anexantes, e todos continham a mesma frase: arma secreta regressou às origens e está inoperante. A si cabe decidir! E Nehru decidiu – invadiu Goa, Damão e Diu alguns meses depois de eu sair, ainda não se escoara o ano de sessenta e um!... Foi só o tempo de preparar o assalto, cuja violência foi dispensada porque na receção aos atacantes estava um Homem de caráter, inteligente e ponderado, o grisalho governador Vassalo e Silva. 

Ao mesmo tempo, aqui, no Continente, o Governo chefiado por Salazar transmitia ao povo as precisas palavras com que tinha exortado o Governador: combater, combater até ao último homem. Ele sabia que não, mas quis-nos fazer crer que se combatia ferozmente, palmo a palmo, em todas as frentes e que os indianos, desmoralizados, em algumas zonas até já fugiam. Quando, enfim, admitiu que os territórios tinham sido anexados sem sequer ser necessário desembainhar a espada, levantou-se, deu um chega p’ra lá na cadeira, olhou-a com desprezo, e, contra o seu costume, deixaria escapar uma quase impercetível censura, demasiado pejorativa para os destinatários, pelo que me dispenso de a referir…!

– Mas a culpa talvez seja minha – acrescentou –, porque autorizei o regresso do tal de Cebola! Porquê o deixei vir embora?! Porquê? E, mais pensativo, talvez com problemas de consciência, foi dizendo: Se, ainda assim, não tenho assinado aquele miserável decreto que matou Cebola, substituindo o seu nobre nome, a sua essência, por nome de intruso importado, talvez… talvez..., mas isso tirou-me a moral para lhe exigir maior sacrifício!

Quis ficar só e, meditando, delongou-se em vagarosos passeios pelo espaçoso gabinete. Por fim, já mais calmo, dirigiu-se de novo para a secretária, abanou a cadeira para ver se ao menos ela estava segura, e voltou a sentar-se. Com o olhar distante, ali permaneceu largos minutos, várias horas, anos, uma vida… talvez revendo os oito séculos de História da sua amada pátria, desde Afonso Henriques até ele próprio…! Estava triste! Muito preocupado. Perdera as joias da coroa, a terra dos vice-reis!... Sofria! Mas com o pragmatismo que estudara do filósofo americano, quase seu coetâneo, William James, pouco a pouco foi esvaziando a mente deste problema por se tratar de um facto consumado, sem retorno. Nada mais haveria a fazer! A sua reflexão e temor concentravam-se agora nas colónias africanas, onde os movimentos de libertação, já armados e organizados, começavam a sua marcha rumo à independência…

Estranhando a demora, alguém muito próximo e da sua inteira confiança, com redobrado cuidado e respeito, atreveu-se a espreitar por uma nesga da porta, ouvindo nitidamente este inquietante solilóquio:

– Os ratos começaram a esboroar as fímbrias do Império…

Constantino Braz Figueiredo







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