terça-feira, 1 de dezembro de 2009

As minas de volfrâmio "pintadas" por quem sabe


 
Não!

Não fui eu que escrevi o excelente trecho que apresento. Não fui, mas gostaria de ter sido. Infelizmente, falta-me cultura e conhecimentos técnicos nas áreas da haurição, da sociologia, antropologia, geologia; conhecimentos históricos, geográficos, ambientais e outros; e falta-me, sobretudo, não ter sido esse o meu percurso académico e poder ter feito disso a minha profissão. Não faz mal…há quem saiba e no-lo entregue, de mão-beijada, com todo o esplendor do seu saber. Ao artigo, pois, que bem o merece! E jamais haverá gente do Couto Mineiro, de Cebola, que ao ler com estudiosa atenção o que ora lhe é proposto, ficará sem compreender, de vez, as antecedências, sequências e consequências da vida, do inferno e da morte mineira!....


Trata-se de um artigo que, à primeira vista, será maçudo, por parecer demasiado técnico e prolixo. Mas não. Quem conhecer a vida mineira ou tiver família que a viveu e conheceu, logo perceberá que lhe estão a falar ao âmago, à sua essência…e sentir-se-á confortado por haver alguém, nem que seja do “outro mundo”, que dissecou, com feliz sucesso, as causas e os efeitos do volfrâmio.


Então, venham comigo ao “kilo”, melhor, ao "Filão Rico".



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Introdução:

"O ambiente subterrâneo é tecnológico - mas é também uma paisagem mental, um terreno social, e um mapa ideológico."

O mundo subterrâneo das minas cujas condições básicas de "habitabilidade" - ar e luz - são asseguradas pela ação humana através dos recursos técnicos mobilizados para esse efeito, é um ambiente à-partida construído, artificial e marcadamente tecnologizado.

As minas de Volfrâmio dispersas na província estanotungstífera do extremo ocidental europeu, localizam-se em montes e vales dos mais recônditos locais mas sempre em meio rural. A sua exploração, desde o início do século, mas com redobrada intensidade, por ocasião II Guerra Mundial, correspondeu a um fortíssimo movimento de tecnologização de espaços rurais, em larga medida, ainda submetidos ao ritmo cíclico das estações, traduzindo-se, por conseguinte, numa violenta e acelerada interferência humana na natureza. Dessa ação e do revolvimento de terras em muitos casos inutilizadas para a cultura durante anos, que tiveram um efeito igualmente ou ainda mais poderoso ao nível de todos aqueles que dela participaram, ficaram marcas profundas no terreno social e cultural.

Foi toda uma paisagem mental que se alterou, decisivamente. Tanto que, no caso do volfrãmio e, com particular incidência nos anos 1940, foram milhares e milhares de homens e mulheres até aí entregues aos trabalhos do campo que acederam a um meio ambiente que prefigurava em quase tudo o novo meio da vida citadina. Um meio em que a marcada sucessão das noites e dos dias perde sentido no continuum da luz artificial.

Daí que falar de minas, seja entrar, no que em gíria mineira, se designa por "um mundo à parte", onde depois de se lá estar, o que mais custa é sair dele. Daí que falar de volfrãmio, seja falar de mineração intensiva pautada ciclicamente pelas guerras que mais marcaram o nosso século. Em suma, um mundo, a vários títulos, subterrãneo.

Ideologicamente, esse mundo e a atração magnética que tem exercido ao longo dos tempos, sobre a humanidade integra um princípio estruturante da sua própria organização espacial segundo um eixo vertical, a que cabe ao céu, sobrecarregado de promessas de salvação, o plano superior, e ao lugar traiçoeiro de lamas, lodos e ruídos da natureza mecanizada, lugar tecnologizado, inferno de todos os castigos, o plano inferior, à vida humana, restando a condição de passageiro dividido entre uma partida imprevista e uma chegada sempre antecipada de uma viagem irremediavelmente curta. Esta visão do mundo e da posição nele ocupada pelo homem enformou, a ocidente, a cultura dos povos largamente sustentada por toda uma historiografia e criação literária tendo por paradigma ou referência mais próxima a já tornada clássica mineração do carvão, infraestrutura da revolução industrial, fenómeno considerado inaugural do capitalismo industrial. Mas as suas raízes perdem-se na noite dos tempos. Há toda uma história noturna de descida aos infernos ao mundo espectral dos mortos de que se alimentam crenças, mitos e de que se compõem narrativas com um fundo comum, e que ainda hoje, nos salta ao caminho, nos momentos de maior aflição, com a força das coisas que fizeram de nós a possibilidade de o sermos.

Esta visão do mundo é ponto de passagem obrigatória ao querermo-nos abeirar desse trabalho de mineração subterrâneo, ao termos que penetrar também pela linguagem "material sonoro de natureza social e histórica por excelência… património coletivo comum" , nesse mundo à-parte, terreno social que vimos estudando nas suas multímodas manifestações, e que aqui, nos propomos desenvolver através da identificação e inventário contextualizado de elementos de um socioleto luso-galaico dos grupos sociais em que as mesmas se sustentam. Fazêmo-lo a propósito da passagem e posterior adoção de um vocábulo de estranha sonoridade - wolfram -, o volfro e wolfram de milhares de portugueses e galegos que se entregaram, por empreitada e conta própria, á "apanha do mineral" ou, assalariados, se ocuparam na lavra subterrânea de filões em muitas minas e coutos mineiros registados por concessionários e companhias nacionais e estrangeiras - Borralha, Santa Comba, Panasqueira, la Silleda, Vale das Gatas, Monte Neme, Arteixo, Adoria, e tantos outros jazigos dos mais ricos do mundo em volfrâmio - metal isolado em laboratório, há apenas 200 anos, e que, pelas suas inúmeras aplicações industriais veio a entrar na categoria dos metais estratégicos, sendo considerado o metal do século XX.

Em Portugal mas também na vizinha Galiza, a corrida ao volfrâmio com a sua intensa procura por parte dos dois blocos beligerantes da II Guerra Mundial, constituiu episódio central da vida das populações, largamente emigradas no pós-guerra. Movimento histórico acantonado nas designações "questão do volfrãmio", "guerra do volfrãmio", "longa saga da batalha do volfrâmio", e quanto a nós instituinte de modernidade, obscurecido nas práticas historiográficas e sociológicas, temos vindo a estudá-lo, enquanto objeto de fronteira para uma sociologia histórica do Portugal Contemporâneo. Neste âmbito, perspetivamo-lo aqui como núcleo organizador de uma constelação de expressões sociolinguísticas que compõem o dialeto de grupos sociais desse "mundo-à parte", o mundo mineiro, subterãneo. Só aí "Volfro", "wolfram", "volfrâo", "ouro negro", "china", "volframistas" e outros termos de idêntico enraízamento são expressão de uma mesma "língua" balbuciada, nas suas diversas variantes, no contrabando de fronteiras e na emigração, de um mesmo espaçotempo sociocultural onde se interpenetram várias lógicas ou mundos sociais constituindo-se na mundividência através de cuja compreensão, o estudo da sociedade portuguesa (1930-1960) adquire uma nova linha de investigação. A discussão deste argumento de história social anónima que compõe o que designamos nas memórias do volfrãmio, um socioleto luso-galaico faz-se, procurando tomar como recurso teórico a noção sociológica de "testemunhos articulados", de uma nova teoria crítica, através da interpelação de memórias e depoimentos e da interrogação de materiais de que se compõe o "mundo imaginário" das ficções e romances de "intervenção social" que tomaram a saga dos mineiros e a questão do volfrâmio para matéria literária.

1. O terreno social

Em Portugal, e em idêntico processo, na Galiza, produziram-se socialmente em torno das palavras volfrâmio, wolfram e volframistas destaxistas elementos de um socioleto lusogalaico e uma intensa e mesclada constelação filoniana de mundividências, paisagens mentais, e mapas ideológicos, de que certa literatura da época se fez eco. Com estes e outros materiais - discursos, narrativas autobiográficas, registos orais e visuais de história - tentamos trabalhar memórias sociais reconstituir, na medida em que aí se terão manifestado e para tal contribuido, uma profunda e lenta mudança social e cultural, politicamente obscurecida, e cuja compreensão desafia outras escavações de velhos e novos veios da nossa contemporaneidade, numa perspetiva de análise que integrando a "contemporaneidade do amanhã dos que não têm ontem nem hoje", privilegie o estudo das práticas e representações, e dos meios da técnica e da ciência então em afirmação.

O Volfrâmio, "o mesmo" que o Wolfram alemão, inglês e galego entra na língua portuguesa a designar um mineral metálico raro e valioso para a indústria moderna. Mas para além deste seu significado mais preciso, o volfrâmio - o "Volfro", "volfrão", volfran e "ouro negro" das populações, outros tantos elementos do socioleto que inventariamos - viria a tornar-se, pelos preços exorbitantes a que chegou, em termo de comparação de todos ou quase todos os produtos que, por indução, atingiram preços especulativos, ainda hoje quase inconcebíveis, desde o azeite às batatas, e ao próprio pão cuja carestia era então significado de "pior do que volfrâmio".

As características da sua exploração induziram subsequentes alterações nos modos de vida e costumes das populações que sem trabalho ou abandonando tradicionais e menos rendosas atividades, se entregaram à sua extração e comércio, poucos sabendo ao certo do seu destino final, todos procurando, por mil artes e artimanhas vender aos melhores preços - subindo/descendo no jogo das redes cruzadas de intermediários ao serviço de um ou de outro ou de ambos os blocos beligerantes, em negócios mantidos pelo dinheiro barato ou gratuito da extorsão nazi-alemã do ouro e bens de judeus e outras minorias, e pelas vidas dos povos vitimados no curto espaço desses anos. "A Mina é uma cheia implacável, que vem sempre e sempre crescendo" e as pessoas correm para a apanha do mineral, a céu-aberto - "há casas que os homens deitam abaixo para não perder a pista de um filão"- , ou para a extração do volfrâmio, em trabalho subterrâneo, à procura das bolsadas , perseguindo filões debaixo da terra, esventrada em poços e galerias abrindo-se aos carris e vagonetas, por ruas transversais qual plano urbanístico subterrãneo.

Na convulsão social e mudança caótica assim gerada, o desenho polícromo de riquíssimos frescos humanos, episódios e facécias de grande vivacidade, onde abundam, os "pilhas", "os do quilo", os "cem gramas", os "apanhistas", os "empreiteiros", os "apanhadores" e "lavaderos", conforme os usos das regiões mineiras, apanhando, desviando, falsificando e vendendo minério, e se destacam, os "volframistas" de todo o lado, os"farristas" das Minas da Borralha, no Gerez, os "destaxistas" galegos comprando, vendendo e fazendo contrafação. Figuras sociais novas, novas imagens e simbologias em que renasce súbita e fabulosa , a velha mira da riqueza fácil dos cartos, peludas, notas de quilo ou de conto que enchiam as carteiras e serviam para imediatisticamente aceder aos então sinais exteriores de riqueza - livros por grosso e lombada, canetas de tinta permanente para ostentar na lapela, gabardines para colocar no braço, colchões de suma-a-duas, melhores que os de suma-a-uma, andar a cavalo, nas deslocações aos prazeres e negócios citadinos, em carros e táxis alugados que começavam então a generalizar-se como meio de transporte público. Novos ricos e excessos de todo o tipo no comércio do volfrâmio negócio da china, cujas somas fabulosas movimentadas terão permitido a uns poucos acumular fortunas escondidas, aos novos comerciantes remediar as suas vidas e melhorar a dos filhos, pela via dos estudos - uma nova geração, a dos "filhos do volfrãmio" - a muitos outros tendo deixado tão pobres como antes, assim justificando o velho aforismo de que água o deu água o levou. Nada deixando porém, como dantes" Já chamaram à nossa época, pelo muito que o fenómeno vincou o meio, época do volfrãmio. Quero crer que haja exagero de expoente. Entre nós, tal furunculose, com o dramático que comporta, deve antes representar uma das manifestações eruptivas da crise social que o mundo atravessa.Volfrâmio aqui, petróleo além, borracha acolá, há que integrá-los no substrato complexo e temeroso que engendrou a guerra."

Na "batalha do volfrâmio", época de contrabandos e candongas, essas imagens de "dedos recheados de anéis, fatos de senhor da cidade, contando aventuras de olhos esbugalhados" e de mineiros aburguesados derretendo os ganhos a comprar chita por seda, correm a par de outro mundo que o volfro não desnorteou, o de milhares de trabalhadores e mineiros, ex-lavradores e jornaleiros, morrendo novos com o mal do pó ou atabafados do tufo, estropiados nos desastres frequentes pela ânsia do ganho e míngua de cuidados, entalados entre pensões de miséria e negaças dos seguros, comendo na mina "pão e faca". Mundo pouco visível como outros, mobilizadores de tecnoculturas e terminologias importadas, as quais relevando de saberes técnicos e formalizados iriam ser reapropriados e objeto de misceginação com práticas e saberes leigos.

Todo um território social em que mundos diferentes e lógicas contrastantes são postos em relação uns com os outros.

2. O ambiente sociotécnico : a paleotécnica da indústria.

No Norte e no Centro de Portugal, como na Galiza, foram (re)ativadas no contexto da II Guerra Mundial, centenas de pequenas, médias e grandes minas que utilizando basicamente máquinas e tecnologia de mineração importadas dos países do centro do capitalismo (Inglaterra, Alemanha, França, etc.) passaram a absorver a mão de obra então largamente disponível. De tal facto é testemunho evidente a exploração do volfrâmio apreensível ao nível da emergência do socioleto luso-galaico cuja inventariação se prossegue.Na generalidade das muitas pequenas e médias minas do país, sob intensa exploração alemã, foi a língua alemã, de cujo wolfram se deriva volfrâmio, e quiçá, as tão desejadas "chinas"- pedras de cor negra, muito mineralizadas - , ainda hoje efusivamente lembradas por todo o mundo para onde emigraram os que antes as procuravam . (Noutros sítios, como no Couto Mineiro da Borralha, durante mais de 50 anos, explorado por capital francês, foi por exemplo o caso do vocábulo francês "poches" seguido de outros, enquanto que nas minas da Panasqueira exploradas por ingleses, desde a década de 1930, o mesmo se passou com a língua inglesa) Todas sendo, por modos de receção diversos, objeto de contrabandos e transações linguísticas, num processo de profunda miscigenação de saberes "leigos" e "peritos" em contextos socioprofissionais.


Aqui na Panasqueira, o primeiro método de desmonte foi ....o foi o "rendas e bordados"…era o que se fazia no tempo da guerra e continuou até 50 e tal…desde 1937 até 1948 era só esse… …o "bacalhau" ou "leque"…não, long wall é outra coisa é o de "frentes paralelas" e foi até por volta de 1980 …. o bacalhau ou leque usou-se até 1977/1978…era com martelos para poupar energia …íamos avançando na rocha.. e o empolamento que se tirava ficava lá, fazíamos as barragens … e aterros de lama para construir paredes…para o fogo não rebentar com as paredes…assim é que se faz o leque…depois passámos para o de frentes paralelas…e desde 1960-70 que se usa o método que está agora, o de "câmaras e pilares"…o em "espinha"… aqui vê-se melhor neste conjunto de desenhos… fazíamos ruas e metíamos parafusos …"rolf botes" … nos "pelos"…são fissuras…onde parte a rocha… metíamos um ferro com uma fissura numa parte e uma cunha na ponta…era para segurar o terreno…para estar mais fixe…então metíamos o "pampeso"…era o tal ferro de meia polegada…. para segurar a pedra do piso de baixo às de cima, …vê-se ainda ali fora …era isso que se chamava "furar contra Deus"…mas isso não deu resultado…a pedra de baixo partia e o ferro ficava lá sózinho e as pedras seguiam o seu caminho…ainda estragava mais…era por isso que se chamava furar contra Deus…sabe como se chamam os espaços entre as barragens das galerias? …"ouvidos"… No desmonte há também a construção das chaminés…a chaminé real e a chaminé gémea…a real é feita para o produto sair e a gémea é para o pessoal subir…também houve vários processos de construção…primeiro faziam-se com uns roletos de madeira…escadas e patamares …depois veio o método de gaiola ….morreram vários indivíduos nesses trabalhos…e dizer que ganhava menos um indivíduo que andava nesses riscos do que outro que estava seguro no escritório ou no gabinete…


Também a geologia foi profusamente reinventada em termos de socioleto, onde muitos dos termos surgem associados à vida do mundo rural, mas também, curiosa e longinquamente, outros sugerindo o mundo marinho. Desde o "rabo de enguia", onde o filão acaba de repente, lentícula que assinala a existência de filões lenticulares, suscitando a cobiça do mineiro em segui-lo, desde a impregnação siliciosa da rocha até ao "galo" nome que o pessoal mineiro chama ao "ligal" ( pequeno filão que liga duas lentículas seguidas) ; encontrando por vezes a seguir um "risqueiro" que o aproxima do filão principal, mais rico; umas vezes o filão "assenta" e é fácil explorá-lo porque segue horizontalmente; outras vezes o filão "mergulha" ou faz "ressalto" e torna-se difícil segui-lo; umas vezes o "galo cruzou" o filão, o filão aparece no "seixo bravo", xisto argiloso impregnado de quartzo, não mineralizado, duro e difícil de furar, ou no "ferrenho", (dolerite), também rocha dura e difícil de furar, por isso, dois grandes inimigos do mineiro ; outras vezes o filão "deu na falha" que pode ser "a falha gorda" que atravessa o couto mineiro e provoca grande irregularidade nos filões. Nos jazigos aluvionares e nas minas velhas, o filão rico para as populações, eram os trabalhos de apanha do minério, a alegria de encontrar "chinas" (pedras muito mineralizadas) naquelas "bossadinhas" (bouçadas) .

A generalizada tecnologização destes espaços rurais, a sua rurbanização - a entrada precoce, abrupta, e marcada pela efemeridade do mundo rural português, num processo de urbanização ad-hoc, suscitado pelas características próprias da exploração intensiva do volfrâmio, gerador de intensas e vastas mobilidades populacionais -, é outra característica desse mundo tecnologizado, indutor de elementos do socioleto que inventariamos e que é por sua vez, espaço de inscrição do ambiente sociotécnico em mudança que se vem também traçando.

3.O Mapa Ideológico : De objeto inominado a objeto literário - o volfrâmio.
3.1. Aspetos (modos) - inscrição dos mundos mineiros na ficção literária .

O volfrãmio é leit-motiv do corpus textual literário cuja produção acompanha um período que, ao longo da primeira metade do nosso século, vai do inicio à fase da sua mais intensa exploração, e de que se constitui o imaginário. Compõem-no : o romance de cordel Autobiografia do Borralha, do princípio do século, em que esse mineral ainda não tem nome próprio; o romance Volfrâmio, publicado em 1942, que sob um ponto de vista centrado nos meandros da exploração alemã, que aliás lhe dá o nome, dramatiza a sua exterioridade nacional; o romance Mineiros, de 1944, que contrapõe à engrenagem da mina um projeto de centro mineiro ideal; o romance As Minas de S.Francisco de 1946 que acompanha a metamorfose do velho mundo rural no novo e estranho mundo das minas; a novela autobiográfica Era Tempo de Apandar que do outro lado da fronteira, na narrativa do estraperlo (comércio ilegal fomentado pelas empresas) do volfrãmio, faz espelho com o contrabando do volfrâmio português; o conto galego O Marelo (Apocalypse Now), curto apontamento literário de antigas profecias bíblicas convocadas pelo mal e pela violência dos poderes.

Projetado nos tempos subsequentes dos empreendimentos hidroelétricos O Lodo e as Estrelas retido nas memórias de muitos dos protagonistas da saga do volfrâmio, articula em poemas a passagem do trabalho sofrido nas galerias das minas para o trabalho nos túneis das barragens.

Só pelo facto de assim se ter estruturado, o corpus ficcional apresentado permite traçar um quadro de leitura. Se na autobiografia em verso do Borralha, pastor e mineiro, temos a narrativa mítica da origem (do mineral inominado), vertida em molde de tragédia, Volfrâmio, Minas de S.Francisco e Mineiros desenham, nos modos e aspetos diversos da ação que se desenvolve em torno da exploração mineira do volfro=volfrâmio, seres humanos e não humanos que valem por si mesmos e excedem todo o vivido, em diferentes configurações de percetos - não perceções, porque independentes do estado daqueles que os experimentam - e afetos - que não são já sentimentos ou afeções, excedem a força daqueles que passam pelos afetos. A linha de fronteira com o lado exterior deste quadro sendo marcada, como se disse, por Era tempo de Apandar, autobiografia de um preso político obrigado a trabalhos forçados nas minas de volfrâmio da Galiza. Desbordando desta estrutura, como sua linha de fuga, a pequena coletânea de curtos textos poéticos O Lodo e as Estrelas, elegia aos trabalhadores dos túneis de minas e barragens.

Este corpus simbólico donde em larga medida está ausente o socioleto, colhe porém raízes num imaginário coletivo de uma história noturna em que a recorrência do cânone dualista - céu/inferno, deuses/demónios, bem/mal, razão/desrazão, perdição/salvação - se reatualiza, em dispêndios, desperdícios e excessos, na linha (ir)reversível dos acontecimentos e contextos, seta e ciclo do tempo. Conforme a esse imaginário, a visão infernal dos trabalhos subterrâneos, confirmada nas mortes numerosas de mineiros jovens que reatualiza o imaginário social dos quatro cavaleiros do apocalipse - fome, miséria, peste e guerra - dos monstros da Torre de Madorna que comem criancinhas, dos seres medonhos e peçonhentos da escuridão contra o que se contrasta o sonho claro de uma cidade de utopia, um falanstério de harmonia social. Imaginário que se desenvolve na longa continuidade de uma tradição de toda a casta de poderes e impérios, que se perde na memória dos tempos, grupos financeiros e grandes empresas mineiras que estrategicamente, têm quadriculado quase todos os recursos minerais do planeta.

4. A paisagem mental

A receção do vocábulo estranho e a tradução que dele as populações de Portugal e da Galiza fizeram, fazendo--o entrar num quotidiano que se modificou profundamente - movimento de atração da vida citadina, estabelecimento por conta própria, intensificação de meios de negócio, obras públicas, novos hábitos e comportamentos de consumo, revolvimento do mundo agrário tradicional e deslocação paulatina e abafada, mas irreversível do seu predomínio para o incremento de outras atividades, designadamente fabris, a generalização da entrada das mulheres no mercado de trabalho, a reemergência de vagas de emigração, etc. - e de cuja mudança a coisa nomeada foi o desencadeador, é-nos patente no quadro de um "conhecimento situado", no cruzamento de diferentes memórias sociais que (re)configuram práticas nómadas e sedentárias, saberes leigos e peritos.

Lembro de trabalhar na busca do volfrâmio na época da guerra numa companhia alemã num lugar chamado Pranheira …Carrazeda de Ansiães....Então fui para lá lavar daquela terra que saia dos tuneles onde saia o minério…andei muito tempo eu e muito pessoal a lavar aquela terra…onde ficava o volfrâmio no fundo daquelas caleiras de madeira …. Essa companhia saiu mais ou menos em 1946, 1947 mas depois ficaram uns portugueses lá com ela…ficaram uns 3 a 4 anos...mas já era uma exploração mais fraca …o volfrâmio trouxe bastante benefício porque acontece o seguinte…trabalhava lá muita gente daquelas aldeias todas por ali e de outras terras ...então muitos começaram a explorar aqueles terrenos por conta deles e a vender para compradores…mas aquilo era uma coisa provisória faz de conta que era como estes mieniros aí em Minas que andam atrás do ouro ...garimpeiros...assim era na altura lá em Portugal...

De idênticos materiais se compõe a narrativa seguinte onde, incorporando elementos correspondentes do socioleto, se traça, para a vizinha Galiza, na época da Fevre do wolfram, Tempos de Apandar, um meio físico e uma paisagem mental equivalentes ao anteriormente descrito e ocorrido nas regiões do Norte e Centro de Portugal.

"… as minas já fecharam há uns anos… trabalhei aqui quando tinha 18 anos… por esta finca abaixo e arriba…estava cheio de caleiras …havia aqui unas casetas onde tinhamos as cousas…trabalhava como labadero…a céu aberto …primeiro esteve a Companhia Férrea Mineria…depois lebou-a um chamado Mariano …depois de Mariano um cristano de S.Roque….e outro do Carballo…e dois que morreram…a general de riba lebaba-a Xinto…morreram todos… um tal Eglesias que bibe na Coruña…é o único que ficou … e mais o Soeiro do Carballo…esse era o dono de una casa de seguros mui importante em Carballo…e un de una casa grande na beira da carretera que bai a Malpica tambien estibera aqui com lavaderos e lavaderas ó volfrão…o de Monte Neme era muito melhor que de Verilongo… trabalhei aqui no volfrão cinco anos… os Varelas compravam-lhe fora da mina …si …si… eram os destaxistas… um fulano de cá…que era aloucado…era o pirata negro…chamavamos-lhe assim … marchou para Montevidéu… Habia aí caleras de madeira…tinha aqui um poço e lavavamos da parte de cima quando libraram o canal…eu de noite vinha por ele ali…os carros carrejavam o mineral de lá de riba…cobravam-nos pouco por cada carro…1000 kg de terra…15 a 20 pesetas … vou por aí mirando e se vejo uma chininha, se me gusta levo… foram os mais velhos que puseram o nome de china de mineral…há muitos que chamam aos adubos mineral…são os abonos dos prados…mas nós chamamos volfram…volfrão…volfram…mineral…aqui houve quem acendesse um cigarro com bilhete de 1000 pesetas…dizem…

Conclusão : "Testemunhos articulados"

A análise levada a cabo supôs o exercício de "uma constelação de modos de envolvimento e de intervenção". O trabalho de articulação entre discursos, narrativas, romances e o socioleto emergentes das memórias do volfrâmio, de que diatopicamente procurámos fazer a interpretação, testemunha a necessidade sentida no decurso da pesquisa efetuada de pôr em relação perspetivas próximas mas distintas de abordagem sociohistórica do processo de exploração do volfrâmio, curto mas intenso, o que nos foi facilitado pelo facto de se nos darem a ver em variantes distintas de uma mesma língua, segundo uns, o galaico-português, ou em línguas diferentes mas contíguas, o galego e o português, segundo outros.

Nas memórias da exploração de um mineral metálico recente - o volfrâmio - a emergência de elementos de um socioleto bem como as composições literárias são radículas de um rizoma inscrito no canto de uma página - a da riqueza (mineira) das nações, um dos segredos mais bem guardados das suas economias. Portugal e Galiza, geologicamente ligados pelos mesmos veios mineralizados, economias de enclave no quanto a riqueza própria não serviu ao seu autodesenvolvimento, foram-no também social e culturalmente neste processo histórico singular, do modo específico que procurámos ver.

Por: Maria Otília Pereira Lage, excerto de um artigo in http://victorian.fortunecity.com/statue/44/Nas Memórias do Volfrâmio



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Este artigo foi propositadamente apresentado sem mencionar as fontes, notas e bibliografias que a autora extensivamente nos apresenta. A quem por isso se interessar, aconselho a leitura do original no endereço referenciado.



Constantino Braz Figueiredo


1 comentário:

Anónimo disse...

O meu Avô foi um destes trabalhadores do volfrâmio nas minas em Vale das Gatas, foi sempre uma pessoa muito doente e ao menor esforco ficava sem poder respirar, os pulmões eventualmente nao suportaram os maus tratos causados pela vida dura nas minas. Morreu aos 53 anos de idade num Fevereiro mais gelado que lhe trouxe uma pneumonia. Lembro-me estar a varanda da casa dos meus avós em Cabeda a ver ambulancia minuscula a passar do outro lado da serra e ouvir os seus gritos enquanto o tranportavam para o hospital - não chegaram a tempo - o meu Avô faleceu.

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