segunda-feira, 25 de maio de 2009

PONTOS DE CONTOS


Ó vaca dá-me leite pa leite dar à “quejera” pa “quejera” dar queijo pa queijo dar ao gato po gato dar meu rabo “c’ando” aqui desenrabado; só te dou leite se me deres erva; ó lameiro dá-me erva para erva dar à vaca para a vaca dar leite para o leite dar à “quejera” para a “quejera” dar queijo… para queijo dar ao gato para o gato dar meu rabo que ando aqui desenrabado; só te dou erva se me deres chuva; ó nuvem dá chuva… – isto continuava por aí fora, quase sem fim, correndo ao sabor da imaginação de cada um as profissões, atividades, coisas e elementos da natureza, em que cada pessoa, animal, coisa ou elemento, a troco do que o ratinho lhe pedia, exigia sempre algo que lhes fosse mais útil ou conveniente. Ó moleiro dá-me farinha para farinha dar ao porco para o porco dar cerdas para cerdas dar ao sapateiro para o sapateiro dar sapatos para… para ao gato dar queijo po gato dar meu rabo que ando aqui desenrabado; só te dou farinha se me deres… E assim, ao mesmo tempo que se obrigava o até aí feliz rato a andar doido às voltas para reaver o rabito que o malandreco do gato com dentada certeira lhe tinha arrancado, também era mais um inocente conto para entreter as crianças nos longos serões de inverno, em todas as lareiras de uma aldeia com as precariedades inerentes à própria época em que se vivia.

Este conto tinha um ritmo e uma harmonia agradáveis ao ouvido, lengalenga que faz lembrar o rap dos nossos dias – Rhythm And Poetry (ritmo e poesia), introduzido nos EUA por jovens imigrados jamaicanos que, em festas dos seus guetos, nas grandes cidades, assim se manifestavam, contando a sua vida, os seus amores, aventuras, prazeres, sofrimentos, revoltas e misérias. Forçando a ironia, talvez este aflito ratito tenha ainda servido de inspiração a Ub Iwerks, criador do Mickey Mouse, que viria a ser o símbolo da The Walt Disney Company. Requeria ligeireza de fala, boa facúndia, para lhe aplicar cadência apressada, a trote ou a galope, pelo que não poderia ser contado por quem não tivesse esse atributo, a menos que quisesse correr o risco de entediar quem o ouvisse ou ficar a falar para o vazio. A propósito, um dia peçam ao Chico Moleiro ou Francisco Camba, um “jovem” meu vizinho desde o berço à juventude, meu amigo e meu coevo, para contar este e outros contos. Tenho a certeza que, se ele ainda estiver predisposto, ficarão deleitados ao ouvir o Xico no seu melhor.

Estava o moleiro
Dormindo à fresquinha
Veio o diabo
E levou-lhe a farinha
(*)

Era o senhor da patente
Nada roubou ao moleiro
Que devia estar contente
Por ver o moinho inteiro
(**)

Não o quisera privar
De angariar seu sustento
Apenas viera cobrar
Direitos de seu invento
(**)

Era de facto às lareiras (ainda sem o grande melhoramento que foi introduzido pela aquisição das famosas “chapas” com chaminé, produzidas pela oficina do ti A. Albano) que as famílias, quase todas numerosas, sentadas em volta das torgas e tocos em brasa, sob os sobranceiros enchidos de porco a fumar pendurados em pregos espetados nas ripas de madeira no teto da cozinha, meio suados meio queimados, apetitosos, de fazer crescer água na boca, mas que prioritariamente eram destinados aos mais velhos que trabalhavam nas minas, para as merendas que levavam numa bolsa a tiracolo e comiam durante o descanso no trabalho, e que consistiam, invariavelmente, num quarto ou meia broa, acompanhada com um pedaço de chouriça ou morcela ou um naco de presunto salgado e uma fatia de queijo, e, quem gostasse ou disso tivesse necessidade, ainda uma garrafa ou bota de cabedal com meio litro de vinho, afinal quase todos se já fossem homens e mineiros; uns contavam as estórias e anedotas que tinham ouvido e os contos que lhes contaram, sempre de grandes preceitos religiosos, morais ou éticos, que serviam ainda e também, aliás, sem que disso se apercebessem, para adestrar o discurso de quem os contava e para pedagógica aprendizagem de vocabulário, até aí desconhecido dos mais novos.

O saber e o sabor
São palavras diferentes
O saber está na cabeça
E o sabor ao pé dos dentes
(***)

Estranhamente, até eram contadas lendas que falavam de grandes conquistadores que existiram há mais de mil e duzentos anos, como Carlos Magno, e as façanhas e patranhas, conquistas e desaires contra o sultão Saladino, senhor de todos os califados dos Egitos, Arábias e Irãos, às portas de Jerusalém, do então rei da Inglaterra, um da tríade de reis que comandaram a 3ª Cruzada ao Oriente, Ricardo Coração de Leão, e de outros grandes “leões” que se terão locupletado tanto quanto puderam ou lhes fora permitido.

E os jovenzitos, ladinos, vivaços, convencidos que tinham a exclusividade de material de primeira, logo ao outro dia, aproveitavam para as partilhar com outros … que já as sabiam! Que tristeza; que deceção! … Contudo, embora sendo as mesmas, em cada historieta há sempre algo de novo que a torna mais rica e faz jus ao rifão quem conta um conto… acrescenta-lhe um ponto. E, além do mais, também contribuíam para construir e consolidar estereótipos coletivos que ditavam as modas, comportamentos e a própria cultura popular.

Por outro lado, na vida social, nos lugares de encontro, no barbeiro, no sapateiro, no adro à espera da missa ou depois desta, nos pequenos lusórios, na ocupação laboral, no clube, nas tascas ou simplesmente na rua, as conversas, além do Benfica e do Sporting, do futebol ou do ciclismo, das novas peças musicais, das pautas, claves, colcheias e semicolcheias, fusas e semifusas, mínimas e semínimas, versavam quantas vezes sobre estórias picantes, chistes e brejeirices, de comentários apreciativos das lindas raparigas conterrâneas (falo pelos homens que das mulheres sabem elas) e sobre alguém ou alguma coisa da própria terra, do próprio trabalho, ou, não raro, das terras vizinhas.

Das terras vizinhas…

Nunca soube o motivo que ditava esta postura (também não procurei sabê-lo, é verdade; era coisa antiga e comummente aceite com naturalidade), estranhava-o, contudo, porquanto nunca descortinei qualquer intercâmbio com “eles”, nem culturais, desportivos, económicos ou outros, mas os “nossos” bombos da festa eram os moradores de uma freguesia próxima, de concelho limítrofe. Havia em Portugal uma terra de fenómenos – o Entroncamento. Qualquer coisa estranha que acontecesse no país tinha acontecido no Entroncamento, logo um fenómeno! Em Cebola, ou para os de Cebola, qualquer coisa estranha que acontecesse nas redondezas tinha sido naquela aldeia ou ocasionada pelos seus habitantes.

Então, por exemplo, dizia-se que um dia, querendo construir uma ponte e não tendo engenheiros nem o sabendo fazer foram falar com o padre, mas este escusou-se dizendo que o seu mister era o além e não o aquém e que a sua ponte do aquém para o além era apenas espiritual, muito mais importante, aliás, que as ligações terrenas, e nisso era mestre, sugerindo, no entanto, para perguntarem ao sino que o sino era bom conselheiro. Tocaram o sino e o sino respondeu: olooonnngo, olooonnngo, olooonnngo… e assim foi feito… gastaram-se as economias, utilizaram-se os materiais dispondo-os ao longo, ao longo, ao longo… e nunca chegaram à outra margem!

De outra vez queriam avistar Cebola sem sair da sua terra. Mas como? Só construindo uma torre mais alta que as serras. E material? Tinham! Cortiços, que por lá havia muitas abelhas e muito mel… Começaram então a empoleirar as colmeias ou cortiços, e quando o homem lá de cima que os ia colocando (!) bradou: “falta um”… obteve cá de baixo a triste e desanimada resposta: “não há mais”… então o de cima, para provar que quem está no alto muito sabe, mais pensa e melhor manda, em luminosa centelha de génio, gritou: “tira-lhe o fundeiro, e dá-mo”.

Imagine-se!...

Não tinham fim estas estórias, todavia, elas eram sempre ditas como anedotas, não isentas de alguma ironia, é certo, mas sempre em tom jocoso, brincalhão; inócuas e totalmente desprovidas de ódios ou ofensas; só aparentemente, e forçando, poderiam ser tomadas como escárnio ou troça.

Contava-se que um homem dessa aldeia, talvez do tempo dos afonsinos ou afonsinhos, tendo uma pequena mula para carregar os seus artigos de terra em terra, indispensável à efetivação dos seus negócios, das sua trocas, com carvão, azeite, mel e afins, quando um dia passava por Ceiroco mais o animal, que nesse dia trazia uma boa carga, resolveu consultar uma cigana que ali, ocasionalmente, vendia a sua arte. A cigana, ao ler-lhe a sina, falou de tudo o que ele mais queria ouvir – felicidade, prosperidade, saúde, amor… e cinco filhos –, mas às tantas, querendo apimentar um pouco tamanha sorte, como castigo por ele ter regateado o preço do seu serviço, acrescentou que morreria velho… quando a sua mula largasse três peidos num só dia. “Oh diacho!... Três num dia?!” … Podia ser que tivesse sorte… a mula quanto a isso até costumava portar-se bem… se fosse um macho já não apostava, os machos costumam ser mais… mais alarves… e depois a cigana foi bem clara ao dizer que isso só aconteceria quando fosse já velho… E, pensativo, mas confiante, lá saiu de Ceiroco serra acima mais o animal e a sua carga.

Para se atingir a vereda a norte das meãs, que fica a meia encosta do picoto que conduz à portela de Cebola, a subida não é muito alta mas bastante íngreme, muito empinada, e a mula lá vinha, sem pressas nem pressões, nem muitas comidas para não se encher de gases. De quando em vez resfolegava, mas enquanto fosse só pela frente tudo ia bem…dava para enxotar as moscas! Até que chegou a um ponto, teimosa (nascera de um cruzamento de jumento com égua), em que se recusou a andar sem a respetiva forragem. Comeu um pouco, mesmo sem ser alijada da carga, e prosseguiu mais confortada…De repente, sem que o dono esperasse…lá vai disto…! O primeiro… “Bom – disse para si o homem – também estamos quase a meio, é melhor descansar um pouco”. Pararam então durante alguns momentos à sombra de um pinheiro, ficando a mula de pé com a carga em cima do lombo, sem que lhe fosse oferecida uma cadeira, um banco, sequer uma pedra para se sentar. Não estranhou; já estava avezada a estas simpáticas deferências…

Retomaram a subida.

Logo após o recomeço, a mula, já cansada, farta do peso, do calor, e da subida, disparou o segundo, ainda mais forte que o primeiro. Deve ter-se ouvido em Ceiroco e ecoado por todas as terras do vale do Ceira… Se a barragem de Santa Luzia já existisse, teria causado um tsunami pelo menos de meia polegada! Aí o almocreve achou que a coisa não estava para brincadeiras e arrependeu-se de ter dado ouvidos à cigana, e jurou que jamais se meteria com tal gente; e disse para os seus botões, ou para a brisa que passava ou para a sua besta de carga, que nem que se peidasse mais cem vezes ele teria medo do que diz alguém que ganha a vida só a assustar os papalvos. Ele não era desses!... Nunca! E tocou a mula. Vamos depressa sua pileca dum raio…sua ciganita feia e enjeitada! A mula não deve ter gostado do discurso e ficou com cara de quem não deve nada a ninguém… feia, heim? Ela que, quando estava bem disposta, sem o sacana do trabalho de escrava a que era submetida sem piedade, ela que, quando arranjada e escovada a preceito, quando considerada e acarinhada, era capaz de contentar três jumentos e dois cavalos!... E ainda deixava sete machos, babados, em lista de espera!... Feia e enjeitada ela? … Ela, filha daquela linda égua e de um garboso jumento arraçado de garanhão?... Ela? … Não mede as palavras! … Já ia ver! …

Entretanto o dono, apesar da fanfarronice de há pouco, não parecia muito tranquilo, e passou para trás da mula como que para vigiar e controlar as saídas … Olhando as contrações do orifício, umas vezes lentas outras mais apressadas, não gostou nada do que via. Começou então a ficar desconfiado e preocupado… a sério; suava das mãos, da cara; sentia comichão nas costas que depressa passaram ao pescoço, a todo o corpo; um mal-estar generalizado causado pela ansiedade, o nervosismo… o pânico. Quis acalmar-se pensando que tudo iria correr bem, que faltava pouco para atingir o cume do monte, depois era quase plano até à portela e da portela era a descer… um pulo… Será que ela aguenta? Será que não? Será? … Até as moscas já tinham debandado do ânus do animal… Pelo sim pelo não era preciso tomar uma atitude preventiva… Impunha-se medida adequada. Para grandes males, grandes remédios, sempre ouvira dizer, Os grandes homens são os que, imbuídos de destemor e coragem, conseguem ultrapassar as maiores vicissitudes! … E foi possuído de inabalável volição, qual general de campanha, qual estratego napoleónico em Waterloo, que, vendo a derrota quase a consumar-se, decidido, estroncou uma pernada de pinheiro, mandou avançar o canivete que na véspera tinha afiado e rapidamente fez um taco que enfiou no buraco traseiro do animal para servir de tampão.

A mula ficou ainda mais incomodada, não só pelo que lhe doía mas também porque aquilo lhe fazia falta para ir libertando os gases. Nem só os pulmões precisam de respirar, as tripas também…à sua maneira, claro! E, naturalmente, a jumentóide, forçando os músculos anais, ia empurrando a rolha para fora. Sempre atento, o homem empurrava por sua vez para dentro. Para fora… para dentro… Para fora… para dentro… Já não se distraía nem prestava atenção a outra coisa. Ia aflito e, mais de perto, olhava, calculando ao milímetro a saída do taco. “Aguenta, tem coragem mula linda…és a melhor mulinha do mundo… quando voltarmos dou-te comida fresca e levo-te ao jumento do compadre… – sabia como ela adorava o burro do compadre… – vá, mais cinquenta metros e atingimos o cimo”. Mas qual linda, qual mulinha, qual comida fresca… e depois o seu namorado que esperasse que ela agora estava aflita e tinha de resolver sem demora um problema de capital importância!

A situação tornara-se insustentável… não podia mais! A sua barriga, também ela já abandonada pelas moscas, começou a inchar como um balão… tinha chegado a hora… só havia uma escolha: ou o bandulho ou a rolha; ou ela ou o dono… e, de súbito, travando e fincando bem as quatro patas no chão, obedecendo aos imperativos da natureza, procedeu como o seu instinto de sobrevivência ordenou, e os gases atrasados, forçadamente acumulados, congestionados, aquecidos e comprimidos, explodiram como uma bomba anatómica (não atómica que nesse tempo ainda não havia), e o sopro, saindo violentamente em turbilhão, tudo à frente levou incluindo o taco que, disparado com velocidade meteórica, um míssil desse tempo, à queima-roupa, apanhou o homem na cabeça, fulminando-o instantânea e irremediavelmente! …

O meu burro sabe tudo
Um pouco mais do que eu
Pensará o orelhudo
Que sou dele, não ele meu?


(*) Origem popular – da n/aldeia?
(**) Deduzidas de uma lenda contada no magnífico trabalho de CBP, versando os moinhos da nossa terra.
(***) Tinha nove anos quando escrevi esta quadra, ainda intacta – a primeira, de poucas.



Constantino Braz Figueiredo

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