sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

O carriço do Vale de Muro




 

O carriço do Valedemuro

 

Ainda não tinham sarado as feridas morais da Primeira Guerra Mundial; ainda o ar parecia impregnado dos gases incapacitantes e letais utilizados como armas pelos beligerantes; ainda se choravam os mortos, entre eles mais de dois mil portugueses que pereceram na carnificina de La Lys; ainda os povos das pequenas e grandes nações reclamavam por justiça e melhores condições de vida; ainda havia bombas perdidas, trincheiras abertas cheirando a sangue, a pólvora e a cadáveres; casas em escombros, escombros de casas, campos devastados, destroços materiais,  sentimentos frustres e irrecuperáveis, e já em toda a Europa ecoavam, em sopros de ventos americanos, notícias do maior descalabro financeiro e económico jamais visto em todo o mundo. Começaram então a ouvir-se terríveis e até aí ignorados do homem comum palavrões e chavões como bolha económica, especulação, depressão, quinta-feira negra, terça-feira negra, recessão, inflação, deflação, produto interno bruto, bolsa de valores, lei seca, gangsterismo... E a economia global, sobretudo a da Europa, já de si bastante depauperada embora em lenta recuperação, ressentiu-se e voltou à estaca zero, dando lugar a emergentes governos salvadores, que logo se transformaram primeiro em democracias musculadas e logo em ditaduras de feroz  prepotência.

 

Foi fácil assim que os ditadores, ainda que pelo povo sufragados, entre outros Mussolini, Hitler e Salazar se apoderassem das rédeas do poder, e que em Espanha se abrisse uma fenda para o sucesso das falanges nacionalistas de Franco, apoiadas pelos boinas verdes de Mussolini, por Salazar, que, às ocultas, sob a capa da neutralidade, enviou a Legião Viriato e sobretudo pela aviação hitleriana, bem patenteada nos vários  bombardeamentos a cidades, sobressaindo os de Madrid e de Guernica, em Abril de trinta e sete, cuja horrorosa devastação viria a inspirar Pablo Picasso a pintar o famoso quadro com aquele nome, que finalizou em Outubro do mesmo ano. Quadro que depois deu lugar a um episódio tristemente pitoresco, quando, em mil novecentos e quarenta, um oficial de alta patente, das tropas nazis que haviam conquistado Paris, fora ver uma exposição do famoso pintor que decorria naquela cidade. Admirando com sabedoria e manifesto entendimento a soberba obra, terá perguntado a Picasso: “Foi você que fez isto”?  “Não – respondeu de pronto o artista –, foram vocês, alemães”!...

 

Com as economias em perda e sem solução, e o desemprego e a fome em franca expansão – as ditaduras salvadoras, as lutas intestinais (guerras civis) não seriam mais do que um balão de ensaio para a mãe de todas as guerras que eclodiu em 1939 (Hitler apenas esperou pela consolidação da vitória franquista), deixando transparecer que logo que começasse seria bem-vinda porque desejada (talvez se exagere, mas era, ao tempo, tida como um mal necessário) pelos timoneiros das grandes potências. Seria apenas um pretexto para se lançarem na luta e com isso poderem sarar os males que julgavam já incuráveis. Alguns, com artimanhas políticas, diziam-se provocados para justificarem a entrada no conflito sem a ele serem chamados, outros procuravam-no através de controversas e estranhas alianças.

 

Foi neste plácido e prometedor ambiente que o mundo oferecia que, em Outubro de trinta e sete, a seguir ao atentado a Salazar que ocorrera em Julho do mesmo ano, e quando, paradoxalmente, em Cebola se vivia em paz e com dinheiro, resolvi nascer. Foi precisa muita coragem, confesso! Não foi bem na povoação, diga-se, mas ao Valedemuro, naquela casa isolada, aos pés da Panasqueira, logo a seguir ao pontão da ribeira, junto à vereda que iniciava a subida para as Minas. Meu pai, que ocupava um lugar de destaque nos quadros da empresa mineira, tinha também uma casa a condizer, de privilégio, na Barroca Grande, onde vivia com toda a família. Como esse cargo superior terminara, com ele se foram as mordomias e privilégios. Havia que regressar a Cebola. Mas como já tinha seis filhos e o sétimo com pressa de vir ao mundo, era urgente e necessário restaurar e ampliar a casita da Costa. Mãos à obra, pois! Mas, enquanto durassem os trabalhos, teria de arranjar um espaço para acomodar o seu agregado. O pior era que Cebola naquele tempo rebentava pelas costuras. As famílias eram numerosas e havia muitos recém-casados cuja única solução era ficarem a viver com os pais. Onde então? Havia lugar ao Valedemuro? Pois seria ao Valedemuro! Era uma instalação precária? Pois que fosse, mas era um abrigo, aliás transitório. Minha mãe estava grávida e ali me teve. Acho que não me queixei… da casa!

 

Tínhamos um cão, o carriço, que, encontrado abandonado junto à ribeira, logo foi adotado com todo o seu consentimento e contentamento. Segundo dizem, gostava do meu choro, pois passava largas horas deitado junto ao rule, mas também aproveitava para dormir. Dormia… porque é bom… dormir!

 

Contava a minha mãe que certo dia, tendo-me acomodado, bem amamentado, fora ali ao lado, à ribeira, lavar uns trapos. Deixara a porta entreaberta para o carriço entrar e sair; meu pai também andaria por perto ou estaria a chegar. De repente, o cão começou a ladrar… e em comportamento nervoso e desusado, correu até onde estava o dono, e numa dança estranha e inquieta começou a puxá-lo pelas calças e a bater-lhe com o rabo, dando pequenas correrias em direção à casa. Meu pai foi atrás dele, pois algo de insólito acontecia. Chegado a casa, o que viu? Uma cobra subia já o rule em que eu dormia, com destino, certamente, ao local de onde provinha o cheiro a leite: a minha boca…

 

O texto que se segue, a negrito, cujo autor morreu em 1900 e é ainda considerado um dos maiores filósofos do Século XIX, foi publicado 50 anos antes dos acontecimentos da minha narração. Leiam, que embora já um pouco deturpado por ter sido escrito por um prussiano e por isso ter chegado até mim depois de  traduções em série – do alemão para o inglês, do inglês para o brasilês e do brasilês para o português –,  é um fragmento duma obra mundialmente reconhecida, uma obra de beleza e valor incalculáveis, e é aqui inserido apenas por haver ligeira analogia nos factos, que não na alegoria em si, que essa, concebida por um génio, foi vestida de roupagem em forma de valores dramáticos, poético-filosóficos, com simbolismos abstratos tais  que eu nem em sonhos chegaria às suas franjas.

 

 

(…)

Assim falava eu, em voz cada vez mais baixa, porque me assustavam os meus próprios pensamentos e a sua oculta intenção, quando de súbito ouvi uivar um cão ali perto.

Ouvira eu já alguma vez uivar assim um cão? Os meus pensamentos tentaram lembrar o passado. Sim! Era eu criança, na minha mais longínqua infância, ouvira um cão uivar assim. E vira-o também, com o pelo eriçado, a cabeça erguida, trémulo, no meio da noite silenciosa, quando até os cães acreditam em fantasmas.

E tive pena dele. Acabara há pouco de aparecer, num silêncio de morte, a lua cheia por cima da casa: detivera-se com o disco incendiado, sobre o telhado, como em propriedade alheia.

Foi isso que despertou o cão. Que os cães acreditam em ladrões e fantasmas. E quando o tornei a ouvir uivar, tornei a sentir dó dele.

(…)

Encontrei-me de repente entre agrestes brenhas, sozinho, abandonado à luz da solitária lua.

Mas ali jazia um homem! E o cão, a saltar e a gemer, com o pelo eriçado — vendo-me a caminhar — começou a uivar outra vez, e pôs-se a gritar. Nunca ouvira um cão pedir socorro assim.

Nunca vi nada semelhante ao que ali presenciei. Vi um moço pastor a contorcer-se anelante e convulso, com o semblante desfigurado, e uma forte serpente negra pendendo-lhe da boca.

Quando vira eu tal repugnância e pálido terror num semblante? Adormecera, decerto, e a serpente introduziu-se-lhe na garganta, aferrando-se ali?

A minha mão começou a puxar a serpente, a puxar ...  mas em vão! Não conseguia arrancá-la da garganta. Então saiu de mim um grito: “Morde! Morde!

(Aqui, ó crentes, perdoai-me! Quando li isto pela primeira vez, eu, Constantino, pensei, aterrado, que o personagem estava a incitar a serpente para que mordesse no homem…, mas, felizmente, Zaratustra continuou):

 Arranca-lhe a cabeça! Morde!” Assim gritava qualquer coisa em mim; o meu espanto, o meu ódio, a minha repugnância, a minha compaixão, todo o meu bem e o meu mal se puseram a gritar em mim num só grito.

Valentes que me rodeais! Exploradores, aventureiros! Vós outros que apreciais os enigmas, se adivinhastes o enigma que eu vi então e explicai-me a visão do mais solitário.

Que foi uma visão e uma previsão: que símbolo foi o que vi naquele momento? E quem é aquele que ainda deve chegar?

Quem é o pastor em cuja garganta se introduziu a serpente? Quem é o homem em cuja garganta se atravessara assim o mais negro e mais pesado que existe?

O pastor, porém, começou a morder como o meu grito lhe aconselhava: deu uma dentada firme! Cuspiu para longe de si a cabeça da serpente e saltou para o ar.

Já não era homem nem pastor; estava transformado, radiante; ria! Nunca houve homem na terra que risse como ele!

Oh! meus irmãos! Ouvi uma risada que não era risada de homem... e agora devora-me uma sede, uma ânsia que nunca se aplacará.

Devora-me a ânsia daquele riso. Oh! Como posso eu viver ainda? E como poderei suportar agora o ter de morrer?"                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          

Frédéric Nietzsche in assim falava Zaratustra. (Visão do Enigma)

 (...)

Para satisfação do carriço, comigo não se chegou a esse extremo, já que meu pai, decidido pela aflição, correu para o rule e, sem pejo e sem qualquer receio, apanhou a serpente que segurou com força e, tal que nem uma funda para arremesso de pedras a grande distância, ou imitando um atleta lançador de martelo, deu-lhe algumas voltas no ar, entontecendo-a, para de imediato lhe esborrachar a cabeça na ombreira da porta.

 

Com suprema alegria, o carriço fez o resto!...

O carriço do Valedemuro…

 

Boas Festas

Constantino Braz Figueiredo

 

 









quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Ali (...) Venci

Ali, em Cebola, talvez que noutra aldeia qualquer; talvez que em todas as casas de famílias de numerosa prole – um capital social, um investimento audaz e arriscado, contudo de elevada rendibilidade como mais tarde se viria a revelar – mas escrevo só sobre a terra onde nasci, vivi, senti; poderia ter sido assim nos anos trinta, quarenta e mesmo cinquenta, antes da chegada da eletricidade e da emigração, pouco diferia de casa a casa, família a família o modus vivendi, por mais que se tentasse compor o ramalhete, e é daqui que hoje falo dali, de Cebola, do que vi, do que sei… Nada de profundo, menos ainda de dramático porque isso compete a cada um deduzir conforme a sua sensibilidade, e também pouco que nos obrigue a meditar porque já tudo se esbateu nas brumas do tempo; apenas a memória persiste e é aqui refletida e evocada por ser verdade, para que se saiba e para que conste como verdade.

Nos longos serões de inverno, toda a família convergia para a cozinha, local das refeições e central do aconchego familiar, refúgio e lenitivo para os rigores do frio. Ali, em volta das brasas ou do crepitar do fogo, alumiados pelo candeeiro a petróleo, uma candeia ou uma vela, olhando sem estranheza os caibros e paredes completamente farruscos, os chouriços crestados e fumados, até à instalação dessa miraculosa “chapa”, já na segunda metade do decénio de cinquenta, com tiragem para o exterior e um artesanal regulador colocado na chaminé, que faria inveja aos modernos recuperadores de calor das lareiras da nova burguesia, mas até que assim fosse, ou enquanto assim não era, dizia, por habituação precoce e persistente dos olhos e narinas, desconsideravam-se facilmente esses incómodos fumos ou os típicos cheiros; ali se via o ultimar da ceia, com a grande panela de ferro de barriga gorda encostada ao lume a ferver e a fumegar, inchada de couves, feijões e batatas (nos dias bons). Ali se contavam as sensações, contactos e experiências vividas por cada um durante todo o dia. O que tinham feito, por onde tinham andado, consoante os seus afazeres ou diversões.

Que aventuras! E que peripécias!

Uns, desde os seis aos doze treze anos, tinham a incumbência de angariar lenha pelas serras já quase carecas, porque naquele tempo como todos a procurassem a concorrência era enorme, atendendo a que mesmo no verão era um bem indispensável à vida quotidiana, e assim, torgas, gravetos, tocos, tanganhos e carquejas ficavam cada vez mais longe. Valia que, embora carregados, “ô piabaxo todos os santos ajudam”! Essa lenha era o único sustento energético de cada lar – combustível indispensável para o aquecimento e para cozinhar os alimentos. Era nos meses do estio que era procurada e acarretada em porção calculada como suficiente para se ultrapassar o inverno sem ser necessário ir a ela nos meses de mau tempo. Se a logística falhava porque o frio durasse mais que o previsto, a solução era ir buscar mais nem que chovessem picaretas. Outros, os mesmos aliás, por necessidade e imposição, acumulavam com a escola para aprendizagem de rudimentares abecedários, da tabuada elementar e aritmética avançada (“ler, escrever e contar”), superiormente ministrados por diligentes e sacrificados mestres-escola – catequistas do ensino, missionários da formação, de louvável paciência. E ainda aqueles, os adolescentes, já com idade e corpo para o “manifesto”, no emprego pré-mineiro, sempre tocados a chicote, na correia ou a varrer as ruas e a despejar e lavar nauseabundos caldeiros móveis, cheios de trampa, dos latrinários públicos de serventia sobretudo do pessoal que habitava os barracões da Panasqueira e Barroca Grande. Enquanto isso, as irmãs trabalhavam à jorna na lavoura, em vários afazeres pontuais ou sazonais, de empreitada ou de sol a sol, nos campos de proprietários de alguma relevância. Trabalho a que por costume eufemistico chamavam “ajuda”, e que consistia em carregar, à cabeça, em cima de uma peculiar rodilha, sem luvas ou qualquer outra proteção, cestos de esterco, que era mato húmido e já apodrecido com o excremento de animais, “a dar a dar”, dos estábulos, pocilgas e dos currais para espalhar e adubar os campos de cultivo, ou a cavar, semear, sachar, regar e colher maçarocas de milho, uvas e azeitonas. A despeito de ser um labor desgastante, mal pago, era executado com salutar e contagiante alegria pelas raparigas, apanágio de quem ainda sobe a encosta da vida… Cansadas, esgotadas, cantavam, e os patrões, com mal disfarçado beneplácito e beatífica compreensão, exultavam, rezavam – trabalho feito, obreiras contentes, consciência apaziguada, o céu à vista…

Ali, ao redor das brasas, cada um tinha o seu lugar e o seu banco, sem disputas, sob o olhar benevolente dos pais, quantas vezes já só da mãe, que sempre iam aconselhando deveres corretos e condutas exemplares – “nunca se rouba e não se acompanha alguém que o faça”; “defendei-vos, mas nunca se bate aos mais fracos”; “não se põem castanhas no lume sem as esbolar” – todos se sentiam felizes, aquietados, gozando o efémero bem-estar, repetindo histórias rotas de tanto usadas, mas sempre novas quando contadas por uma criança pela primeira vez. Ali se fortalecia a ideia de grupo, de família, se adquiria caráter, se aprendia a amar – ali… naquela insignificante partícula universal, naquele mísero átomo, pulsava contudo uma família com querer, com ambições, já que era assim a natureza, a sua natureza.

Mas, mais do que confortar o corpo, ali se aquecia e alimentava o espírito. Ali se hauria, de fontes cristalinas e insofismáveis, de total confiança – verdadeira e desinteressada –, a pedagogia recíproca, a educação comum, a ética comportamental. Lá fora a vida fora – era sempre – luta desgovernada, caótica, agitação ansiosa à cata de superação e de sentido persistentemente arredio e adiado, nunca se sabendo até quando porque não havia um fio condutor com rumo objetivo, nem vislumbre de luz no horizonte dos incipientes mas já claros pensamentos da moçada. Ainda se houvesse quem lhes explicasse…

Falavam-lhes de esperança…

Esperança, sim, deve acreditar-se sempre que o melhor nos espera, mas para isso é necessário algo específico, concreto, racional. Se ninguém lhes dizia, como poderiam eles saber que o futuro começa sempre amanhã, e que esse amanhã terá como fruto o quê e como hoje for preparado? Essas piedosas fés, essas crenças obscuras e estioladas, sofismas ilusórios com que a todo o momento os bombardeavam, pareciam-se a nevoeiro artificial, inventado, inútil e incompreensível, e não seriam elas que dariam confiança aos jovens espíritos sedentos de uma vida digna. Apenas lhes incutiam o receio, o terror; mais incertezas e maior inquietação.

Ali, unidos, sob a ternura, o enlevo, a preocupação e angústia da mãe, porque lhe faltara o companheiro que prometera ajudá-la a criar os filhos, mas a quem cedo demais forças ocultas – um pó leve, insinuante, penetrante, avassalador, que no início parecia inócuo – acabariam por assassinar, deixando-a só nessa luta titânica para o mais condignamente possível educar, alimentar e orientar, no bem, as suas crianças de modo a mais tarde orgulhar-se e poder dizer: venci!

Constantino Braz Figueiredo

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

As minas de volfrâmio "pintadas" por quem sabe


 
Não!

Não fui eu que escrevi o excelente trecho que apresento. Não fui, mas gostaria de ter sido. Infelizmente, falta-me cultura e conhecimentos técnicos nas áreas da haurição, da sociologia, antropologia, geologia; conhecimentos históricos, geográficos, ambientais e outros; e falta-me, sobretudo, não ter sido esse o meu percurso académico e poder ter feito disso a minha profissão. Não faz mal…há quem saiba e no-lo entregue, de mão-beijada, com todo o esplendor do seu saber. Ao artigo, pois, que bem o merece! E jamais haverá gente do Couto Mineiro, de Cebola, que ao ler com estudiosa atenção o que ora lhe é proposto, ficará sem compreender, de vez, as antecedências, sequências e consequências da vida, do inferno e da morte mineira!....


Trata-se de um artigo que, à primeira vista, será maçudo, por parecer demasiado técnico e prolixo. Mas não. Quem conhecer a vida mineira ou tiver família que a viveu e conheceu, logo perceberá que lhe estão a falar ao âmago, à sua essência…e sentir-se-á confortado por haver alguém, nem que seja do “outro mundo”, que dissecou, com feliz sucesso, as causas e os efeitos do volfrâmio.


Então, venham comigo ao “kilo”, melhor, ao "Filão Rico".



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Introdução:

"O ambiente subterrâneo é tecnológico - mas é também uma paisagem mental, um terreno social, e um mapa ideológico."

O mundo subterrâneo das minas cujas condições básicas de "habitabilidade" - ar e luz - são asseguradas pela ação humana através dos recursos técnicos mobilizados para esse efeito, é um ambiente à-partida construído, artificial e marcadamente tecnologizado.

As minas de Volfrâmio dispersas na província estanotungstífera do extremo ocidental europeu, localizam-se em montes e vales dos mais recônditos locais mas sempre em meio rural. A sua exploração, desde o início do século, mas com redobrada intensidade, por ocasião II Guerra Mundial, correspondeu a um fortíssimo movimento de tecnologização de espaços rurais, em larga medida, ainda submetidos ao ritmo cíclico das estações, traduzindo-se, por conseguinte, numa violenta e acelerada interferência humana na natureza. Dessa ação e do revolvimento de terras em muitos casos inutilizadas para a cultura durante anos, que tiveram um efeito igualmente ou ainda mais poderoso ao nível de todos aqueles que dela participaram, ficaram marcas profundas no terreno social e cultural.

Foi toda uma paisagem mental que se alterou, decisivamente. Tanto que, no caso do volfrãmio e, com particular incidência nos anos 1940, foram milhares e milhares de homens e mulheres até aí entregues aos trabalhos do campo que acederam a um meio ambiente que prefigurava em quase tudo o novo meio da vida citadina. Um meio em que a marcada sucessão das noites e dos dias perde sentido no continuum da luz artificial.

Daí que falar de minas, seja entrar, no que em gíria mineira, se designa por "um mundo à parte", onde depois de se lá estar, o que mais custa é sair dele. Daí que falar de volfrãmio, seja falar de mineração intensiva pautada ciclicamente pelas guerras que mais marcaram o nosso século. Em suma, um mundo, a vários títulos, subterrãneo.

Ideologicamente, esse mundo e a atração magnética que tem exercido ao longo dos tempos, sobre a humanidade integra um princípio estruturante da sua própria organização espacial segundo um eixo vertical, a que cabe ao céu, sobrecarregado de promessas de salvação, o plano superior, e ao lugar traiçoeiro de lamas, lodos e ruídos da natureza mecanizada, lugar tecnologizado, inferno de todos os castigos, o plano inferior, à vida humana, restando a condição de passageiro dividido entre uma partida imprevista e uma chegada sempre antecipada de uma viagem irremediavelmente curta. Esta visão do mundo e da posição nele ocupada pelo homem enformou, a ocidente, a cultura dos povos largamente sustentada por toda uma historiografia e criação literária tendo por paradigma ou referência mais próxima a já tornada clássica mineração do carvão, infraestrutura da revolução industrial, fenómeno considerado inaugural do capitalismo industrial. Mas as suas raízes perdem-se na noite dos tempos. Há toda uma história noturna de descida aos infernos ao mundo espectral dos mortos de que se alimentam crenças, mitos e de que se compõem narrativas com um fundo comum, e que ainda hoje, nos salta ao caminho, nos momentos de maior aflição, com a força das coisas que fizeram de nós a possibilidade de o sermos.

Esta visão do mundo é ponto de passagem obrigatória ao querermo-nos abeirar desse trabalho de mineração subterrâneo, ao termos que penetrar também pela linguagem "material sonoro de natureza social e histórica por excelência… património coletivo comum" , nesse mundo à-parte, terreno social que vimos estudando nas suas multímodas manifestações, e que aqui, nos propomos desenvolver através da identificação e inventário contextualizado de elementos de um socioleto luso-galaico dos grupos sociais em que as mesmas se sustentam. Fazêmo-lo a propósito da passagem e posterior adoção de um vocábulo de estranha sonoridade - wolfram -, o volfro e wolfram de milhares de portugueses e galegos que se entregaram, por empreitada e conta própria, á "apanha do mineral" ou, assalariados, se ocuparam na lavra subterrânea de filões em muitas minas e coutos mineiros registados por concessionários e companhias nacionais e estrangeiras - Borralha, Santa Comba, Panasqueira, la Silleda, Vale das Gatas, Monte Neme, Arteixo, Adoria, e tantos outros jazigos dos mais ricos do mundo em volfrâmio - metal isolado em laboratório, há apenas 200 anos, e que, pelas suas inúmeras aplicações industriais veio a entrar na categoria dos metais estratégicos, sendo considerado o metal do século XX.

Em Portugal mas também na vizinha Galiza, a corrida ao volfrâmio com a sua intensa procura por parte dos dois blocos beligerantes da II Guerra Mundial, constituiu episódio central da vida das populações, largamente emigradas no pós-guerra. Movimento histórico acantonado nas designações "questão do volfrãmio", "guerra do volfrãmio", "longa saga da batalha do volfrâmio", e quanto a nós instituinte de modernidade, obscurecido nas práticas historiográficas e sociológicas, temos vindo a estudá-lo, enquanto objeto de fronteira para uma sociologia histórica do Portugal Contemporâneo. Neste âmbito, perspetivamo-lo aqui como núcleo organizador de uma constelação de expressões sociolinguísticas que compõem o dialeto de grupos sociais desse "mundo-à parte", o mundo mineiro, subterãneo. Só aí "Volfro", "wolfram", "volfrâo", "ouro negro", "china", "volframistas" e outros termos de idêntico enraízamento são expressão de uma mesma "língua" balbuciada, nas suas diversas variantes, no contrabando de fronteiras e na emigração, de um mesmo espaçotempo sociocultural onde se interpenetram várias lógicas ou mundos sociais constituindo-se na mundividência através de cuja compreensão, o estudo da sociedade portuguesa (1930-1960) adquire uma nova linha de investigação. A discussão deste argumento de história social anónima que compõe o que designamos nas memórias do volfrãmio, um socioleto luso-galaico faz-se, procurando tomar como recurso teórico a noção sociológica de "testemunhos articulados", de uma nova teoria crítica, através da interpelação de memórias e depoimentos e da interrogação de materiais de que se compõe o "mundo imaginário" das ficções e romances de "intervenção social" que tomaram a saga dos mineiros e a questão do volfrâmio para matéria literária.

1. O terreno social

Em Portugal, e em idêntico processo, na Galiza, produziram-se socialmente em torno das palavras volfrâmio, wolfram e volframistas destaxistas elementos de um socioleto lusogalaico e uma intensa e mesclada constelação filoniana de mundividências, paisagens mentais, e mapas ideológicos, de que certa literatura da época se fez eco. Com estes e outros materiais - discursos, narrativas autobiográficas, registos orais e visuais de história - tentamos trabalhar memórias sociais reconstituir, na medida em que aí se terão manifestado e para tal contribuido, uma profunda e lenta mudança social e cultural, politicamente obscurecida, e cuja compreensão desafia outras escavações de velhos e novos veios da nossa contemporaneidade, numa perspetiva de análise que integrando a "contemporaneidade do amanhã dos que não têm ontem nem hoje", privilegie o estudo das práticas e representações, e dos meios da técnica e da ciência então em afirmação.

O Volfrâmio, "o mesmo" que o Wolfram alemão, inglês e galego entra na língua portuguesa a designar um mineral metálico raro e valioso para a indústria moderna. Mas para além deste seu significado mais preciso, o volfrâmio - o "Volfro", "volfrão", volfran e "ouro negro" das populações, outros tantos elementos do socioleto que inventariamos - viria a tornar-se, pelos preços exorbitantes a que chegou, em termo de comparação de todos ou quase todos os produtos que, por indução, atingiram preços especulativos, ainda hoje quase inconcebíveis, desde o azeite às batatas, e ao próprio pão cuja carestia era então significado de "pior do que volfrâmio".

As características da sua exploração induziram subsequentes alterações nos modos de vida e costumes das populações que sem trabalho ou abandonando tradicionais e menos rendosas atividades, se entregaram à sua extração e comércio, poucos sabendo ao certo do seu destino final, todos procurando, por mil artes e artimanhas vender aos melhores preços - subindo/descendo no jogo das redes cruzadas de intermediários ao serviço de um ou de outro ou de ambos os blocos beligerantes, em negócios mantidos pelo dinheiro barato ou gratuito da extorsão nazi-alemã do ouro e bens de judeus e outras minorias, e pelas vidas dos povos vitimados no curto espaço desses anos. "A Mina é uma cheia implacável, que vem sempre e sempre crescendo" e as pessoas correm para a apanha do mineral, a céu-aberto - "há casas que os homens deitam abaixo para não perder a pista de um filão"- , ou para a extração do volfrâmio, em trabalho subterrâneo, à procura das bolsadas , perseguindo filões debaixo da terra, esventrada em poços e galerias abrindo-se aos carris e vagonetas, por ruas transversais qual plano urbanístico subterrãneo.

Na convulsão social e mudança caótica assim gerada, o desenho polícromo de riquíssimos frescos humanos, episódios e facécias de grande vivacidade, onde abundam, os "pilhas", "os do quilo", os "cem gramas", os "apanhistas", os "empreiteiros", os "apanhadores" e "lavaderos", conforme os usos das regiões mineiras, apanhando, desviando, falsificando e vendendo minério, e se destacam, os "volframistas" de todo o lado, os"farristas" das Minas da Borralha, no Gerez, os "destaxistas" galegos comprando, vendendo e fazendo contrafação. Figuras sociais novas, novas imagens e simbologias em que renasce súbita e fabulosa , a velha mira da riqueza fácil dos cartos, peludas, notas de quilo ou de conto que enchiam as carteiras e serviam para imediatisticamente aceder aos então sinais exteriores de riqueza - livros por grosso e lombada, canetas de tinta permanente para ostentar na lapela, gabardines para colocar no braço, colchões de suma-a-duas, melhores que os de suma-a-uma, andar a cavalo, nas deslocações aos prazeres e negócios citadinos, em carros e táxis alugados que começavam então a generalizar-se como meio de transporte público. Novos ricos e excessos de todo o tipo no comércio do volfrâmio negócio da china, cujas somas fabulosas movimentadas terão permitido a uns poucos acumular fortunas escondidas, aos novos comerciantes remediar as suas vidas e melhorar a dos filhos, pela via dos estudos - uma nova geração, a dos "filhos do volfrãmio" - a muitos outros tendo deixado tão pobres como antes, assim justificando o velho aforismo de que água o deu água o levou. Nada deixando porém, como dantes" Já chamaram à nossa época, pelo muito que o fenómeno vincou o meio, época do volfrãmio. Quero crer que haja exagero de expoente. Entre nós, tal furunculose, com o dramático que comporta, deve antes representar uma das manifestações eruptivas da crise social que o mundo atravessa.Volfrâmio aqui, petróleo além, borracha acolá, há que integrá-los no substrato complexo e temeroso que engendrou a guerra."

Na "batalha do volfrâmio", época de contrabandos e candongas, essas imagens de "dedos recheados de anéis, fatos de senhor da cidade, contando aventuras de olhos esbugalhados" e de mineiros aburguesados derretendo os ganhos a comprar chita por seda, correm a par de outro mundo que o volfro não desnorteou, o de milhares de trabalhadores e mineiros, ex-lavradores e jornaleiros, morrendo novos com o mal do pó ou atabafados do tufo, estropiados nos desastres frequentes pela ânsia do ganho e míngua de cuidados, entalados entre pensões de miséria e negaças dos seguros, comendo na mina "pão e faca". Mundo pouco visível como outros, mobilizadores de tecnoculturas e terminologias importadas, as quais relevando de saberes técnicos e formalizados iriam ser reapropriados e objeto de misceginação com práticas e saberes leigos.

Todo um território social em que mundos diferentes e lógicas contrastantes são postos em relação uns com os outros.

2. O ambiente sociotécnico : a paleotécnica da indústria.

No Norte e no Centro de Portugal, como na Galiza, foram (re)ativadas no contexto da II Guerra Mundial, centenas de pequenas, médias e grandes minas que utilizando basicamente máquinas e tecnologia de mineração importadas dos países do centro do capitalismo (Inglaterra, Alemanha, França, etc.) passaram a absorver a mão de obra então largamente disponível. De tal facto é testemunho evidente a exploração do volfrâmio apreensível ao nível da emergência do socioleto luso-galaico cuja inventariação se prossegue.Na generalidade das muitas pequenas e médias minas do país, sob intensa exploração alemã, foi a língua alemã, de cujo wolfram se deriva volfrâmio, e quiçá, as tão desejadas "chinas"- pedras de cor negra, muito mineralizadas - , ainda hoje efusivamente lembradas por todo o mundo para onde emigraram os que antes as procuravam . (Noutros sítios, como no Couto Mineiro da Borralha, durante mais de 50 anos, explorado por capital francês, foi por exemplo o caso do vocábulo francês "poches" seguido de outros, enquanto que nas minas da Panasqueira exploradas por ingleses, desde a década de 1930, o mesmo se passou com a língua inglesa) Todas sendo, por modos de receção diversos, objeto de contrabandos e transações linguísticas, num processo de profunda miscigenação de saberes "leigos" e "peritos" em contextos socioprofissionais.


Aqui na Panasqueira, o primeiro método de desmonte foi ....o foi o "rendas e bordados"…era o que se fazia no tempo da guerra e continuou até 50 e tal…desde 1937 até 1948 era só esse… …o "bacalhau" ou "leque"…não, long wall é outra coisa é o de "frentes paralelas" e foi até por volta de 1980 …. o bacalhau ou leque usou-se até 1977/1978…era com martelos para poupar energia …íamos avançando na rocha.. e o empolamento que se tirava ficava lá, fazíamos as barragens … e aterros de lama para construir paredes…para o fogo não rebentar com as paredes…assim é que se faz o leque…depois passámos para o de frentes paralelas…e desde 1960-70 que se usa o método que está agora, o de "câmaras e pilares"…o em "espinha"… aqui vê-se melhor neste conjunto de desenhos… fazíamos ruas e metíamos parafusos …"rolf botes" … nos "pelos"…são fissuras…onde parte a rocha… metíamos um ferro com uma fissura numa parte e uma cunha na ponta…era para segurar o terreno…para estar mais fixe…então metíamos o "pampeso"…era o tal ferro de meia polegada…. para segurar a pedra do piso de baixo às de cima, …vê-se ainda ali fora …era isso que se chamava "furar contra Deus"…mas isso não deu resultado…a pedra de baixo partia e o ferro ficava lá sózinho e as pedras seguiam o seu caminho…ainda estragava mais…era por isso que se chamava furar contra Deus…sabe como se chamam os espaços entre as barragens das galerias? …"ouvidos"… No desmonte há também a construção das chaminés…a chaminé real e a chaminé gémea…a real é feita para o produto sair e a gémea é para o pessoal subir…também houve vários processos de construção…primeiro faziam-se com uns roletos de madeira…escadas e patamares …depois veio o método de gaiola ….morreram vários indivíduos nesses trabalhos…e dizer que ganhava menos um indivíduo que andava nesses riscos do que outro que estava seguro no escritório ou no gabinete…


Também a geologia foi profusamente reinventada em termos de socioleto, onde muitos dos termos surgem associados à vida do mundo rural, mas também, curiosa e longinquamente, outros sugerindo o mundo marinho. Desde o "rabo de enguia", onde o filão acaba de repente, lentícula que assinala a existência de filões lenticulares, suscitando a cobiça do mineiro em segui-lo, desde a impregnação siliciosa da rocha até ao "galo" nome que o pessoal mineiro chama ao "ligal" ( pequeno filão que liga duas lentículas seguidas) ; encontrando por vezes a seguir um "risqueiro" que o aproxima do filão principal, mais rico; umas vezes o filão "assenta" e é fácil explorá-lo porque segue horizontalmente; outras vezes o filão "mergulha" ou faz "ressalto" e torna-se difícil segui-lo; umas vezes o "galo cruzou" o filão, o filão aparece no "seixo bravo", xisto argiloso impregnado de quartzo, não mineralizado, duro e difícil de furar, ou no "ferrenho", (dolerite), também rocha dura e difícil de furar, por isso, dois grandes inimigos do mineiro ; outras vezes o filão "deu na falha" que pode ser "a falha gorda" que atravessa o couto mineiro e provoca grande irregularidade nos filões. Nos jazigos aluvionares e nas minas velhas, o filão rico para as populações, eram os trabalhos de apanha do minério, a alegria de encontrar "chinas" (pedras muito mineralizadas) naquelas "bossadinhas" (bouçadas) .

A generalizada tecnologização destes espaços rurais, a sua rurbanização - a entrada precoce, abrupta, e marcada pela efemeridade do mundo rural português, num processo de urbanização ad-hoc, suscitado pelas características próprias da exploração intensiva do volfrâmio, gerador de intensas e vastas mobilidades populacionais -, é outra característica desse mundo tecnologizado, indutor de elementos do socioleto que inventariamos e que é por sua vez, espaço de inscrição do ambiente sociotécnico em mudança que se vem também traçando.

3.O Mapa Ideológico : De objeto inominado a objeto literário - o volfrâmio.
3.1. Aspetos (modos) - inscrição dos mundos mineiros na ficção literária .

O volfrãmio é leit-motiv do corpus textual literário cuja produção acompanha um período que, ao longo da primeira metade do nosso século, vai do inicio à fase da sua mais intensa exploração, e de que se constitui o imaginário. Compõem-no : o romance de cordel Autobiografia do Borralha, do princípio do século, em que esse mineral ainda não tem nome próprio; o romance Volfrâmio, publicado em 1942, que sob um ponto de vista centrado nos meandros da exploração alemã, que aliás lhe dá o nome, dramatiza a sua exterioridade nacional; o romance Mineiros, de 1944, que contrapõe à engrenagem da mina um projeto de centro mineiro ideal; o romance As Minas de S.Francisco de 1946 que acompanha a metamorfose do velho mundo rural no novo e estranho mundo das minas; a novela autobiográfica Era Tempo de Apandar que do outro lado da fronteira, na narrativa do estraperlo (comércio ilegal fomentado pelas empresas) do volfrãmio, faz espelho com o contrabando do volfrâmio português; o conto galego O Marelo (Apocalypse Now), curto apontamento literário de antigas profecias bíblicas convocadas pelo mal e pela violência dos poderes.

Projetado nos tempos subsequentes dos empreendimentos hidroelétricos O Lodo e as Estrelas retido nas memórias de muitos dos protagonistas da saga do volfrâmio, articula em poemas a passagem do trabalho sofrido nas galerias das minas para o trabalho nos túneis das barragens.

Só pelo facto de assim se ter estruturado, o corpus ficcional apresentado permite traçar um quadro de leitura. Se na autobiografia em verso do Borralha, pastor e mineiro, temos a narrativa mítica da origem (do mineral inominado), vertida em molde de tragédia, Volfrâmio, Minas de S.Francisco e Mineiros desenham, nos modos e aspetos diversos da ação que se desenvolve em torno da exploração mineira do volfro=volfrâmio, seres humanos e não humanos que valem por si mesmos e excedem todo o vivido, em diferentes configurações de percetos - não perceções, porque independentes do estado daqueles que os experimentam - e afetos - que não são já sentimentos ou afeções, excedem a força daqueles que passam pelos afetos. A linha de fronteira com o lado exterior deste quadro sendo marcada, como se disse, por Era tempo de Apandar, autobiografia de um preso político obrigado a trabalhos forçados nas minas de volfrâmio da Galiza. Desbordando desta estrutura, como sua linha de fuga, a pequena coletânea de curtos textos poéticos O Lodo e as Estrelas, elegia aos trabalhadores dos túneis de minas e barragens.

Este corpus simbólico donde em larga medida está ausente o socioleto, colhe porém raízes num imaginário coletivo de uma história noturna em que a recorrência do cânone dualista - céu/inferno, deuses/demónios, bem/mal, razão/desrazão, perdição/salvação - se reatualiza, em dispêndios, desperdícios e excessos, na linha (ir)reversível dos acontecimentos e contextos, seta e ciclo do tempo. Conforme a esse imaginário, a visão infernal dos trabalhos subterrâneos, confirmada nas mortes numerosas de mineiros jovens que reatualiza o imaginário social dos quatro cavaleiros do apocalipse - fome, miséria, peste e guerra - dos monstros da Torre de Madorna que comem criancinhas, dos seres medonhos e peçonhentos da escuridão contra o que se contrasta o sonho claro de uma cidade de utopia, um falanstério de harmonia social. Imaginário que se desenvolve na longa continuidade de uma tradição de toda a casta de poderes e impérios, que se perde na memória dos tempos, grupos financeiros e grandes empresas mineiras que estrategicamente, têm quadriculado quase todos os recursos minerais do planeta.

4. A paisagem mental

A receção do vocábulo estranho e a tradução que dele as populações de Portugal e da Galiza fizeram, fazendo--o entrar num quotidiano que se modificou profundamente - movimento de atração da vida citadina, estabelecimento por conta própria, intensificação de meios de negócio, obras públicas, novos hábitos e comportamentos de consumo, revolvimento do mundo agrário tradicional e deslocação paulatina e abafada, mas irreversível do seu predomínio para o incremento de outras atividades, designadamente fabris, a generalização da entrada das mulheres no mercado de trabalho, a reemergência de vagas de emigração, etc. - e de cuja mudança a coisa nomeada foi o desencadeador, é-nos patente no quadro de um "conhecimento situado", no cruzamento de diferentes memórias sociais que (re)configuram práticas nómadas e sedentárias, saberes leigos e peritos.

Lembro de trabalhar na busca do volfrâmio na época da guerra numa companhia alemã num lugar chamado Pranheira …Carrazeda de Ansiães....Então fui para lá lavar daquela terra que saia dos tuneles onde saia o minério…andei muito tempo eu e muito pessoal a lavar aquela terra…onde ficava o volfrâmio no fundo daquelas caleiras de madeira …. Essa companhia saiu mais ou menos em 1946, 1947 mas depois ficaram uns portugueses lá com ela…ficaram uns 3 a 4 anos...mas já era uma exploração mais fraca …o volfrâmio trouxe bastante benefício porque acontece o seguinte…trabalhava lá muita gente daquelas aldeias todas por ali e de outras terras ...então muitos começaram a explorar aqueles terrenos por conta deles e a vender para compradores…mas aquilo era uma coisa provisória faz de conta que era como estes mieniros aí em Minas que andam atrás do ouro ...garimpeiros...assim era na altura lá em Portugal...

De idênticos materiais se compõe a narrativa seguinte onde, incorporando elementos correspondentes do socioleto, se traça, para a vizinha Galiza, na época da Fevre do wolfram, Tempos de Apandar, um meio físico e uma paisagem mental equivalentes ao anteriormente descrito e ocorrido nas regiões do Norte e Centro de Portugal.

"… as minas já fecharam há uns anos… trabalhei aqui quando tinha 18 anos… por esta finca abaixo e arriba…estava cheio de caleiras …havia aqui unas casetas onde tinhamos as cousas…trabalhava como labadero…a céu aberto …primeiro esteve a Companhia Férrea Mineria…depois lebou-a um chamado Mariano …depois de Mariano um cristano de S.Roque….e outro do Carballo…e dois que morreram…a general de riba lebaba-a Xinto…morreram todos… um tal Eglesias que bibe na Coruña…é o único que ficou … e mais o Soeiro do Carballo…esse era o dono de una casa de seguros mui importante em Carballo…e un de una casa grande na beira da carretera que bai a Malpica tambien estibera aqui com lavaderos e lavaderas ó volfrão…o de Monte Neme era muito melhor que de Verilongo… trabalhei aqui no volfrão cinco anos… os Varelas compravam-lhe fora da mina …si …si… eram os destaxistas… um fulano de cá…que era aloucado…era o pirata negro…chamavamos-lhe assim … marchou para Montevidéu… Habia aí caleras de madeira…tinha aqui um poço e lavavamos da parte de cima quando libraram o canal…eu de noite vinha por ele ali…os carros carrejavam o mineral de lá de riba…cobravam-nos pouco por cada carro…1000 kg de terra…15 a 20 pesetas … vou por aí mirando e se vejo uma chininha, se me gusta levo… foram os mais velhos que puseram o nome de china de mineral…há muitos que chamam aos adubos mineral…são os abonos dos prados…mas nós chamamos volfram…volfrão…volfram…mineral…aqui houve quem acendesse um cigarro com bilhete de 1000 pesetas…dizem…

Conclusão : "Testemunhos articulados"

A análise levada a cabo supôs o exercício de "uma constelação de modos de envolvimento e de intervenção". O trabalho de articulação entre discursos, narrativas, romances e o socioleto emergentes das memórias do volfrâmio, de que diatopicamente procurámos fazer a interpretação, testemunha a necessidade sentida no decurso da pesquisa efetuada de pôr em relação perspetivas próximas mas distintas de abordagem sociohistórica do processo de exploração do volfrâmio, curto mas intenso, o que nos foi facilitado pelo facto de se nos darem a ver em variantes distintas de uma mesma língua, segundo uns, o galaico-português, ou em línguas diferentes mas contíguas, o galego e o português, segundo outros.

Nas memórias da exploração de um mineral metálico recente - o volfrâmio - a emergência de elementos de um socioleto bem como as composições literárias são radículas de um rizoma inscrito no canto de uma página - a da riqueza (mineira) das nações, um dos segredos mais bem guardados das suas economias. Portugal e Galiza, geologicamente ligados pelos mesmos veios mineralizados, economias de enclave no quanto a riqueza própria não serviu ao seu autodesenvolvimento, foram-no também social e culturalmente neste processo histórico singular, do modo específico que procurámos ver.

Por: Maria Otília Pereira Lage, excerto de um artigo in http://victorian.fortunecity.com/statue/44/Nas Memórias do Volfrâmio



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Este artigo foi propositadamente apresentado sem mencionar as fontes, notas e bibliografias que a autora extensivamente nos apresenta. A quem por isso se interessar, aconselho a leitura do original no endereço referenciado.



Constantino Braz Figueiredo


sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O Novo Acordo Ortográfico


Se me derem verga e tempo, hei de fazer alguns cestos ainda, ou, dito doutra maneira, tenho como ato consciente que devo, que posso e hei de ainda escrever umas coisitas. Pode parecer, com esta idade, digamos, uma pretensão algo bizantina. Será? O problema é: quem as vai ler? No entanto, se o quero fazer, tenho de me apressar antes que seja despejado lá numa cova adrede aberta para a minha carcaça no cemitério de santa marta, onde inevitavelmente serei aterrado e servirei de pasto e hospedeiro a simpáticos mas vorazes bichinhos, que começarão por acariciar-me o corpo e a locupletar-se com os meus lombos e bíceps, em que os mais espertos e atrevidos se apressarão em correria desenfreada e desordenada, rasteirando, empurrando e atropelando, jogo sujo, jogo rasteiro (que falta ali não fará um árbitro, zeloso da disciplina, a apitar a plenos pulmões, a pôr ordem naquela anarquia, e a punir até à expulsão os mais exaltados e truculentos), para serem os primeiros a invadir os orifícios da boca, ouvidos, nariz, falo e ânus e por aí mais rapidamente atingirem as suculentas vísceras, cocegando-me mesmo no âmago as tripas, pâncreas, fígado e rins – que prazer hilariante e inaudito não será! –, a menos que opte por ser cremado para não dar chance ao meu querido e sempre amigo Lúcifer, que, tal como o conheço, é rapazinho para ir lá pessoalmente roubar o acepipe àquelas inefáveis criaturas e deixá-las a chuchar no dedo à espera da próxima vítima.



Um desses objetivos a que me propus, talvez o menos importante, é escrevinhar, como aliás o estou experimentando já, dentro das regras desse velho novo ou novo velho acordo ortográfico, ao qual, no que concerne ao facilitar, aderi prontamente e demonstro-o aqui, já que apenas basta aventar certos acentos, alguns hífenes, trocar maiúsculas por minúsculas e sincopar um bom punhado de consoantes mudas ou não articuladas, como o p e o c, em peremptório (que fica perentório), actual (atual), Agosto que dará agosto (mantendo, mesmo sem o A grande, o gosto, as festas e o calor) e anti-religiosa converter-se-á em antirreligiosa – mas nunca religiosa. Abaixo as beatas fingidas e hipócritas! Abaixo as beatas sérias e honestas! Abaixo a beatice… Não fumem, por favor!...

Embora facilmente se reconheça que foi o nosso país aquele que mais cedeu no acordo ortográfico estabelecido – o acordo dito possível –, se comparado com o gigante brasileiro que apenas aceitou poucas trocas e manteve, lá dentro, o status quo tanto na escrita como na fala, sou a favor. Que se lixem os velhos do restelo, sempre reativos a novidades e mudanças!... E nem dará assim tanto trabalho… Será apenas uma questão de mais atenção e maior cuidado até nos habituarmos. E pode ser que, com o tempo e com muita insistência e mais firmeza nas negociações, fiquemos de todo livres do brasilês, do palopês ou africanês e consigamos, mesmo que seja a longo prazo, a uniformidade, a universalidade deste rico idioma. Dando pouco, poderemos ser principescamente retribuídos.

É esperar para ver…

Isto, em boa verdade, só se aplicará à escrita, que será a referência paradigmática para a sustentabilidade do léxico, já que o português falado continuará a ser o galeguês, o brasuquês, pretuguês, mirandês, alentejanês, cebolês… Nunca o povo do Sobral terá a mesma pronúncia do povo de Cebola, nem em Ourondo se falará como em Casegas, e vice-versa. Não fora isso e os extraterrestres não mais comunicariam em americano, que é só o que sabem, coitados, e ainda havíamos de os ver, orgulhosos, a empunhar a gramática e o tradutor on line de marcianês-português, adotando a nossa como a sua língua oficial na Terra e a expressar-se corretamente pelo brilhante idioma de Camões.

Todavia, não suporto que, numa língua carregada de aglutinações e justaposições de duas ou mais palavras, não se aproveite a oportunidade para incluir nessa família mais algumas que em bicha esperam a sua oportunidade, e o povo, que já o faz de motu proprio, agradeceria que ao menos não lhe marcassem erro. Serve o exemplo destas duas que, afinal, são uma só: com certeza. Muita gente, incauta ou talvez não, escreve concerteza, e eu, confesso, sou a isso tentado. Congratulava-me que esta prática se generalizasse para que os lexicógrafos fossem mais generosos connosco. Por exemplo com a supressão do hífen, ora contemplada nalguns casos, como em hei de, quanto a mim, bem, porque nada adiantava, mas a saber a pouco porque poderiam aglutinar o verbo e a preposição. Se escrevêssemos: heide conseguir fazer isto ou aquilo – viria daí mal ao mundo?

Concordo com o Acordo, mas fico com a impressão de que, com outro estudo e com outra gente mais aberta às correntes jovens ir-se-ia muito mais longe. Na verdade, o que quero dizer é que o Acordo envelheceu antes mesmo de ser posto em prática. Partamos, então, aproveitando a embalagem, para o próximo que será, estou certo, muito mais profícuo do que este.

Assim, e tendo presente uma certa frustração aquando dos tristes acontecimentos que levaram à retirada pela administração dum simples escrito postado em “artigos de opinião”, que campeava na primeira página num rol a esmo das publicações mais recentes do cebola.net, retirado, quanto a mim sem razão e sem explicação plausível, talvez a mando do caciquismo que ali impera, possivelmente a troco de algumas subvenções ou contribuições, o que me levou, inchado de razão, a atirar as patas à parede e à consequente expulsão do site, pelo que aproveito, aqui e agora, para “repetir” o tal artigo, ambos os dois ou o saco e a baraça, com a aplicação das regras do Novo Acordo Ortográfico.


Ambos os dois ou o saco e a baraça foi escrito a brincar, e apenas com o intuito de brincar com as palavras. O título que logo me ocorreu foi: “Um brinco de palavras”. Porém, quando já o tinha batizado e pronto para entrar no prelo e aparecer com esse título no nosso site, lembrou-me de ir à net ver se já alguém se tinha lembrado desta expressão, e, acredite-se, levei uma joelhada no estômago! – eram aos milhares, até um blogue já existe com esse nome. Desapontado, escolhi então, desajeitadamente, aquele com que oficialmente foi publicado e que viria a redundar, depois, no POMO DA DISCÓRDIA.


E, em vez de um rico brinco, tomou então o nome de um proletário piercing usado pelos esquimós do tempo das cavernas de gelo, muito anterior aos seus modernos e invejáveis iglus.

***

AMBOS OS DOIS OU O SACO E A BARAÇA


Volátil!
Ansiosa!
Sorridente...
É a mensageira do futuro!
Uma rainha!
A imperatriz do pensamento e do espaço infinito.


Com a velocidade do relâmpago, desloca-se fluidamente por todos os lugares disponíveis e indisponíveis, desdenhando, qual divindade, de quaisquer obstáculos que lhe interponham, através da justiça, da lógica, da inteligência, pertinácia, trabalho e sedução. Desbrava lugares e povos inconcebíveis, ignorados ou desconhecidos; perspicaz e curiosa, penetra, sem pejo, em domínios senhoriais e palácios, desprezando e rindo da mais segura e disciplinada guarda real. Senta-se à mesa de reis e usufrui com os anfitriões e insignes convidados de luxuosos aposentos, benesses, iguarias, diversões sociais, caçadas, bailes, regabofes, bacanais e toda a espécie de voluptuosas orgias vulgarmente atribuídas a tais lugares. Do mesmo modo, entra em miserável, imundo e promíscuo antro de desviados, social e levianamente considerados a escória, o rebotalho. Mas aqui – alto lá! – é um campo onde pouco se detém, seja porque não gosta da deprimência, seja por imperativos relacionados com a sua habitual inconstância e irreverência mais propensos e vocacionados para nascente.


Não tem problemas de consciência, é inculpável, mas fica terrivelmente perturbada e desconfortável com quem mantém ou dá fôlego à indigência e aos desvalidos, aos marginais e a toda a cáfila de parasitas que se move em torno de quem trabalha e honestamente faz pela vida. A Sociedade que os produziu, os políticos, os governantes de todos os países de todo o planeta, numa atitude corajosa, uniforme e concertada, que faça algo a montante e a longo prazo para que o mal seja cerceado, em vez de financiar estéreis conflitos só para mostrar quem tem o poder e as armas mais destruidoras, e, principalmente, para submeter os outros povos à subserviência económica.
Com esse propósito, preconiza ações convergentes para total erradicação da pobreza que nunca será suprida nem minorada (apenas alimentada) com as habituais mezinhas caridosas, esporádicas ou pontuais, aparente ou realmente simpáticas mas não isentas de beatífica hipocrisia, quantas vezes para justificar profissões bem remuneradas. Um dia far-se-á a conta ao influxo financeiro absorvido pelos agentes do bem em detrimento dos infelizes destinatários.
Sabe como agir, mas considera que é uma área que não lhe pertence porque seriam necessários grandes investimentos, e além de muita dureza, alguma crueldade politica e socialmente incorreta… muitas linhas e anzóis, e a recuperação de forjas, ferreiros e ferradores para dar cabal cobertura ao reflorescimento das atividades necessitadas de pás, enxadas, ancinhos, roçadouras, picaretas e… ferraduras…
Mas não ficaria escandalizada com a substituição daquelas históricas e eficazes ferramentas, de romântica saudade, por tecnologia de ponta, consubstanciada em segadeiras, debulhadoras, tratores, pás mecânicas, assim como exaustiva implementação de oficinas e laboratórios de investigação, com mestres de reconhecido e elevado gabarito em todos os ramos da ciência, e equipados de aparelhagem moderna e técnicos informáticos, bem armados de magalhães, gamas, colombos e outros cabrais.


Versátil,
temperamental,
impulsiva,

se o deseja veste um cariz vulgar, civilizado, alegre ou sentimental, mas sempre prático e objetivo, e sem perder tempo à espera de permissão invade os mais íntimos e secretos esconderijos da sua paixão. Sensual, dispõe à vontade e sacia-se dos comuns desejos com a cupidez dos que em silêncio sofrem e amam, porque, imbuída do espírito destemido que lhe é peculiar, vai, ela própria, ao lugar do endereço da carta da popular trova que compôs e que nunca lhe mereceu enviar:

"Vai-te carta, vai-te carta,
Entra na primeira sala.
Se não houver quem te leia,
Abre-te carta… e fala!


Incansável.
Subtil.
Inteligente.
Sedutora.
Fatal!
Mas é, mais que tudo, razão.

É ela que, através do seu imensurável poder criativo, faz evoluir todo o universo do conhecimento.


É imparável, avassaladora e acolhe e acode a todos os ramos das ciências e das artes. Quase de graça, trabalha incansavelmente para tornar os povos mais prósperos e desenvolve e tira partido de todos os recursos da natureza para melhorar o progresso, o nível de vida, a saúde, a longevidade.


Em alguns casos parece carente, vaidosa, ciumenta, insaciável, e então pode tornar-se perigosa com as suas prodigiosas invenções, contanto que sejam levadas para sendas tortuosas e postas à disposição de déspotas de ambição desmedida ou escroques do mais baixo jaez.


Ela é – revelemos – a Imaginação, a sabedoria, mas não seria de todo feliz se não fosse complementada com o apêndice de todas as horas, de toda a vida, desde o nadir ao apogeu sideral da humanidade – o Sonho!


Mas, Sonhar…


…O sonho, embora indevida e vulgarmente confundido com a imaginação, é totalmente diferente desta. Pode, no entanto, com algum esforço, dizer-se que é a consciência, a moderação, um freio à conduta por vezes atrabiliária da sua fogosa companheira .


A imaginação é criação, esforço, aventura, realização; o sonho é fantasia, devaneio, aspiração, utopia, ilusão – almeja sem construir, deseja sem realizar. Ele é contemplativo, idealista, romântico, lírico e ingénuo; ela é a vontade perseverante, o projeto, a obra. Ele é visionário, indolente, passivo e subjetivo; ela é direta, pragmática, arquiteta e objetiva. Mas um não viverá sem o outro. São inerentes e estão ligados pela essência e intrinsecamente associados em simbiose perfeita e… eterna!


Para nosso bem, felizmente, todos nós, de per si, estamos equipados com essa prodigiosa ambivalência. Aproveitemo-la então e utilizemo-la da melhor maneira e gozemo-la generosa e abundantemente. A despeito da desolação causada pela inesperada derrocada de instituições que até aqui julgávamos intocáveis e indestrutíveis, da propaganda de descrédito e de desânimo que de lés a lés varre o Globo, sonhemos e imaginemos até fartar, mas, sobretudo, doseando o esforço… vinquemos o nosso inabalável querer, a nossa esperança e… “pensemos positivo”!...


Constantino Braz Figueiredo

terça-feira, 30 de junho de 2009

Vamos ao Clube

Ainda sem grande esforço, puxo mais uma vez pelo memorial – memorial de memória nua, desprovida de quaisquer apontamentos ou testemunhos – que me parece inesgotável. Porém, nem tudo será, sempre, digno de ser contado, pelo que já vou optando pelo retraimento a fim de livrar eventuais leitores de assuntos inteiramente subjetivos, frívolos ou triviais, e também, tanto quanto possível, preservar-me do ridículo. De qualquer modo, quando se trata de estórias vividas pela comunidade cebolense, a que assisti, sofro e não contenho a tentação de as partilhar, ainda que a priori possam, mesmo assim, ser qualificadas de dispensáveis, sem interesse.

 Pois que o sejam!

 Conto na mesma!...

 Já não era desconhecida para a esmagadora maioria do povo de Cebola. Sim, aquela pequena caixa com ecrã que por magia, em direto, nos trazia as notícias, os espetáculos de variedades, as cantigas, o teatro, o folclore e o futebol como se lá estivéssemos na hora em que aconteciam, passou a ser tema de “converseiro” e entretém nos serões de sábado e tardes de domingo. A grande maioria tinha-a visto já durante a tropa, nas cidades que visitaram, nos clubes da Panasqueira e Barroca Grande, noutras terras das redondezas onde a eletricidade havia sido instalada com avanço quase secular, embora, essa eletricidade, a das Minas, a tivéssemos ali há muito tempo, a dois passos, ou a vê-la passar atravessando, em escandalosa provocação, o “nosso” cabeço carvalheiro.

 Que tristeza! Que mal sucedidos foram os autarcas de então; não tanto por falta de coragem, tenho a certeza, mas pelo cerceado poder reivindicativo, apanágio decursivo do jugo implantado pelos altos poderes instituídos!

 Mas chegou, enfim, também lá à nossa terra, a alta tensão com seus raios e coriscos. A princípio forçosamente imperfeita pela natureza da incipiência - as ruas mal iluminadas, escuras e com clareiras amarelas, vultos aparecendo e desaparecendo na noite e a continuação das casas alumiadas com candeias, velas e candeeiros a petróleo. Mas passados cerca de dois anos, já então com muitas casas iluminadas, o Clube incluído, caminho aberto para se instalar a televisão.   

 A televisão, com as sombras, a inevitável “chuva”, as riscas verticais, riscas horizontais, em scrool, e por vezes com o total desaparecimento da imagem, mas apenas com quatro anos de atraso em relação a Lisboa – vendo bem, se compararmos com outras coisas, nem era assim tanto tempo!...

 A eletricidade fora inaugurada creio que em finais de 59, e eu, por circunstâncias de força maior, não assisti aos festejos. Mas vi a chegada da televisão, e vi a curiosidade e o regozijo dos conterrâneos, talvez pelo convencimento de que já estavam a ser reconhecidos como gente preparada para ingressar nas tertúlias do progresso!… Para além das instituições religiosas, desportivas e culturais, de fazer inveja a muito bom povo das redondezas, já havia a carreira, o telefone, os correios, o carteiro, agora a luz, a televisão – a gente estava a subir na vida… Para onde ia então a caixinha de surpresas? Para o Clube, pois então… E mais outra – só mais outra – para o “t’Jorge”, Sebastião e irmãos, comprada pelos pais, pois claro. Mas era deles, muito particular… particularíssima.  Com todo o direito.

 E nós?

 Vamos ao Clube!

 Também nas grandes cidades como Lisboa, a esmagadora maioria das famílias, passados três ou quatro anos ainda iam para as coletividades, e enchiam os cafés só para ver televisão. Fui testemunha disso…. Só depois, pouco a pouco, foram pejando os telhados com os captadores de ondas eletromagnéticas, dando o triste espetáculo que ainda hoje podemos presenciar, ao ver as florestas de antenas sobre as casas dos bairros antigos. E o sinal deixava, também aqui, muito a desejar, pelo que cada um procurava sempre suplantar o vizinho com a última novidade desse indispensável requisito.

 Vamos ao Clube! À nossa Coletividade…

 Nada de vergonhas!

 É pra se ver!

 Lembro, a propósito, que quando era um garoto de cinco ou seis anos e estava com o meu irmão Alexandre (ele tinha mais quase cinco anos que eu, mas onde ele estava, por perto andava o Constantino) a ouvir um relato de futebol na loja do Pedoa),  de ele me dizer que “qualquer dia vemos o jogo, bola e jogadores num rádio assim”. “Como? – perguntei eu – O campo em cima do rádio? E os jogadores e a bola não caem”? “Não! – disse ele – Parece-me que não! Na América inventaram um rádio com um vidro à frente como um espelho que vê os campos e chega a todo o mundo”.

 Nunca tinha visto cinema e fiquei pensativo, algo baralhado!... Mais tarde soube que havia algumas diferenças. E a menor não era com certeza o convencimento instalado pela propaganda ocidental de que todos os inventos teriam de vir obrigatoriamente da América, mas não! Embora todas as potências com cientistas e tecnologia avançada tivessem contribuído para o grande sucesso, franceses, ingleses, alemães e russos começaram as emissões algum tempo antes dos americanos, os três primeiros em emissões experimentais e os russos, a partir de 39, já com emissões regulares.

 Agora ali estava ela, azadinha, no nosso Clube!

 E via-se, bastava olhar para o tal vidro da frente, o tal espelho…e ninguém caía, nem a bola fugia!

 E via-se!…

 Ainda com pouca qualidade porque as antenas difusoras – creio que as mais próximas eram as da serra da Lousã – não estavam tão perto como depois vieram a ficar, mas dava para enxergar, a duas cores, e reconhecer locutores pivots de noticiários e animadores e relatores de atividades culturais e desportivas como Pedro Moutinho, Jorge Alves, Igrejas Caeiro, Artur Agostinho… atuações de Simone de Oliveira, António Calvário, Madalena Inglesias,  Artur Garcia, o Max … filmes com o Vasco Santana, António Silva, “Ribeirinho”, Laura Alves, Beatriz Costa, Hermínia Silva, Milú… o teatro com Amélia Rey Colaço, José Viana, Armando Cortês, Jacinto Ramos… os “Serões para Trabalhadores”, as festas de folclore nacional e as marchas dos santos populares … o futebol do Eusébio, Coluna, Puskas, Di Stefano… Lá assistimos, em direto, às finais da taça dos campeões europeus  de 61 e 62 com o Benfica a vencer respetivamente Barcelona e Real Madrid.

 O Clube, nessa altura, tinha como presidente o sr. Tomás. Era um senhor que não era filho da terra. Trabalhava nos escritórios da Barroca Grande, casou em Cebola, onde passou a morar e, sendo de trato afável, era muito conceituado e respeitado. Daí que merecesse o cargo de presidente. Enfim, presidente do Clube era, também, por inerência, presidente da “caixinha mágica”! E ele assumiu mais esse cargo sem discurso nem embaraço…. Então, como bom administrador, porque a Instituição precisava de fundos para melhoramentos e equipamentos lúdicos, logo tratou de rentabilizar a novidade. Servindo-se de algumas cadeiras já existentes, arranjou mais uma data de bancos corridos, sem costas, parecidos com os da matança do porco, daqueles que faziam os lugares da “geral” no barracão do cinema do Corredouro, e vai daí montou uma plateia digna de um qualquer coliseu…

 Mandou colocar a televisão no palco, bem ao centro, em cima de um pequeno escadote dissimulado por um pano colorido que talvez tivesse sido colcha de seda ou de cambraia, ou modesto e desgastado cortinado de qualquer janela, e ele próprio se incumbia de a acender, encontrar o supremo sinal das ondas de modulação hertzianas, sintonizar as frequências e depois rodar o botão off para descanso noturno. Comutação de canais é que não porque só havia um. Que felicidade a dele quando tudo resultava e via a assembleia satisfeita com os espetáculos e que tristeza e aflição quando não a conseguia satisfazer por mais que rodasse os botões. Por vezes, acontecia que estava a passar um filme da estranja e ele olhava e via o povo aborrecido, então dizia que não conseguia apanhar a nossa e que tivessem paciência… que vissem o canal italiano, porque era o que, de momento, conseguia encontrar.

 A plateia era composta pelos sócios que nada mais pagavam além da quota mensal e pelos não sócios que pagavam a módica quantia de 2$50 (vinte e cinco tostões, dois escudos e cinquenta centavos) por sessão. Tanto como subir ao pedestal do Cristo-Rei, em Almada, por isso lhe chamavam o “papa 25, ao pedestal, claro! A princípio ainda houve uma certa relutância sobretudo por parte de algumas mulheres mais dadas à “salvação”:

 – Ó D’jazus, vás hoij à telvisen? – perguntava a vizinha como a querer arranjar companhia…

–Vo, Maria, mas-ëi mai log, depos de cuider du më Manel. Ma num së séi pecad…

– Num, num éi! Já perguntë o padr e el dix q’num era…. Olha, diz à Piadad s tamaem quer ire.

 O Clube tornava-se então o local de convergência das pessoas que vinham desde a Ponte aos Cabecinhos, da Abesseira ao Pombal. A plateia abarrotava de gente entusiasmada para ver os filmes portugueses, as cantorias e sobretudo o folclore popular.

 E num dia de maior expetativa, um domingo à tarde, quando se esperava grande animação, o Sr. Tomás bem rodava os botões do aparelho que, teimosamente, lhe fugia para outros comprimentos de onda; batia-lhe ao de leve com os nós dos dedos em cima, nos lados. Já nervoso, quase a agitava. Ouvia-se qualquer coisa imitando um ruído, mas, de folclore… patavina. Ele estava cansado, desanimado. O povo há muito que passara da impaciência ao desespero. Nesta altura reinava um contido silêncio por cumplicidade e empatia com a luta do presidente! Apenas nalgumas mesas postadas aos cantos da sala, ainda ativas com o dominó e a sueca, se ouvia o cuidadoso poisar das pedras ou o sussurrar dos jogadores de cartas. Não fossem os “brandos costumes” dum povo ordeiro e de tradicional conduta pacífica e qualquer pretexto poderia dar lugar a um motim! Levantou-se então uma mulher da fila da frente, decidida, mas mais nervosa do que corajosa, e todos os olhares se voltaram, pregando-se nela. A curiosidade vencera os poderes televisivos. E quando a todos pareceu que iria botar discurso ou liderar o descontentamento geral, apenas se lhe ouviu dizer com a maior brandura e simplicidade:

 – Ó snhô Tomás, ponha ranchos!

 Constantino Braz Figueiredo

 

 







sábado, 27 de junho de 2009

Bye-bye, pintor


 

Por um singular acaso, que propositadamente omito porque nada acrescentaria a esta história, certo dia bateu-me à porta um sujeito que dizia ser pintor de quadros a óleo e desenhos a carvão. Disse-me que não era conhecido porque não tinha condições para trabalhar nem espaço para expor. Ao analisar a questão, abri-lhe as portas de um barracão semiabandonado que possuía nas traseiras de minha casa, e porque sempre fui tido como um ferrenho admirador da arte, arranjei-lhe ainda tinta e telas e mais algum material necessário para o ajudar na sua atividade cultural. Ali poderia pintar e expor à vontade desde que ele próprio ou os ocasionais visitantes não causassem perturbações à ordem social, às crenças religiosas, ao sossego e tranquilidade da comunidade local. Eu mesmo fiquei visita assídua, não só para admirar a sua arte mas também para me assegurar de que tudo decorria sem prejuízo do que ficara estabelecido.


Ele nada pagava; eu nada recebia. Melhor, eu cedia-lhe o espaço e como paga ele pintava e regalava-me os olhos com os seus belos quadros; a mim, à minha comunidade e aos visitantes que eram já muitos e com clara tendência para aumentar. As coisas iam bem, até que um dia recebi queixa de uma influente comunitária, uma matrona fervorosa devota de S. Pedro e S Paulo e já indiciada para candidata a diretora do núcleo duro das novenas. A santinha, madrepérola de jeorjá ou de moreirá, ficara deveras constrangida porque o pintor estava a expor um quadro com cenas escaldantes, provocatórias, vexando os bons costumes e aviltando os valores ancestrais social e universalmente reconhecidos como os únicos aceitavelmente corretos.

O artista ferira a sensibilidade de alguém, tocando o seu conceituado prestígio e, sobretudo, os seus sagrados interesses materiais, ultrapassando, por isso, os limites da liberdade criadora ou se deixando por ela ultrapassar! Avisei-o imediatamente de que estava a pisar o risco, e ele retirou o quadro e pediu desculpa a mim e a toda a comunidade. Mas eu tinha obrigação de saber que artista é artista e quando o seu génio é invadido por satânica inspiração, transfigura-se e fica incorrigivelmente possesso, com loucos arrebatamentos e diabólicas pinceladas a que o vulgo apoda de talentosa criatividade.

Nada há que o detenha…

E logo repetiu a façanha, dando lugar a mais reclamações oriundas da eclésiana matrona, desta vez já encabeçando o tal núcleo duro das novenas, com o infernal dante empunhando a bandeira do bota para o inferno senão vou eu. Então, com nova advertência, o quadro, o pomo da discórdia, foi escondido lá bem atrás e bem protegido de olhares indiscretos.

Ficou indignado!

A princípio não fiz caso nem respondia às suas sempre crescentes reclamações. Encrespou-se o homem e começou a aborrecer-me a sério. Esquecido do contrato e do bem que lhe fizera, ousou enfrentar-me como se o usufruto do espaço fosse já um direito adquirido; e eu, não tem mais – por cada ação há sempre uma reação –, retirei-lhe a chave, mudei a fechadura, e o barracão, agora já com outros artistas, guarda ainda aquelas preciosidades, ou aquelas porcarias, não sei bem, mas que, ainda assim, considero minhas porque foram criadas, pintadas, expostas e valorizadas dentro daquilo que é meu, e é lá que devem ficar!

A partir daí, sem nunca pedir para reentrar, digo-o por justiça e em abono da verdade, insistiu tanto, tanto para lhe entregar as pinturas que um dia, com pena daquele infeliz, botei tudo à porta, mas ele é duro e parece ter alguma dignidade, não aceitou porque faltava uma, dizia. Fui de novo lá e enquanto catava a que faltava, pensei, ou o d. paolo mo teledisse: mas porque há de ele levar os quadros?

Ora!!!...

E voltei a pôr tudo no seu lugar!...

Então, ao ver-se na rua e sem nada poder fazer para retirar o que diz pertencer-lhe, divaga por aí como alma penada apregoando que lhe roubei a obra! Só demonstra que não percebe o velho chavão com milenares foros consuetudinários: o que está em Portugal é dos portugueses. Se não era, passou a ser, por confiscação; confiscação compulsória, digo eu!

Agora chateia-me com mails, mas não lhe ligo. Há de cansar-se, lixar-se e deixar-me em paz. Ainda assim reconheço que poderá haver alguma prepotência na minha atitude. Mas que querem? Sou forçado ou aprendi com os grandes caciques e alguns padrinhos deste burgo que me rodeiam e me sujeitam, como o trinitário d. paolo, que não ousa enfrentar a eclésiana matrona com medo de retaliações e sabotagem da cruzada a que há muitos anos louvavelmente se propôs, e as picadas daqueloutro que procura um xxl para satisfação pessoal, e ainda, por maioria de razão, pelo medo que infunde o temível inferno de dante. Gosto da arte mas não sou artista; embora este pintor me causasse uma certa simpatia, tenho a certeza que ele entende que eu nada mais poderia fazer em defesa e para defesa dos valores desta mui nobre sociedade!… É preciso manter a comunidade na ordem, coesa, para que haja paz e todos se deem bem e sejam felizes. Isso é a empreitada que me incumbiram e a que meti ombros sem reservas; isso é o menos que todos esperam de mim. Descansem que cumprirei…

E a ele, coitado, de nada lhe valerá a insistência, nem que venha para aí com a Inspeção Geral de Atividades Artísticas, invocando Direitos de Autor.

Bye, pintor!...

Constantino Braz Figueiredo