terça-feira, 30 de junho de 2009

Vamos ao Clube

Ainda sem grande esforço, puxo mais uma vez pelo memorial – memorial de memória nua, desprovida de quaisquer apontamentos ou testemunhos – que me parece inesgotável. Porém, nem tudo será, sempre, digno de ser contado, pelo que já vou optando pelo retraimento a fim de livrar eventuais leitores de assuntos inteiramente subjetivos, frívolos ou triviais, e também, tanto quanto possível, preservar-me do ridículo. De qualquer modo, quando se trata de estórias vividas pela comunidade cebolense, a que assisti, sofro e não contenho a tentação de as partilhar, ainda que a priori possam, mesmo assim, ser qualificadas de dispensáveis, sem interesse.

 Pois que o sejam!

 Conto na mesma!...

 Já não era desconhecida para a esmagadora maioria do povo de Cebola. Sim, aquela pequena caixa com ecrã que por magia, em direto, nos trazia as notícias, os espetáculos de variedades, as cantigas, o teatro, o folclore e o futebol como se lá estivéssemos na hora em que aconteciam, passou a ser tema de “converseiro” e entretém nos serões de sábado e tardes de domingo. A grande maioria tinha-a visto já durante a tropa, nas cidades que visitaram, nos clubes da Panasqueira e Barroca Grande, noutras terras das redondezas onde a eletricidade havia sido instalada com avanço quase secular, embora, essa eletricidade, a das Minas, a tivéssemos ali há muito tempo, a dois passos, ou a vê-la passar atravessando, em escandalosa provocação, o “nosso” cabeço carvalheiro.

 Que tristeza! Que mal sucedidos foram os autarcas de então; não tanto por falta de coragem, tenho a certeza, mas pelo cerceado poder reivindicativo, apanágio decursivo do jugo implantado pelos altos poderes instituídos!

 Mas chegou, enfim, também lá à nossa terra, a alta tensão com seus raios e coriscos. A princípio forçosamente imperfeita pela natureza da incipiência - as ruas mal iluminadas, escuras e com clareiras amarelas, vultos aparecendo e desaparecendo na noite e a continuação das casas alumiadas com candeias, velas e candeeiros a petróleo. Mas passados cerca de dois anos, já então com muitas casas iluminadas, o Clube incluído, caminho aberto para se instalar a televisão.   

 A televisão, com as sombras, a inevitável “chuva”, as riscas verticais, riscas horizontais, em scrool, e por vezes com o total desaparecimento da imagem, mas apenas com quatro anos de atraso em relação a Lisboa – vendo bem, se compararmos com outras coisas, nem era assim tanto tempo!...

 A eletricidade fora inaugurada creio que em finais de 59, e eu, por circunstâncias de força maior, não assisti aos festejos. Mas vi a chegada da televisão, e vi a curiosidade e o regozijo dos conterrâneos, talvez pelo convencimento de que já estavam a ser reconhecidos como gente preparada para ingressar nas tertúlias do progresso!… Para além das instituições religiosas, desportivas e culturais, de fazer inveja a muito bom povo das redondezas, já havia a carreira, o telefone, os correios, o carteiro, agora a luz, a televisão – a gente estava a subir na vida… Para onde ia então a caixinha de surpresas? Para o Clube, pois então… E mais outra – só mais outra – para o “t’Jorge”, Sebastião e irmãos, comprada pelos pais, pois claro. Mas era deles, muito particular… particularíssima.  Com todo o direito.

 E nós?

 Vamos ao Clube!

 Também nas grandes cidades como Lisboa, a esmagadora maioria das famílias, passados três ou quatro anos ainda iam para as coletividades, e enchiam os cafés só para ver televisão. Fui testemunha disso…. Só depois, pouco a pouco, foram pejando os telhados com os captadores de ondas eletromagnéticas, dando o triste espetáculo que ainda hoje podemos presenciar, ao ver as florestas de antenas sobre as casas dos bairros antigos. E o sinal deixava, também aqui, muito a desejar, pelo que cada um procurava sempre suplantar o vizinho com a última novidade desse indispensável requisito.

 Vamos ao Clube! À nossa Coletividade…

 Nada de vergonhas!

 É pra se ver!

 Lembro, a propósito, que quando era um garoto de cinco ou seis anos e estava com o meu irmão Alexandre (ele tinha mais quase cinco anos que eu, mas onde ele estava, por perto andava o Constantino) a ouvir um relato de futebol na loja do Pedoa),  de ele me dizer que “qualquer dia vemos o jogo, bola e jogadores num rádio assim”. “Como? – perguntei eu – O campo em cima do rádio? E os jogadores e a bola não caem”? “Não! – disse ele – Parece-me que não! Na América inventaram um rádio com um vidro à frente como um espelho que vê os campos e chega a todo o mundo”.

 Nunca tinha visto cinema e fiquei pensativo, algo baralhado!... Mais tarde soube que havia algumas diferenças. E a menor não era com certeza o convencimento instalado pela propaganda ocidental de que todos os inventos teriam de vir obrigatoriamente da América, mas não! Embora todas as potências com cientistas e tecnologia avançada tivessem contribuído para o grande sucesso, franceses, ingleses, alemães e russos começaram as emissões algum tempo antes dos americanos, os três primeiros em emissões experimentais e os russos, a partir de 39, já com emissões regulares.

 Agora ali estava ela, azadinha, no nosso Clube!

 E via-se, bastava olhar para o tal vidro da frente, o tal espelho…e ninguém caía, nem a bola fugia!

 E via-se!…

 Ainda com pouca qualidade porque as antenas difusoras – creio que as mais próximas eram as da serra da Lousã – não estavam tão perto como depois vieram a ficar, mas dava para enxergar, a duas cores, e reconhecer locutores pivots de noticiários e animadores e relatores de atividades culturais e desportivas como Pedro Moutinho, Jorge Alves, Igrejas Caeiro, Artur Agostinho… atuações de Simone de Oliveira, António Calvário, Madalena Inglesias,  Artur Garcia, o Max … filmes com o Vasco Santana, António Silva, “Ribeirinho”, Laura Alves, Beatriz Costa, Hermínia Silva, Milú… o teatro com Amélia Rey Colaço, José Viana, Armando Cortês, Jacinto Ramos… os “Serões para Trabalhadores”, as festas de folclore nacional e as marchas dos santos populares … o futebol do Eusébio, Coluna, Puskas, Di Stefano… Lá assistimos, em direto, às finais da taça dos campeões europeus  de 61 e 62 com o Benfica a vencer respetivamente Barcelona e Real Madrid.

 O Clube, nessa altura, tinha como presidente o sr. Tomás. Era um senhor que não era filho da terra. Trabalhava nos escritórios da Barroca Grande, casou em Cebola, onde passou a morar e, sendo de trato afável, era muito conceituado e respeitado. Daí que merecesse o cargo de presidente. Enfim, presidente do Clube era, também, por inerência, presidente da “caixinha mágica”! E ele assumiu mais esse cargo sem discurso nem embaraço…. Então, como bom administrador, porque a Instituição precisava de fundos para melhoramentos e equipamentos lúdicos, logo tratou de rentabilizar a novidade. Servindo-se de algumas cadeiras já existentes, arranjou mais uma data de bancos corridos, sem costas, parecidos com os da matança do porco, daqueles que faziam os lugares da “geral” no barracão do cinema do Corredouro, e vai daí montou uma plateia digna de um qualquer coliseu…

 Mandou colocar a televisão no palco, bem ao centro, em cima de um pequeno escadote dissimulado por um pano colorido que talvez tivesse sido colcha de seda ou de cambraia, ou modesto e desgastado cortinado de qualquer janela, e ele próprio se incumbia de a acender, encontrar o supremo sinal das ondas de modulação hertzianas, sintonizar as frequências e depois rodar o botão off para descanso noturno. Comutação de canais é que não porque só havia um. Que felicidade a dele quando tudo resultava e via a assembleia satisfeita com os espetáculos e que tristeza e aflição quando não a conseguia satisfazer por mais que rodasse os botões. Por vezes, acontecia que estava a passar um filme da estranja e ele olhava e via o povo aborrecido, então dizia que não conseguia apanhar a nossa e que tivessem paciência… que vissem o canal italiano, porque era o que, de momento, conseguia encontrar.

 A plateia era composta pelos sócios que nada mais pagavam além da quota mensal e pelos não sócios que pagavam a módica quantia de 2$50 (vinte e cinco tostões, dois escudos e cinquenta centavos) por sessão. Tanto como subir ao pedestal do Cristo-Rei, em Almada, por isso lhe chamavam o “papa 25, ao pedestal, claro! A princípio ainda houve uma certa relutância sobretudo por parte de algumas mulheres mais dadas à “salvação”:

 – Ó D’jazus, vás hoij à telvisen? – perguntava a vizinha como a querer arranjar companhia…

–Vo, Maria, mas-ëi mai log, depos de cuider du më Manel. Ma num së séi pecad…

– Num, num éi! Já perguntë o padr e el dix q’num era…. Olha, diz à Piadad s tamaem quer ire.

 O Clube tornava-se então o local de convergência das pessoas que vinham desde a Ponte aos Cabecinhos, da Abesseira ao Pombal. A plateia abarrotava de gente entusiasmada para ver os filmes portugueses, as cantorias e sobretudo o folclore popular.

 E num dia de maior expetativa, um domingo à tarde, quando se esperava grande animação, o Sr. Tomás bem rodava os botões do aparelho que, teimosamente, lhe fugia para outros comprimentos de onda; batia-lhe ao de leve com os nós dos dedos em cima, nos lados. Já nervoso, quase a agitava. Ouvia-se qualquer coisa imitando um ruído, mas, de folclore… patavina. Ele estava cansado, desanimado. O povo há muito que passara da impaciência ao desespero. Nesta altura reinava um contido silêncio por cumplicidade e empatia com a luta do presidente! Apenas nalgumas mesas postadas aos cantos da sala, ainda ativas com o dominó e a sueca, se ouvia o cuidadoso poisar das pedras ou o sussurrar dos jogadores de cartas. Não fossem os “brandos costumes” dum povo ordeiro e de tradicional conduta pacífica e qualquer pretexto poderia dar lugar a um motim! Levantou-se então uma mulher da fila da frente, decidida, mas mais nervosa do que corajosa, e todos os olhares se voltaram, pregando-se nela. A curiosidade vencera os poderes televisivos. E quando a todos pareceu que iria botar discurso ou liderar o descontentamento geral, apenas se lhe ouviu dizer com a maior brandura e simplicidade:

 – Ó snhô Tomás, ponha ranchos!

 Constantino Braz Figueiredo

 

 







sábado, 27 de junho de 2009

Bye-bye, pintor


 

Por um singular acaso, que propositadamente omito porque nada acrescentaria a esta história, certo dia bateu-me à porta um sujeito que dizia ser pintor de quadros a óleo e desenhos a carvão. Disse-me que não era conhecido porque não tinha condições para trabalhar nem espaço para expor. Ao analisar a questão, abri-lhe as portas de um barracão semiabandonado que possuía nas traseiras de minha casa, e porque sempre fui tido como um ferrenho admirador da arte, arranjei-lhe ainda tinta e telas e mais algum material necessário para o ajudar na sua atividade cultural. Ali poderia pintar e expor à vontade desde que ele próprio ou os ocasionais visitantes não causassem perturbações à ordem social, às crenças religiosas, ao sossego e tranquilidade da comunidade local. Eu mesmo fiquei visita assídua, não só para admirar a sua arte mas também para me assegurar de que tudo decorria sem prejuízo do que ficara estabelecido.


Ele nada pagava; eu nada recebia. Melhor, eu cedia-lhe o espaço e como paga ele pintava e regalava-me os olhos com os seus belos quadros; a mim, à minha comunidade e aos visitantes que eram já muitos e com clara tendência para aumentar. As coisas iam bem, até que um dia recebi queixa de uma influente comunitária, uma matrona fervorosa devota de S. Pedro e S Paulo e já indiciada para candidata a diretora do núcleo duro das novenas. A santinha, madrepérola de jeorjá ou de moreirá, ficara deveras constrangida porque o pintor estava a expor um quadro com cenas escaldantes, provocatórias, vexando os bons costumes e aviltando os valores ancestrais social e universalmente reconhecidos como os únicos aceitavelmente corretos.

O artista ferira a sensibilidade de alguém, tocando o seu conceituado prestígio e, sobretudo, os seus sagrados interesses materiais, ultrapassando, por isso, os limites da liberdade criadora ou se deixando por ela ultrapassar! Avisei-o imediatamente de que estava a pisar o risco, e ele retirou o quadro e pediu desculpa a mim e a toda a comunidade. Mas eu tinha obrigação de saber que artista é artista e quando o seu génio é invadido por satânica inspiração, transfigura-se e fica incorrigivelmente possesso, com loucos arrebatamentos e diabólicas pinceladas a que o vulgo apoda de talentosa criatividade.

Nada há que o detenha…

E logo repetiu a façanha, dando lugar a mais reclamações oriundas da eclésiana matrona, desta vez já encabeçando o tal núcleo duro das novenas, com o infernal dante empunhando a bandeira do bota para o inferno senão vou eu. Então, com nova advertência, o quadro, o pomo da discórdia, foi escondido lá bem atrás e bem protegido de olhares indiscretos.

Ficou indignado!

A princípio não fiz caso nem respondia às suas sempre crescentes reclamações. Encrespou-se o homem e começou a aborrecer-me a sério. Esquecido do contrato e do bem que lhe fizera, ousou enfrentar-me como se o usufruto do espaço fosse já um direito adquirido; e eu, não tem mais – por cada ação há sempre uma reação –, retirei-lhe a chave, mudei a fechadura, e o barracão, agora já com outros artistas, guarda ainda aquelas preciosidades, ou aquelas porcarias, não sei bem, mas que, ainda assim, considero minhas porque foram criadas, pintadas, expostas e valorizadas dentro daquilo que é meu, e é lá que devem ficar!

A partir daí, sem nunca pedir para reentrar, digo-o por justiça e em abono da verdade, insistiu tanto, tanto para lhe entregar as pinturas que um dia, com pena daquele infeliz, botei tudo à porta, mas ele é duro e parece ter alguma dignidade, não aceitou porque faltava uma, dizia. Fui de novo lá e enquanto catava a que faltava, pensei, ou o d. paolo mo teledisse: mas porque há de ele levar os quadros?

Ora!!!...

E voltei a pôr tudo no seu lugar!...

Então, ao ver-se na rua e sem nada poder fazer para retirar o que diz pertencer-lhe, divaga por aí como alma penada apregoando que lhe roubei a obra! Só demonstra que não percebe o velho chavão com milenares foros consuetudinários: o que está em Portugal é dos portugueses. Se não era, passou a ser, por confiscação; confiscação compulsória, digo eu!

Agora chateia-me com mails, mas não lhe ligo. Há de cansar-se, lixar-se e deixar-me em paz. Ainda assim reconheço que poderá haver alguma prepotência na minha atitude. Mas que querem? Sou forçado ou aprendi com os grandes caciques e alguns padrinhos deste burgo que me rodeiam e me sujeitam, como o trinitário d. paolo, que não ousa enfrentar a eclésiana matrona com medo de retaliações e sabotagem da cruzada a que há muitos anos louvavelmente se propôs, e as picadas daqueloutro que procura um xxl para satisfação pessoal, e ainda, por maioria de razão, pelo medo que infunde o temível inferno de dante. Gosto da arte mas não sou artista; embora este pintor me causasse uma certa simpatia, tenho a certeza que ele entende que eu nada mais poderia fazer em defesa e para defesa dos valores desta mui nobre sociedade!… É preciso manter a comunidade na ordem, coesa, para que haja paz e todos se deem bem e sejam felizes. Isso é a empreitada que me incumbiram e a que meti ombros sem reservas; isso é o menos que todos esperam de mim. Descansem que cumprirei…

E a ele, coitado, de nada lhe valerá a insistência, nem que venha para aí com a Inspeção Geral de Atividades Artísticas, invocando Direitos de Autor.

Bye, pintor!...

Constantino Braz Figueiredo





segunda-feira, 15 de junho de 2009

O coiso e a coisa


Pouco depois do PREC (Processo Revolucionário em Curso),  ainda ecoavam os plenários promovidos pelas  comissões de trabalhadores e as “mobilizações de massas” para desfiles nas avenidas, com epílogo em grandes comícios nas alamedas, largos, praças e campos de futebol, espaços solidários requeridos e aproveitados para berrantes e garridos  "manifestódromos", onde ressoavam  eloquentes discursos, críticos ou laudatórios, dos organizadores, dirigentes  sindicais e políticos, cujo povo entusiasmado, alegre, crente e esperançoso, ouvia e apoiava “despejando” “palavras de ordem” com chavões reivindicatórios e libertários, populistas e quase anarquistas, importados e adotados das revoluções latino-americanas, agora também já aqui permitidos graças ao 25 de abril, quando um jornal da Capital, o saudoso vespertino “Diário de Lisboa”, pegou num documento datado de 1953 que atualizava a postura nº  69 035 da CM de Lisboa, inserindo uma tabela de coimas atinente a combater o que era tido como comportamento sexual obsceno e indecoroso com ofensas graves à moral pública, e  mostrou-o nas páginas do seu diário.

  


O êxito foi tal que não havia pessoa que desprezasse uma cópia para mostrar em casa e aos amigos a comprovar o que eram os tempos e a repressão salazarista nos muitos anos que precederam a “Revolução dos Cravos”. Também, confesso, recortei, mostrei e guardei o pedaço bem guardado; tão bem que tive grande trabalho para o encontrar. Mas lá estava, junto a uns cartões velhos e velhos recortes de outros jornais, já desbotados e amarelecidos pelo tempo e pela fraca qualidade da tinta e do papel, pelo que, sem embargo de postar aqui igual recorte, apenas como simples curiosidade e testemunho, transcrevo-o, na íntegra, para que possa ler-se sem dificuldade:

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“CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA

Postura nº 69 035/ – Policiamento de Logradouros Públicos e zonas Florestais


Verificando-se o aumento de atos atentatórios à moral e aos bons costumes, que dia a dia se vêm verificando nos logradouros públicos e jardins, e, em especial, nas zonas florestais Montes Claros, Parque Silva Porto, Mata da Trafaria, Jardim Botânico, Tapada da Ajuda e outros, determina-se à Polícia e Guardas Florestais uma permanente vigilância sobre as pessoas que procurem frondosas vegetações para a prática de atos que atentem contra a moral e os bons costumes. Assim, e em aditamento àquela Postura nº 69.035, estabelece-se e determina-se que o artigo 48 tenha o cumprimento seguinte:

1º – Mão na mão ………………………………………………………………... 2$50
2º – Mão naquilo ………………………………………………………………. 15$00
3º – Aquilo na mão ……………………………………………………………. 30$00
4º – Aquilo naquilo ……………………………………………………………. 50$00
5º – Aquilo atrás daquilo ……………………………………………………. 100$00
§ Único – Com a língua naquilo …………………………………………….. 150$00

de multa, preso e fotografado

Lisboa, 9 de janeiro de 1953”
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Palpita-me que foram atarefados confrades ou zelosa fina flor de ratazanas de sacristia quem escreveu o texto, porquanto, um simples "mangas de alpaca", e ainda menos qualquer técnico ou dirigente da CM de Lisboa ou de outra CM, não repetiria a palavra “verificando” em tão curto espaço. Aliás, embora não se conheça a Postura em referência, um aditamento ou regulamento complementar, como é o caso, só poderia ser aprovado e publicado pela CM de Lisboa por coação das altas esferas, porque se fosse inteiramente da sua autoria não o poderia tornar extensível a uma mata da “Outra Banda” (Trafaria), que além de pertencer a concelho diferente (Almada), é também de outro Distrito (Setúbal)  se, como penso, se referem à mata de S. João da Caparica, entre a Cova do Vapor, Trafaria e Costa da Caparica. Se isso não fosse suficiente para ilustrar e justificar a minha asserção, bastava atentar-se nos termos utilizados no incrível quão ridículo normativo:

Quem fosse apanhado só lhe restava pagar. E ai de quem se atrevesse a pôr a boca no trombone ou, pior ainda, a pôr o trombone na boca – pagava e ia desterrado para o Tarrafal.


“Mão na mão” …

Seria que os namorados de então não poderiam dar-se as mãos ou andar de mãos dadas?  Podiam com certeza! E até, sem coimas, abraçar, apalpar, beijar, boca na boca, língua dentro, língua fora, rápida ou longamente por tudo quanto era sítio. É claro que havia, sempre houve, os falsos moralistas, que, talvez despeitados por já não poderem ou terem menos sorte, em tudo viam artes diabólicas e o inferno à espera desses perdidos pecadores logo ali ao virar da esquina. Já Camões dizia: “…que famintos beijos na floresta (…) que afagos tão suaves (…) melhor é experimentá-los que julgá-los; mas julgue-os quem não pode experimentá-los”.

Parece que todo o tempo do autor ou autores destas normas seria preenchido a ver passar navios ou pelas igrejas e capelinhas a acender velas e a pôr flores aos santos, a bajular e a influenciar candidatos a possidónios políticos, aspirantes a Salazares, que entretidos como andavam (também eles) em assegurar capital influenciável para alcançarem os seus objetivos,  nada percebiam da vivência comum, real, do namoro são do povo, às claras, porque às escondidas todos tinham as suas libidinosas forças, e a história é rica em relatos de acontecimentos envergonhados e  escabrosos, passados intramuros, com recatados e puritanos  indivíduos de ambos os sexos, que, pujantes da natural lascívia na hora da verdade, como a todos em geral, não havia dever, pudor nem vergonha que lhes valesse!...

Arrebatados pela sublime e intensa natureza do prazer e desejo da  posse, comum a cada exemplar de todas as espécies, as crenças, os valores éticos ou morais,  o jugo de qualquer ordem pagã ou religiosa, eram como agora o são de imediato esquecidos e relegados para plano inferior onde, ridicularizados, ficavam totalmente à margem, postergados em paciente, penosa e triste  espera, apenas recompensados com  um lugar na primeira fila daquele salutar e inebriante teatro do amor, do amar, apreciando com espanto não isento de despeito, o supino espetáculo de apelativos e ciciantes gritinhos de deleite, os roncos sensuais e aveludados da satisfação ardente, o arfar característico do respirar voluptuoso dos amantes e suportando com estoicismo e resignação o cheiro a suor emanado do brutal e vivificante ato carnal,  entretendo-se, como granjeio, além do lugar privilegiado, ao ridículo acariciar das vestes mais íntimas, despidas de repelão e espalhadas por aí, a esmo, até que os seus detentores se saciassem, e exauridos e nus delas enfim se lembrassem.

Então a vida destas elevadas criaturas voltava à virtuosa, imaculada e respeitável normalidade. Depois de um fundo respirar, e já refeitas do anelante ofegar durante o gozo extasiante, talvez persignando-se em contrição mas com juras de voltar para  repetir ainda com mais vigor, recuperavam  as nobres faculdades e consciências e estavam de novo prontas para enfrentar as suas santas realidades, o chamamento, logo tornando, estuantes de fé, ao piedoso caminho, aos altos deveres, aos sagrados desígnios que consistiam na imposição de normas e castigos para quem não cumprisse ou atraiçoasse as suas supremas e inatacáveis convicções.


Era o salazarismo, o Estado Novo com todo o seu potencial autoritário e corporativista, coberto pelo dossel cerejeirista, pela doutrina social, moralista e repressora, onde tudo era subversivo caso não lhe fosse subserviente: “Quem não é por nós é contra nós”, e nada mais existe para além dos sagrados valores “Deus, Pátria e Família” – “A Bem da Nação” …

“Aquilo e naquilo”

Partindo do princípio de que aquilo seja o instrumento sexual do homem, órgão penetrador, e naquilo o seu correspondente sexual da mulher, órgão recetor, não se compreende muito bem a diferença do valor da coima entre mão naquilo e aquilo na mão, pelo que se afigura haver discriminação na penalização ao ato da mulher (apanhada com aquilo na mão – 30$), por igual atrevimento do homem (apanhado com a mão naquilo – 15$), donde se infere o conceito que então imperava de que a mulher, sendo mulher, deveria ser mais comedida que o homem ou pagava a dobrar… 

Metade ou a dobrar, haveria maior crime que castigar a fêmea por tomar o pulso e avaliar o seu senhor e vassalo – seu amor, consolo e seu regalo - quando, na verdade, por justiça, deveria ser condecorada? E igual galardão não mereceria o macho por afagar com respeitável e calculada cobiça aquelas lindas coxas apelativas e humedecidas e dedilhar a aveludada mata da rósea vulva, sentindo as convulsões ansiosas, inseguras e frementes de desejo?

Por favor, deixem as pessoas gozar o céu na terra porque o outro, que é suposto estar para além do azul do firmamento, tão abstrato quão irreal, esse, como dizia alguém meu conhecido, pode esperar… – e quanto mais tempo melhor, digo eu!...

Tratamento lastimavelmente pejorativo para os responsáveis pela procriação e pelo maior prazer que qualquer ser vivo pode experienciar e praticar com a maior assiduidade possível. Deveriam ser mais cuidadosos e respeitadores de órgãos tão importantes e distintos. Aquilo… aquilo dito assim é um pronome demonstrativo que não mostra coisa alguma; é algo referido com desprezo, insubstancial, sem valor, dando a impressão que não é comum a quem escreveu a insólita relação das coimas a aplicar… e daí!...

E daí… se calhar foram anjos que produziram tal aborto!... Sim, porque, a fazer fé no que sói dizer-se, os anjos não têm sexo, não têm coiso nem coisa, pelo menos palpável, substantiva, e assim podem dispor de total liberdade para desvalorar a fofa e o falo. O falo que na Antiguidade – mal sabem eles, anjos e demónios – era grande vedeta nas festas, as falofórias em honra de Baco, levado por sacerdotes até ao deus da fertilidade em reconhecimento pelo cabal desempenho na função que lhe fora cometida, donde as orgias e bacanais de todas as literaturas.

“Aquilo naquilo”

Bem poderiam deixar-se de eufemismos baratos e dizer simplesmente ato sexual, cópula ou coito nas vertentes anal, oral ou clássica; hoje, com calculado e provocador desassombro, diríamos queca.

“Aquilo atrás daquilo”

Confesso que não entendi esta expressão logo à primeira, mas depois, vendo bem, se “aquilo” é o coiso e “naquilo” a coisa, então o que significa “daquilo”? (de aquilo). Só pode ser do coiso, portanto “aquilo” atrás do coiso (“daquilo”) de um homossexual! Donde a pergunta: a que propósito o autor não penalizava daquilo com aquilo atrás? Seria que…?

Dura lex sede lex… para todos ou não há moralidade …

Constantino Braz Figueiredo