domingo, 24 de maio de 2009

PÕE O TESTO NA PANELA


Se, por estulta ingenuidade, algum dia tivesse esperança de que pela afetividade, crença e prática de ritos espirituais, ditos piedosos, alguém aplacasse a sua vaidade, autoestima e as próprias tendências predadoras, tão comuns e quase tão naturais no homem como a necessidade de procriar e de se alimentar, bastava este triste episódio do José Pires, vulgo José Júnior, mal equacionado e sofrivelmente desenvolvido, para me tranquilizar.

Realmente, este homem existiu em Cebola. Pelos relatos que pessoas credíveis me contam, não há dúvida que o homem existiu… e já era homem em 62! Então porque, puxando pela memória até à exaustão, não o consigo lembrar minimamente. Será que o homem não pisava terreno de mouros onde eu melhor me afoitava? Será que andava tão distraído que nem reparava nas pessoas da minha terra? Como seria possível?!...  A meu ver só encontro uma explicação: JP ou JJ trilharia já caminhos que não eram os meus. Não seriam, indubitavelmente…

Este escrito era para ter sido divulgado há já algum tempo, porém e apesar de se ter falado bastante sobre o assunto e ninguém ter ido mais além do que as próprias suposições de Saramago, não o consegui, visto que estive à espera de dados concretos que pudessem narrar a história verídica ou o mais aproximada possível, e que tinha pedido (encomendado) a pessoas da minha confiança, para, assim, documentar o texto e melhorar a análise e o podermos enterrar de vez se fosse caso disso, como aliás me parece.

Nada nos custa entender que nem só JP ou JJ, em certo momento, se encontrou na mó de baixo. Em todo o mundo, em todas as terras, aldeias, cidades, lugares; nas escolas, na rua ou nas praias há, sempre haverá, gente que se diverte à custa dos outros. Quase sempre, por paradoxal que pareça, são os pobres que se divertem à custa dos pobres; os fracos que se divertem à custa dos fracos. Porquê? Porque sendo seus iguais, da mesma estirpe, estabelecem entre si códigos de valores, empatias e cumplicidades difíceis de compreender. A dinâmica terá origem na própria necessidade de afirmação entre eles. Por vezes, as coisas dão para o torto e alguém sai magoado. Pode, se o incidente for grave, suscitar notícia breve na comunicação social. Mas isso acontece e acontece todos os dias, a toda a hora, em todos os lugares, porém, nem sempre chega lá um promitente Prémio Nobel da Literatura disposto a enfatizar o caso, e que, dado o seu prestígio, o atire para a fama e posteridade. Digo promitente Prémio Nobel porque, se não viesse a sê-lo, jamais um intelectual da nossa terra se interessaria por este assunto, nem por Saramago, tão-pouco assegurar-lhe a recorrência quinquenal em pura exibição gratuita, individualmente cabotina, infeliz e fastidiosa.

Saramago é, qual feiticeiro, um sedutor e um manipulador de sentimentos e de emoções. Na sua visita, que tanto nos honra e prestigia, no dizer de uns quantos, escamoteou a coragem e o trabalho heroico da nossa gente; não perguntou como se fizeram chãos de milho, courelas e socalcos de hortas estendidas pelos barrocos, ribeiros e serras acima; como se plantaram olivais e até vinhas…de porcim ao picoto, passando pelos declives da Cerdeira, do vale de muro às generosas aradas, do vale d’água ao fértil vale da portela-meãs, passando pelos lameiros e quebradas onde tudo foi arroteado, desbravado, transformado em campos para o sustento das famílias; não falou das épicas obras que foram, sem auxílios estranhos, as construções da capela, do monumento e da nova igreja. E tudo ao mesmo tempo em que trabalhavam, adoeciam e morriam nas minas…Isso é comum, diria o escritor-jornalista. Ele, como todos os artífices da comunicação, precisa que o dono morda no cão… E então, se isso acontece, tem material para desenvolver… e fá-lo!

Em fulgurantes pinceladas de génio, tão depressa levanta os seus personagens do chão como os põe de rastos, espezinhados, dormindo e roncado para embalar as moscas que lhes tomam o apreciado e guloso néctar das mucosas ou os despeja numa valeta ou esconso buraco, onde mijam e escarram, estonteados pela droga ou pelo álcool. A uns glorifica a outros crucifica. Uns pinta cruéis e cáusticos, outros ternos e piedosos, por vezes macios, outras, acerados; agora um santo ou um pecador, logo um mártir ou um carrasco, um herói ou um covarde; alegres, tristes, maus e bons, todos pertencem a uma mesma família: são os filhos do mestre que lhes deu luz, vida, pensamento, inteligência, saúde, doenças, alegrias, tristezas, para que o universo da sua obra seja igual à natureza, ao próprio cosmos – igual a si próprio. Nada é diferente; só o artista!... E assim, de um episódio banal que não transcenderia em nada o que é vulgar em todos os tempos e recantos do mundo, porque fora fruto de simples incidente, não planeado e não premeditado, e que rapidamente esqueceria à comunidade que nem sequer o viveu na plenitude, porquanto, poucos anos depois, perguntando Saramago a três pessoas lá na terra – o próprio o diz – já nenhuma se lembrava, obrigando-o a socorrer-se de uma local de um jornal do tempo do acontecimento, que ele próprio redigira, para então literariamente o tratar e converter em tragédia grega para impressionar a humanidade.  

Tenham paciência; haja decoro!...

Saramago criou um fantasma que é seu, não nosso; inventou-o em Cebola inspirado em duas linhas que havia escrito em seu jornal. Tomámo-lo dele, não ele de nós. Cebola é terra de gente, não de fantasmas, e gente tão nobre e honrada como os nobres e honrados campinos escalais de Azinhaga ou como os fidalgos de Lanzarote. E não será qualquer fantasma que manchará a consciência do nosso Povo, ainda que entrajado na forma genialmente moldada por talentoso e ímpar costureiro da literatura. Mandemos, pois, todos os fantasmas às malvas, gerados ou não por Saramago, e coartemos de vez estéreis vaidades pessoais causadas por citações nóbeis que, de algum modo, possam tolher o passo à nossa briosa gente, e prossigamos de cabeça levantada, sem qualquer preconceito a ensombrar a nossa mente individual ou coletiva.

Ao abordar este assunto, tê-lo-ei feito com alguma leviandade, é certo; porém, insisto que foram pressupostos errados, clichés que por aí vogavam, e que, mau grado a sensibilidade que por vezes não abunda, ainda se podem ler na página dedicada à nossa terra no site da CM da Covilhã, que me levaram à convicção de que os acontecimentos se reportavam a uma data muito mais remota. Poderia eu pensar que aquele Povo, tal como o conheci e do qual fiz parte integrante e ativa durante quase vinte e cinco anos, teria tido atitudes como as descritas por Saramago? E teve? O Povo teve? Recuso-me a acreditar …melhor: digo que não! Mas, ai de mim! Ao sustentar esta asserção, que deixei expressa e explicada em anteriores escritos, exponho-me, eu próprio, ao destino do JP ou JJ. Com efeito, mal “tropecei”, de nada serviram os argumentos do meu engano acompanhados das minhas penitências. Como a um ímpio, pequena caterva de assanhados e pretensos intelectuais e seus armados prosélitos logo começaram a atirar-me de todo o lado pedradas e vitupérios, ora com artesanais e arcaicas fundas ora através de sofisticadas bestas, modernas, transformadas…de laboratório…. Creio, até, já estarem a preparar as catapultas com técnica embushada, de última geração!

Uns eram garotos que achavam graça a uma diversão estúpida porque era fácil bater e atirar pedras a um indefeso, embora, por vezes, também ele gostasse da brincadeira porque daí advinha a atenção carecida, sustento do seu equilíbrio emocional, e quem lhe pagava mais um copito, talvez o fizesse, inconscientemente, só para o ver mais alegre e feliz; outros, quais farisaicos moralistas, únicos detentores da verdade, os julgadores, os rotuladores e classificadores do indivíduo só porque viram isso escrito em qualquer livro ou apócrifo documento – grandes sages! –, aqueles que assobiaram para o lado durante e quando os factos terão acontecido vêm, agora, numa vergonhosa e anacrónica cruzada, condenar todo um Povo, sério e honesto, a opróbria e perene contrição.

JP ou JJ morreu, talvez em 67 ou 68, em 73 foi o julgamento que, à matéria dos autos, disse nada; Saramago escreveu em 1981, mas eles ainda demoraram algum tempo a descobrir aquele filão, e quando enfim o descobriram logo aproveitaram o ensejo para fazer brilhar as suas mentes enobrecidas com alguns rudimentos aprendidos nos bancos do saber. Durante mais de trinta anos ninguém soube nem se incomodou com o JP ou JJ. Os seus superiores intelectos estavam tranquilos…Ah grande Saramago!... Uns atiraram as pedras ao teu José, tu atiraste a pedra ao charco; uns deram-lhe o vinho, tu, a eles, a lama que o charco continha, e assim, os grandes eruditos da nossa praça, encontraram uma razão para mostrar-se e pôr as suas consciências em paz, e consumir-se então em profundos pensamentos e assombradas reflexões, cogitando, meditando e lucubrando até ao amanhecer, mas procedendo, afinal, de igual modo; com empírica e calculada subtileza, seguem o mesmo princípio: bater nos mais débeis. Está fraco, vulnerável? Então agora é que é dar-lhe… basta dizer que a razão está no teu lado, logo não está no dele, topas? Atira daí que eu atiro daqui! Se algum desalenta, logo outro vem em sua defesa! Força, força!...É fartar, vilanagem, é fartar… 

Concedam-me, no entanto, o privilégio de ser eu a pensar já que estou mais habituado!... E, por favor, evitem alardear as vossas veneráveis honorificências sociais, os vossos respeitáveis títulos académicos, as vossas riquezas; obras, talentos e virtudes…Isso em nada impressionaria quem já enfrentou, sem inibições, gente até de outro estatuto, e não a defraudou nem desprestigiou Cebola, a nossa querida terra.


Conquanto sitiado no meu baluarte, não estou completamente desarmado, e não sou o JP ou JJ; a mim não me atingem pedradas filosofais. Essas tretas botei pela janela fora há mais de trinta anos. Fosse meu o campo e fosse eu o dono da bola, e mais novo, e haviam de testemunhar verdades incontornáveis em vernáculo do melhor, espargindo-se em jogadas incomparavelmente belas, esplendorosas, dignas dum grande jogador e, quiçá, o maior vernaculista de Cebola. Infelizmente, não tenho uma coisa nem outra, e de cada vez que tento chutar forte, ou experimentar uma jogada menos ortodoxa, a bola é-me retirada e sou admoestado e substituído… e a idade também já me vai retraindo o ânimo que outrora fora  inquebrantável.

Perorando… já sinto a fragrância dum acepipe que me faz lembrar a sopa que a minha irmã Maria José, há muitos anos radicada em França, cozinhou quando éramos miúdos, e a quadra que então lhe fiz para celebrar o seu cheiro e sabor:
                                                                                         

Tão bem cheira a tua sopa
Que um fantasma vem por ela
Pra que não a coma toda
Põe o testo na panela


Constantino Braz Figueiredo







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