domingo, 27 de junho de 2010


Detrás de serra


Sempre que em Cebola aparecia algum estranho procurando casa, com ares de quem se queria fixar, quase sempre negociantes de gado e correlativos, ou gente de ofícios como alfaiates, sapateiros e afins, o povo, curioso, naturalmente, perguntava-se:

 – De onde será?

E o mesmo povo respondia-se, perentória e invariavelmente – “de detrás de serra”.

 Detrás de serra! …

 Que melhor expressão para definir habitantes de algum lugar indefinido que ficasse por trás daquele enorme maciço bicéfalo, uma barreira natural quase intransponível que nos vedava o contacto visual com as terras que sabíamos existirem, mas a cujo acesso estávamos quase impossibilitados, a menos que um caso de força maior o exigisse ou a causa fosse digna de tal sacrifício? Bem ouvíamos falar, além das vilas e cidades, dos concelhos mais conhecidos, de aldeias e lugarejos como Aldeia das Dez, Alva, Avô, Coja, Covanca, Fajão, Fórnea, Loriga, Piódão, Souto, Teixeira, Varandas, Vide e outros recessos quase ignorados…  mas ir lá!... Por mim falo: nunca encontrei motivo que me atraísse a tais aventuras! É que, para guindar até àquelas culminâncias os quilitos com que fui gratificado pela medrança, mais as broas amarelas da tiá Olívia, a cinco paus cada uma, e os caldos de couves e feijões, era preciso ter boa corda nos sapatos, quase os únicos meios de locomoção daquele tempo em Cebola, rijas canetas e ar puro nos pulmões.

 Houve gente, muita gente, quase toda a gente, que nasceu, cresceu, viveu em Cebola e morreu sem nunca ter o atrevimento de agchör até ao cume. Não havia atalhos, nem veredas ou carreiros, quem ia, ia a direito que era o melhor caminho, além de ser o mais curto.  Só me lembro de uma vez ter-se organizado uma patuscada, mesmo, mesmo no picoto. Convidou-se uma cozinheira e alugaram-se duas mulas para carregarem com as provisões. O almoço, couvada cujo bacalhau foi adquirido no “armazém de víveres” da Panasqueira e bifanas na brasa do talho poucochinho, uma salada com todos e dois ou três garrafões com “tinto”. Estava um dia magnífico; visibilidade boa, apenas com alguma neblina nos vales e barrocos mais húmidos das encostas a norte. Sem binóculos (havia lá dinheiro para tal luxo!...), não se distinguia Coimbra e dizia-se que era possível.

 Detrás de serra…

 Se, depois de ter vencido aqueles obstáculos naturais, alguém aproava às portas de Cebola, pelos cabecinhos, pelo rodeio ou pela porta de honra que era o saudoso passadiço, fosse de qualquer terra de outro concelho, desde que supostamente ficasse abrangido por um arco imaginário de mais ou menos cento e oitenta graus, calculado desde o sopé do Vale de Cerdeira (porcim) e traçado, pelo Norte, até à portela, o povo, de ordinário, logo os rotulava como sendo de “detrás de serra”. E com justificada razão, porquanto quem viesse de outros quadrantes o seu destino seria as minas, logo se deduzindo que vinha à procura de emprego e uma vez encontrado, que ao tempo nem difícil era, por lá ficava, enquanto os que chegavam a Cebola, poucos, era para exploração de negócios ou para trabalharem nas suas profissões, expectando, como modo de vida honesta que a todos isso é legítimo, predar o dinheiro – dinheiro vivo – trazido pelos que labutavam nas artes volframistas.

 A princípio, o povo, não os olhava com desconfiança, mantendo-se, contudo, atento, em estudo e avaliação contínua, e só depois da habituação e sem atos que dessem motivo para reparo os acolhia sem mais reservas. Pior para eles era a concorrência já instalada … mas, enfim, dificuldades há sempre em qualquer atividade. 

 Uma coisa ressaltava logo nos primeiros contactos, eram ainda de cultura e conhecimentos um tanto fossilizados, embora pessoas de bem.  Rara exceção era aquela arsénica árvore, um indivíduo que depois de lá viver muitos anos, com família constituída e o seu “arranjo” já consolidado, se passeava gritando: “eu, da cinta pra cima é só veneno”. Como olhássemos e não vislumbrássemos inimigo por perto, logo depreendíamos que era unicamente para se afirmar e ser temido, mais que respeitado. E como o veneno não sai da cinta para cima, a não ser que, por hipótese precária, saísse dissimulado através da cera dos ouvidos, das lágrimas, do ranho ou da saliva cuspida em gafanhotos planadores, deixou por aí, teria de deixar, o nosso ilustre “homem de fora”, que veio de “detrás de serra” com certeza, atávicos rebentos de terceira geração, logicamente saídos por baixo.

 Algo reservados, lá se atreviam de quando em vez a tomar um copito no Pedôa, ti Aurélio ou no Bagão … e a tentar conversar… Mas as conversas nunca versavam assuntos que nós, os mais novos, pela vivência nas minas (não me canso de dizê-lo), pelos livros, jornais e revistas que líamos, pelos filmes que víamos na Panasqueira, pelo intercâmbio desportivo, pela atividade na prestigiada filarmónica, as representações teatrais, as manifestações lúdicas e de entretenimento, como campeonatos de sueca, damas, dominó e até da malha e do “burro” (o “burro – quem não se lembra? – consistia em “fitar” vinténs para cima de um caixote voltado, com a superfície dividida em retângulos numerados de um a dez e um buraquito redondo na parte posterior, que tinha pontuação bonificada com a introdução do vintém atirado da distância regulamentar), pela participação em instituições e associações, em tertúlias temáticas – a grande convivência, enfim, da gente de uma urbe a transbordar de juventude.

 Podíamos então falar, além dos problemas do trabalho quotidiano e das atividades da nossa terra, dissecar e discutir sobre os bestsellers da literatura, do rokc and roll e do seu rei Elvis Presley, dos tenores Enrico Caruso e Mário Lanza, Alberto Ribeiro e Luís Piçarra, de Pedro Infante, o monstro da canção mexicana e mundial, dos mais famosos temas cinéfilos vistos nos melhores filmes bíblicos de Cecil B. de Mill, de aventuras de amor, de pirataria e “capispada”  de  Errol Flynn, as interpretações de Burt Lancaster como em Trapézio, e Westerns com John Wayne e Gary Cooper, da beleza de Ava Gardner, Gina Lollobrigida, Sophia Loren, B.B. e M.M., das lindas pernas de Esther Williams e Kim Novak, falar do que no mundo se passava no desporto automóvel, no ciclismo, futebol e em todos os outros eventos desde que tivessem destaque nos média e na opinião pública… Diga-se, em abono da verdade, que em certos núcleos sedimentares, havia ainda quem contasse episódios de crendices, no entanto  sempre com o rótulo de coisas passadas antigamente, se calhar antes da chegada do Cebola.

 Ao invés, alguns vindos de “detrás de serra”, ficavam como peixe na água se alguém esporadicamente abria um tópico sobre ciências ocultas, com almas do outro mundo e almas penadas. Então era ouvir verdadeiros tratados de sombras e assombrações; delírios, fantasmas, fetiches e fantasias; danças de bruxas, guinchos de vampiros e uivos de lobisomens; abracadabras, luas vermelhas, portelas e cruzes de caminhos dentro de matas cerradas e sombrias; espantalhos, desgraças e enguiços; mascotes, gatos pretos, sapos e morcegos; facas, sangue e alguidares; maus-olhados e chinelos de trança; amuletos. figas, juras, pragas, superstições e maldições; espíritos malignos, feitiços e feiticeiras; videntes, curas, benzeduras, possessões e esconjuros. Um rol que não tinha fim…

 No presente - naquele presente - o mais longe que se ia, em Cebola, era que existia o medo, medo objetivo, de coisas concretas, medo de perigos reais, como todos devem sentir, embora sem exageros nem covardias.

 Já o medo incorpóreo, aquele misticismo que povoa e cria a demência nos fracos espíritos, e infelizmente comum onde a iliteracia domina e a religião impera, está em todo o lado porque esse medo tem sempre um hospedeiro – nunca está só porque está com quem o tem e vem com quem o traz ou vai com quem o leva. Lá que gosta de boleia, gosta!...

 Hoje e amanhã como ontem existiram, existem e hão de existir fraquezas humanas, advindas pela hereditariedade ou pelas vivências a que esses pacientes inconfessos foram ou estiveram sujeitos pela educação obscurante e fanatismo religioso que lhes foi inculcado. Para essas patologias e para os oportunistas iluminados em transes espirituais, já não há curandeiros, bruxas, astrólogos e tarólogos, nem inspirações virtuosas de ladeiras ou de covas que lhes valham … não chegarão horóscopos e planetas em trânsito, nem as doze casas do Zodíaco elevadas à máxima potência.

 Mas, felizmente, hoje em dia, existem prestigiados técnicos de psicologia, psiquiatria e psicanálise – os únicos terapeutas que, em vez da aplicação de mezinhas caseiras peregrinas  e perigosas se continuadas, apenas com a verdade científica os poderão ajudar nessas enfermidades mentais. Que façam, pois, um esforço: que tratem a disfunção espiritual que parece não ter cura – mas terá, no sítio e com as pessoas certas!

Foi então neste contexto – já lá vão mais de sessenta anos – que, inopinadamente, houve um brado, um toque a rebate, um grande alarido por causa de uma veemente jura a pés juntos de que um fantasma, uma alma penada, atacara lá para os lados do corredouro.

E quem sofreu o insólito ataque, veio de “detrás de serra”, vá lá saber-se donde. Era um homem alto, magro, ainda novo, tido como “pessoa de bem”, com a arte de sapateiro ou alfaiate ou albardeiro, já não me recordo bem, eu tinha uns onze doze anos, alugou uma casa e, com a família e a oficina, instalou-se ali para os lados da cruz da rua. Um dia, resolveu ir ao talho comprar uma dobrada (os bifes eram caros e não havia negócio nem carteira que a eles chegasse). A sua mulher, à falta de feijão branco, serviu-se de uns restos de grão-de-bico e, por não ter tempo para o demolho que duraria pelo menos dois dias, arriscou cozinhá-los pensando que era só deixá-los mais tempo a ferver. Deu para o almoço para toda a família e ainda sobrou um bom prato que o nosso homem não resistindo ao cheiro ou à falta de alternativa comeu ao jantar. Jantou.

 

Como não houvesse muito trabalho nem televisão para passar o tempo, foi deitar-se com o estômago já em ligeiros soluços ou convulsões espasmódicas. Por lhe ter caído em cima dose igual àquela do almoço ainda mal digerida, o estômago, num ato de boa vontade, tentou resolver o problema pondo toda a sua química em alerta e pronta para uma emergência. Mas não encontrando mecânica adequada para resolver a questão, pragmático e eficaz, resolveu que o melhor era expulsar aquelas bolinhas malcozidas e intragáveis, e vai daí atirou-as para o intestino delgado. Mas o intestino delgado, não tendo condições para tratar esta matéria, rejeitou-a também enviando-a ao intestino grosso. “Grão a grão enche a galinha o papo”, ou, melhor dizendo, grão a grão se atesta a tripa! O homem ia-se contorcendo, voltava-se, esperneava, tentava adormecer na esperança que aquilo passasse. Era a sério, começou a sentir as tripas revoltadas, a fazer força para, também elas, expurgarem de uma vez a intratável mixórdia.

Tinha de fazer alguma coisa… levantou-se, enfiou umas calças que não abotoou e uns sapatos que não atacou e desatou a correr para as hortas perto do casarão. Entrou por uma cancela que por sinal até estava aberta, dobrou-se e zás … despejou em catadupa toda aquela excrementícia. Com o alijar repentino da carga, os grãos ainda redondos, inteiros, tal como tinham sido engolidos pela sofreguidão do lauto manjar, espalharam-se quais bolas de berlinde ou zagalotes de caça às lebres em várias direções.

Foi quando ouviu claramente ouvido o que lhe pareceu ser uma saudável e estrondosa gargalhada saída de debaixo do rabo. O seu instinto logo lhe disse que se as suas tripas lhe doíam com os corpos conhecidos (tripas e bucho de uma vaca misturadas com grão), aquilo que ouvia, uma risada saída do chão só poderia ser de coisa do outro mundo, certamente do fantasma de alguém que deixou a terra e andava agora expiando pecados mal resolvidos. Sentiu tal arrepio que quase o paralisou. E a sua mente já abalada com o sofrimento tripeiro, só pôde reagir fugindo, porque, sem margem de erro, só riam assim almas do inferno perdidas na procura de perdão. E, calças na mão, ainda ouvindo as terríveis gargalhadas, correu, correu … tateou o passadiço, guiou-se pelos telhados para não esbarrar com as paredes e, demolido pelo susto e pelo cansaço, lá chegou a casa.

Já não se deitou e contou à mulher; amanheceu, foi tomar o mata-bicho, para o matar de facto, e narrou a odisseia a quem o quis ouvir; a sua mulher foi logo à fonte e disse às que enchiam o regador, e foi à primeira missa onde segredou a novidade. Daí a pouco toda a povoação, incrédula, falava em almas do outro mundo, e o homem mais a sua família, borrados de medo, em três dias desapareceram de Cebola, deixando vaga a casa e o que fora o seu atelier.

 Pouco tempo depois, ouvi contar uma história a um moço, mais velho que eu uns quatro ou cinco anos, bastante pândego aliás,  que, regressando do trabalho, ele e mais dois  foram gamar umas peras, ou maçãs ou figos ou as três coisas a uma horta que por ali havia, pertencente aos Pereira ou aos Branco ou aos Alves, talvez aos Covita, com árvores carregadas de boa fruta,  eis senão quando, no meio do ato do furto, entra alguém a correr pela cancela que eles só tiveram tempo para deitar-se ao comprido.

Logo verificaram que o homem que entrou não era o dono e o que queria era aliviar-se. Com tanto azar que o fez mesmo junto à cara dele, que não bulia e continha a respiração para não ser reconhecido. Contou ainda que, ao bater-lhe um grão no nariz, achou a isso graça e, pelo caricato da situação, não se conteve sem soltar uma estridente gargalhada, e mais se riu quando viu o homem arrancar atrapalhado, correndo e segurando as calças como podia, deixando-os de vez em paz para acabarem o seu trabalhinho.

Retirámos porém a ilação de que homens de fora nos querem impingir fantasmas, e não só os ignorantes como aquele de “detrás de serra”, mas também outros mais sabidos, com a apresentação de trabalhos literários travestidos de humanitárias roupagens, que, se o intruso e adotado Jorge, um fantasma inglês, aceita por desconhecer e não compreender o intrínseco sentir e caráter sadio deste povo, dado ser, também ele, um forasteiro, um homem de fora, de de “detrás de serra”, embora de outra serra, o Cebola, o legítimo e verdadeiro pai da terra, o pai biológico, jamais aceitaria.

 Constantino Braz Figueiredo


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