O almocreve da serra
Este fabuloso episódio, imemorial, assomou em
misterioso e impreciso dia, envolto em poeira difusa como lenda burlesca, pretensamente
escrita por raio ou corisco de malévola e surreal redação, a jeito de lacónica
e desportiva informação: Almocreve, 0 – Cigana, 1. Da alimária não houve
mais notícia, apenas é suposto ter ficado com o burro do compadre ou alienada
por alguns avos à cigana.
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De uma aldeia vizinha, um pouco mais a norte, desafiando a canícula que naquela tarde abrasava o Vale do Ceira, surgiu a pé um rapagão de indisfarçável robustez, vulgo matulão. conduzindo pela arreata uma mula, sua companheira inseparável e indispensável à profissão que não escolhera de bom grado por carência de melhor opção, mas à qual se dedicou até com algum êxito. Mal entrou em Ceiroco, parou junto à única tasca existente, frequentada sobretudo por trabalhadores que, no verão de 47 do século passado, terminavam o túnel destinado a conduzir um caudal de água “roubada” ao Ceira – acessório requerido para abastecer a barragem de Sta. Luzia. Acomodou a mula à sombra de um prédio contíguo e, não só por grande necessidade, mas também por avitos costumes, eufemisticamente ditos culturais, a pretexto de breve convívio, entrou na tasca e foi tomar uma bebida refrescante, talvez um pirolito, talvez uma laranjada marca Estrela, produzida em Cebola, fábrica Covita, com água pura e cristalina, brotada da mina particular e exclusiva, adrede furada nas faldas da Fraga Alta.
Enquanto isso, atendeu uma cigana que por ali circulava vendendo a sua arte, no legítimo ensejo de captar algumas moedas dos trabalhadores do túnel, acedendo também a que interpretasse o significado das linhas da sua mão (lhe lesse a sina). A cigana, sagaz e, pelo hábito, conhecedora do egotismo humano, falou de tudo o que ele mais queria ouvir – felicidade, prosperidade, saúde, amor, mulher linda e cinco filhos –, mas às tantas, querendo apimentar um pouco tamanha sorte, como castigo por ver regateado o preço do seu serviço, acrescentou que morreria velho… quando a sua mula largasse três flatos num só dia. “Ó diacho!... Três num dia?!” Podia ser que tivesse sorte. A mula. quanto a isso, até costumava portar-se bem. Se fosse um macho já não apostava, os machos costumam ser mais… mais alarves, de desbocada flatulência, e depois a cigana fora bem clara ao dizer que isso só aconteceria quando já fosse velho.
Pensativo, mas confiante, lá saiu de Ceiroco rumo a Cebola, seu destino primeiro e principal (se sobejassem alguns artigos e tivesse tempo ainda iria à Panasqueira), subindo a serra mais o animal bem carregado com a mercadoria indispensável à efetivação dos seus negócios – uma ou duas sacas de carvão, um odre de azeite, mel e afins.
Para se atingir a vereda a norte das Meãs, a meia encosta do picoto, que conduz à portela de Cebola, a subida não é muito alta, mas bastante íngreme, empinada, e a mula lá vinha, devagar, sem incentivos nem pressões. De quando em vez resfolegava, mas enquanto fosse só pela frente tudo ia bem…dava para enxotar as moscas! Até que chegou a um ponto, teimosa (nascera de um cruzamento de jumento com égua), recusou-se a andar sem tragar o seu habitual quinhão de forragem. Comeu um pouco, mesmo sem ser alijada da carga, e prosseguiu mais confortada. De repente, sem que o dono esperasse…lá vai disto, o primeiro flato! “Bom – disse para si o homem – também estamos quase a meio, é melhor descansar um pouco”. Pararam então durante alguns momentos à sombra de um pinheiro, ficando a mula de pé com a carga em cima do lombo, sem que lhe fosse oferecido uma carqueja, sequer uma pedra para se sentar. Não estranhou; já estava avezada a estas simpáticas deferências…
Retomaram a subida.
Logo após o recomeço, a mula, já cansada, farta do peso, do calor, e da subida, disparou o segundo, ainda mais forte que o primeiro. Deve ter-se ouvido em Ceiroco e ecoado por todas as terras do vale do Ceira… Se a barragem de Santa Luzia já existisse, teria causado um tsunami pelo menos de meia polegada! Aí o almocreve achou que a coisa não estava para brincadeiras e arrependeu-se de ter dado ouvidos à cigana, e jurou que jamais se meteria com tal gente; e disse para os seus botões, ou para a brisa que passava ou para a sua besta de carga, que nem que se peidasse mais cem vezes ele teria medo do que diz alguém que ganha a vida só a assustar os papalvos. Ele não era desses!... Nunca! E tocou a mula. Vamos depressa sua pileca dum raio…sua ciganita feia e enjeitada!
A mula não deve ter gostado do discurso e ficou com cara de quem não deve nada a ninguém. Feia, hein? Ela que, quando estava bem disposta, sem o sacana do trabalho de escrava a que era submetida sem piedade, ela que, quando arranjada e escovada a preceito, quando considerada e acarinhada, era capaz de contentar três jumentos e dois cavalos!... E ainda deixava sete machos, babados, em lista de espera!... Feia e enjeitada ela? Ela, filha daquela linda égua e de um garboso jumento arraçado de garanhão?... Ela? Não mede as palavras! Já ia ver!
Entretanto o dono, apesar da
fanfarronice de há pouco, não parecia muito tranquilo, e passou para trás da
mula como que para vigiar e controlar as saídas, olhando as contrações do
orifício, umas vezes lentas outras mais apressadas. Não gostava nada do que
via. Começou então a ficar desconfiado e preocupado.
Suava das mãos, da cara; sentia comichão nas costas que depressa passaram ao pescoço, a todo o corpo; um mal-estar generalizado causado pela ansiedade, o nervosismo, o pânico. Quis acalmar-se pensando que tudo iria correr bem, que faltava pouco para atingir o cume do monte, depois era quase plano até à portela e da portela, sempre descendo, um pulo. Será que ela aguenta? Será que não? Será?…
Até as moscas já tinham abandonado o ânus do animal.
Pelo sim pelo não era preciso tomar uma atitude preventiva. Impunha-se medida adequada. Para grandes males, grandes remédios, sempre ouvira dizer. Os grandes homens são os que, imbuídos de destemor e coragem, conseguem ultrapassar as maiores vicissitudes! E foi possuído de inabalável volição que, qual general de campanha, estratego napoleónico em Waterloo, vendo a derrota quase a consumar-se, decidido, estroncou uma pernada de pinheiro, mandou avançar, como um esquadrão de lanceiros, o canivete que na véspera afiara, e rapidamente fez um taco que enfiou no buraco traseiro do animal para servir de tampão.
A mula ficou ainda mais incomodada, não só pelo que lhe doía, mas também porque aquilo lhe fazia falta para ir libertando os gases. Nem só os pulmões precisam de respirar, as tripas também, à sua maneira, claro! E, naturalmente, a jumentóide, forçando os músculos anais, ia empurrando a rolha para fora. Sempre atento, o homem empurrava para dentro. Para fora… para dentro; para fora… para dentro. Já não se distraía nem prestava atenção a outra coisa. Ia aflito e, mais de perto, olhava calculando ao milímetro a saída do taco. “Aguenta, tem coragem mula linda, és a melhor mulinha do mundo; quando voltarmos dou-te comida fresca e levo-te ao jumento do compadre… – sabia como ela adorava o burro do compadre… – vá, mais cinquenta metros e atingimos o cimo”. Mas qual linda, qual mulinha, qual comida fresca… e depois o seu namorado que esperasse que ela agora estava aflita e tinha de resolver sem demora um problema de capital importância!
Chegara a hora!
A situação tornara-se insustentável, não podia mais! A sua barriga começou a inchar como um balão… só havia uma escolha: ou o bandulho ou a rolha; ou ela ou o dono. De súbito, travando e fincando bem as quatro patas no chão, procedeu como a sua natureza e instinto de sobrevivência ordenaram, conseguir força e concentração suficientes para expulsar os gases atrasados, forçadamente acumulados, congestionados, aquecidos e comprimidos que, uma vez livres, explodiriam como uma bomba anatómica (não atómica que nesse tempo ainda não havia), e o sopro, saindo violentamente em turbilhão, tudo à frente levaria incluindo o taco disparado com velocidade meteórica, um míssil desse tempo, à queima-roupa, apanharia o homem na cabeça, fulminando-o instantânea e irremediavelmente!…
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O meu burro sabe tudo
Um pouco mais do que eu
Pensará o orelhudo
Que sou dele e não ele meu?
Constantino Braz Figueiredo
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