sábado, 23 de maio de 2009


A BOCETA  DE PANDORA 

O que eram esses tempos!... O que foram os tempos inóspitos da nossa infância…! E o que teriam sido os tempos dos infantes que nos precederam?...

Fora um período difícil para toda a gente, vivesse, trabalhasse ou tivesse a profissão que tivesse. Estava-se em plena Guerra Mundial; tinha acabado a Guerra de Espanha.

Paradoxalmente, só depois das guerras é que foram os dias piores para os nossos pais, já que, enquanto na Europa, Ásia e África se combatia pelo domínio dos Povos, em Cebola ganhava-se dinheiro como nunca, nalguns casos mesmo muito dinheiro! Se a década de trinta tinha sido a das lutas pelos horários e por melhores condições de vida, a dos quarenta fora a década do “kilo”.

 De todo o lado, das potências em conflito, havia apelo às matérias extrativas de que o nosso subsolo era fértil, e a diretoria das minas deu liberdade para exploração própria, e a esmo, do rico mineral, contanto que lhe fosse “vendido” pela tabela por ela fixada. Era dinheiro fácil, aparentemente fácil, porque além de não passar de ilusão ardilosa, também fora onde os mineiros mais arruinaram a sua saúde, pois trabalhavam sem quaisquer condições de ventilação, sem descanso, mal alimentados e sem higiene. Mesmo assim fizeram, modificaram e pintaram as suas casas; fizeram mais filhos, e beberam, beberam… Nunca houve tantas tascas por metro quadrado e por pessoa!

 Um dia, a guerra acabou, o “kilo” acabou, e eles, tristes, com as ferramentas que haviam adquirido no Fundão, volveram, sem emprego, para junto das suas aflitas mulheres e da prole que teria de ser alimentada, vestida e educada.

Aos poucos, as minas iam adquirindo o seu ritmo normal, e os mineiros da nossa Terra iam sendo integrados na exploração. Crê-se que foi a partir daí que o Couto Mineiro terá atingido o seu apogeu; em 1950 dizia-se que eram cinco mil as pessoas que trabalhavam para a Companhia, dentro e fora da mina.

 Entretanto, durante o lapso de tempo que mediou entre o “kilo” e a sua nova admissão nos quadros da empresa, recorreu-se ao famigerado saltipilha e foge (ou será assalta, pilha e foge, expressão que terá redundado em saltipilha por força da declinação semântica através de via popular, já que a construção literária assim nos obriga a pensar?) e aí então eram “admitidos” todos: homens, mulheres e adolescentes. Na qualidade de crianças, podíamos, de longe, assistir ao deprimente espetáculo da GNR atrás dos mineiros por aquelas serras da Abeceira (Avesseira) e do Vale de Ermida, assim como nas ribeiras do Vale de Muro, vale d’Água até Porcim. Fazia-se pela vida deitando a mão a todos os recursos possíveis. Era assim; assim tinha de ser.

O que eram esses tempos! O que foram esses tempos…

Aos homens com mais de dezoito anos era concedido o exclusivo de serem admitidos para trabalhar dentro da mina e a prerrogativa de encherem os pulmões da venenosa sílica que, insidiosa e insinuante, os tomava até os aniquilar, dando-lhes uma sedutora esperança de vida até aos cinquenta e poucos, sem que antes passassem por degradante sofrimento, durante os últimos cinco-dez-anos, de sentirem o seu pobre aparelho respiratório em acelerada e irreversível decomposição, tossindo e expetorando sangue e outras esquisitas matérias segregadas pelas entranhas dos seus arruinados pulmões.

 O que eram os tempos, o que foram esse tempo!

 Às mulheres fora dada a veleidade de fazerem todo o trabalho caseiro, das hortas e courelas, de cuidar do seu homem, de parir, criar e educar os filhos e aguentar sem desfalecimento todo aquele desabar de vida quando a saúde faltava e o dinheiro não chegava. Depois, já quando os seus homens não podiam, devido a doença ou morte, lançavam-se, elas mesmas, heroicas, sublimes, a qualquer esforçado trabalho que lhes desse sustento para a família. E então era vê-las, orgulhosas pelo êxito, e mais por terem conseguido sem qualquer auxílio das entidades instituídas – as chamadas forças vivas – tampouco das estruturas sociais, que, dessas, não se tinha conhecimento local, concelhio ou nacional. Cada um por si. Ou seja, cada uma por si mesma!

Têm razão as mulheres, as mães da nossa Terra e de todas as terras do chamado Couto Mineiro… e as daqueles que, vindos de longe, pernoitavam nos barracões da Panasqueira e Barroca Grande e só iam a casa uma vez por semana, onde chegavam extenuados pela árdua semana de trabalho e pelo cansaço de, a pé, por montes e vales, por veredas e atalhos chegavam ao Paul, Silvares, Erada, Casegas, Sobral, Dornelas, Covanca e muitos outros burgos circunvizinhos. Têm razão as mulheres “mineiras”. Nunca serão reconhecidos os seus sacrifícios, as suas canseiras e angústias.

 Se fosse possível contar a experiência de cada um, ou cada um contar a sua própria experiência, honestamente, sem rodeios, e sem eufemismos que tudo subvertem e que de tão adocicados só nauseiam… se houvesse relatos justos, verídicos, a História da nossa Terra seria real e séria. Deixemos a pesquisa para os estudiosos sociólogos e antropólogos da nossa praça, e confiemos…

 O que foram esses tempos…

 E dos filhos? Alguém se lembra deles? Garotos … bah! É preciso é que vão à escola, à doutrina, que “apanhem” e, logo que possam, que vão trabalhar, pois a vida custa a todos! Começavam por carrear mato para estrume do porco ou das cabras, e a lenha que fazia falta para cozinhar e aquecer no rigoroso inverno logo aos nove ou dez anos iam com as mães para a ribeira, e enterrados na água até às coxas apanhavam terra que era suposto “pintar” para as garimpeiras mães lavarem em bacia adequada, à espera que lá no fundo surgissem minúsculos grãos de minério. Depois, logo aos doze treze anos empregavam-nos nas minas, na correia, alfobre de mineiros.

 Bom… a correia! A correia não deveria contentar-se com um parágrafo, nem com um livro! A correia fora degradante para os garotos de Cebola, sobretudo para os órfãos. A correia era um barracão baixo e comprido com paredes exclusivamente de chapa de zinco e coberto com placas de lusalite, com intervalos em cima e em baixo para arejar. Imagine-se então o que era estar ali no verão durante oito horas! A correia, afinal, consistia em duas passadeiras transportando cascalho, uma em frente da outra com as torvas no meio; o cascalho passava e o “filão”, seixos e minérios, era escolhido e deitado para as torvas. Ah! Havia meia hora para almoço.

 Ainda falam da “frigideira” do Tarrafal… Haviam de ver o que foi a “frigideira”, vulgo correia... e o trabalho em si, com as mãos engadanhadas pelo frio, sempre dentro do cascalho húmido mesmo no inverno rigoroso. Depois eram os castigos. Pediam para ir à sanita… e o vigilante espetava dois dedos na sua direção e marcava a hora: dois minutos; a água que bebiam era trazida por um caneco de madeira em que faziam um furo na parte inferior tapado com um espeto que se tirava para aparar com inclinação do corpo para o lado e um caricato esgar bocal. Podia ser fresca na origem, mas ali ficava “choca” (inerte e morna).

 Depois eram as incontornáveis chicotadas com que todo o dia eram mimoseados por vigilantes, capatazes e capatazes-gerais. Trabalhavam que nem escravos, e o chicote, manuseado por aqueles pobres de espírito que mandavam e vigiavam, zurzia-lhes os corpos imberbes e indefesos sem dó nem piedade. O maior exercício intelectual daquelas mentes patológicas, sádicas e perversas, consistia em encontrar maneira de um sobrepujar o outro na arte de bem azorragar. Havia “menino” que cortava uma mangueira de regar em seis ou oito tiras, deixando dez centímetros para punho.

 Eram tempos…

A sorte é que ainda não havia por cá originários de África, porque se houvesse e vissem como era a escravatura branca, logo debandavam a sete remos a refugiarem-se no colo de Gungunhana, porque esses ainda tinham os seus sobas para os protegerem. Ao invés, aqui, neste país ocidental dito civilizado, não havia uma voz (uma só!) que viesse a terreiro denunciar tais atropelos a todas as leis internacionais humanitárias. Nem sindicatos, nem autoridades oficiais e muito menos ainda os lídimos senhores da ética, da metafísica, que esses, por tradição, apenas se dão bem com as classes dirigentes, dominantes e possidentes.

 …esses tempos…

 E as nossas infantas? Tudo o que foi dito acerca das mães e mulheres tem merecida aplicação nas raparigas da Terra de que tanto gostavam, apenas com a diferença de que trabalhando de igual modo, ou mais, o faziam com redobrada alegria. Compreensível… irreverência juvenil! … Cantavam, dançavam divertiam-se, namoravam. Eram airosas, esbeltas e brejeiras, sem serem boçais… maliciosamente encantadoras essas meninas!... A elas se deve em muito a edificação da nova igreja. De facto, foram elas quem mais trabalhou, graciosamente, na ajuda diária aos artífices contratados; eram escaladas, por grupos e por zonas de habitação. Eram, além do mais, abnegadas, estoicas como toda a gente da Terra, embora esse estado nada tivesse a ver com o estoicismo de Zenão, de Cícero, já que esses eram conscientemente passivos, consciente e filosoficamente doutrinados para sofrerem, enquanto os de Cebola o eram sim, estoicos ativos e heroicos, mas por necessidade compulsória

  …ainda esses tempos…

 Todavia, não se infira daqui que só Cebola e povos limítrofes da Minas sofreram. Salvo raras exceções, para a regra ser regra e continuar axiomática, havia dificuldades em todo o lado, em todo o Globo. Em Lisboa, a capital do Império, havia milhares de pessoas a viver em barracas, mal alimentadas e com precária ou quase inexistente assistência social; havia milhares de casas urbanas, já com água potável é certo, mas sem casa de banho e – pior! – sem um ribeiro ou uma presa por perto onde pudessem lavar o dianteiro sequer o traseiro! E a vida nas grandes urbes do mundo não diferia muito – Roma, Paris, Berlim, Londres, Buenos Aires, Tóquio… a China a Cochinchina sofriam do mesmo mal. E isto cotejando apenas as nossas aldeias com as grandes cidades do mundo evoluído. E como seria a vida nas aldeias desses países? Como seria nos arrabaldes e periferias de Moscovo, Berlim, Paris, Manchester… nas favelas, no sertão, nas pampas?... Tudo é relativo e tudo tem de ser relativizado e enquadrado no espaço e no tempo e no conhecimento evolutivo das gerações. As pessoas não eram insensíveis ou indiferentes às agruras da vida, mas haveria melhor? Aqui sofria-se pelo trabalho das minas, a silicose, a morte; aqueles, lá longe, sofriam com as guerras e suas sequelas, as epidemias, a morte… qual a diferença?

 Postas assim em evidência tantas canseiras e ralações desta gente poder-se-ia pensar a priori que outra coisa não se faria do que carpir mágoas. Puro engano! O povo era entusiasta, alegre e participativo. A juventude, pujante e criativa, como aliás se depreende pelas fotos que vão chegando ao tópico “Antigas” deste formidável e útil Site. A década de cinquenta foi um manancial de atividades lúdicas e associativas, culturais, desportivas e religiosas. Como bem revelam tanto essas fotos como os relatos ou simples comentários de “viver” ou de ouvir contar, “A Nossa Gente” era bastante versátil e eclética. Não havia… inventava-se! Havia cinema, teatro e (imagine-se!) até uma gala de fado com artistas de Lisboa, donde ainda nos recorda uma quadra da desgarrada com que esse evento encerrou.

Estes espetáculos tinham lugar num barracão que havia na rua do corredouro construído para esse fim, e que morreu porqueo Clube da Panasqueira  resolveu enviar a Cebola, aos sábados, um autocarro sem custos acrescidos ao bilhete de entrada no cinema. Era bom! Quanto ao teatro passou a ser no nosso Clube, e fora bastante… Alguém hoje acreditaria, se não houvesse testemunhos disso, que  cinco grupos cénicos, compostos exclusivamente por filhos da Terra, ali  representaram e que todos tiveram um hino?

 Havia uma Filarmónica constituída por muitos membros que abrilhantava as festas de Cebola e todas as festas dos arredores e até no Distrito de Coimbra. Também o grupo de futebol, O Estrela da Serra, do qual hino ainda nos lembra o último verso (”na vida ele há de ser a nossa boa estrela”), semeava o “pânico” por todas as terras onde passava. Que o digam os de Silvares, do Fundão, Tinalhas, Panasqueira, Barroca Grande, etc. Para o meio, era uma “máquina infernal” de fazer golos. Só à Panasqueira que tinha uma boa equipa – dizia-se –, em dois jogos o Estrela marcou 18 golos; 11 na portela, 7 na Panasqueira! Os manos Vítor e Xico destruíam qualquer muralha defensiva ainda que fosse construída com aço e betão! Nunca se empatou nem se perdeu qualquer jogo! Havia ainda em Cebola o Clube, as festas e seus mordomos, além das instituições Junta de Freguesia, Regedoria e Paróquia, sem esquecer o ti Zé retratista que, sebento e envolto em mistério apareceu nos anos trinta, sebento e misterioso viveu sozinho no seu tugúrio e reinou com o seu monopólio na década de quarenta até que morreu, sebento e em mistério tal como tinha chegado. 

Com o surgimento dos kodak’s, o reinado da fotografia passou a ser de um senhor do Terreiro. Depressa essas máquinas proliferaram e o negócio foi-se… Ainda tardariam as polaroides, as digitais, as webs cam’s… as transmissões diretas… lá se chegará em breve…. Havia cantores, compositores, poetas e artistas; tímidos e espontâneos; gagos e repentistas; pedagogos e demagogos, mas doutores e políticos, não. Está a falar-se já da década de cinquenta… e um relógio de pulso custava quinhentos escudos … quase o ordenado mensal de um mineiro!

Depois desses tempos, outros tempos…

Tal como na mitologia grega, em que todo o mal da humanidade terá tido origem na boceta que Pandora abriu por curiosidade, o mal, aqui, ao que parece, terá sido a abertura da mina. Trazia algum bem: o dinheiro, coisa nova, já que antigamente as transações seriam feitas com géneros. Tomara-se-lhe o gosto e jamais se pôde viver sem ele; era uma ilusão: trabalhava-se para comer e mal se vegetava. A ilusão penetrou e a saúde esfumou-se. 

Mas a década de cinquenta estava a declinar. Os anos de juventude dos irreverentes “filhos” do kilo estavam a terminar dando lugar a homens mais conscientes, fortes e viris. Já tinham ido à tropa, uns, outros preparavam-se para ir. E no alvor da década de sessenta, já com outros conhecimentos, adquiridos nas minas pelo contacto, pela comunicação com pessoas de outros lugares, pela troca de ideias, sabia-se que os países que mais sofreram com os conflitos mundiais estavam a transformar-se em economias florescentes, carentes de mão de obra para a reconstrução das suas estruturas abaladas ou destruídas pela Guerra. Da França, Alemanha, Suíça… até do Canadá chegavam rumores dessa necessidade. Concomitantemente, das colónias sopravam ventos anunciando novos conflitos, de lutas pela emancipação. 

Era tempo de pensar…

Pandora, talvez arrependida e envergonhada do mal que causara, abriu a boceta mais um pouco… mais ainda… arrancou a tampa! E viu, assombrada, que, lá bem no fundo, havia algo mais poderoso que todas as desgraças e calamidades que afligiam a humanidade, um Bem que o Mal não pode vencer: a esperança - principal e importante lenitivo e consolo dos desfavorecidos.

Chegara a hora das grandes decisões. 

Já, de algum modo, escorados nas informações e conhecimentos adquiridos, os heroicos e sacrificados mineiros viram a mina destapar-se qual boceta e libertar das entranhas a sempre fugidia e negada esperança por que tanto ansiaram. Agitados pela emoção, logo cavalgaram esse sentimento com alegre e sublime coragem cientes de que estava criada a grande oportunidade de darem verdadeiro rumo às suas vidas, o ensejo para melhorar o próprio futuro e devir dos seus filhos. E então do seu peito transbordou, intenso, um grito uníssono, um clamor fremente e incontido: Basta!...

 …a diáspora começara…

 

Constantino Braz Figueiredo

       Um talo DE CEBOLA

 




 








Pandora - gravuras retiradas da Google

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