domingo, 24 de maio de 2009

O SEIXO E O SITE

Quantos anos terão decorrido desde que o primeiro homem ou a primeira família resolveu fixar-se neste vale? Imaginemos o que foi vir alguém, através das lombas limítrofes ou pelo curso das águas do Zêzere até Porcim, olhar lá em cima as soturnas, misteriosas e medonhas serras, com altos matagais até aos seus incríveis pináculos, certamente terras de lobos e lobisomens, e aventurar-se, primeiro até às Eiras das Casas, com cuidadoso e bem estudado cálculo, passo a passo, às apalpadelas, não fosse aparecer por ali algum lobo esfomeado ou o último abencerragem dos infiéis maometanos, porventura à procura da sua moura encantada, ou a recuperar o ouro que ficara escondido debaixo daquele enorme calhau milenar, e que fora obrigado a deixar para trás aquando da forçada debandada pelo ataque dos cruzados que não deixavam pedra sobre pedra; depois, mais afoitos, à medida que outros iam chegando, à ocupação de locais mais abrigados – os planos e amenos intervalos dos ribeiros que desciam das vertentes montanhosas, e que hoje, sabemos, se trata da Moreira, Terreiro, Cruz da Rua, Rodeio e, consequentemente, por necessidade de espaço vital, atrevendo-se, corajosamente, a estender as suas moradas pelas encostas, mais um pouco até à Eira, Costa e Cabecinhos, Outeiro e Pombal.



Haverá quem defenda que os precursores desta aventura seriam famílias que, dos lugares mais populosos, fugiam à Peste Negra, que nos meados do Século XIV dizimou mais de metade da população quer em Portugal quer na Europa, e sobretudo para se livrarem da voracidade e cupidez dos lobos urbanos mais insaciáveis que os da montanha, pelos impiedosos e incomportáveis tributos que lhes fixavam e que eram obrigados a pagar, quer as dízimas aos bispos, aos mosteiros e ao clero rural, quer as rendas e foros aos senhores feudais. Primeiro terão demandado as terras chãs mais fecundas junto dos rios e ribeiras e de preparação menos custosa para as sementeiras, mas, já não encontrando aí espaço disponível porque outros se lhes terão antecipado, vinham à procura de lugares onde, com trabalho insano, pudessem cuidar das suas famílias através da caça, da pesca e da agricultura, além de, por alguns anos, ficarem a coberto das cobranças compulsivas.

Mas quando? Quando terá isso acontecido? Possivelmente, e é o que agora me parece mais credível, bastantes anos antes da chegada dos camponeses, como me dizia alguém quando ainda era pequeno, fora um pastor de Casegas, ou do recesso, seu anexo, Sobral de Casegas, que por aqui tendo encontrado boa água e bons lameiros, logo bons pastos para os rebanhos, em vez de ir dormir à sua terra, dormia perto do gado para melhor o defender dos predadores. Teria este pastor a alcunha de Cebola? Nada tem a ver, é certo, mas ainda conheci pessoas do Sobral de Casegas com este apelido a trabalhar comigo nas Minas…

Outros, fossem ou não de Casegas ou do Sobral, com a forçada partida final dos mouros que por cá ainda se mantinham depois da reconquista, começariam a chegar pelos meados de mil e trezentos mas em ritmos e cronologias diferentes. Do Cebola já não havia notícia. Morrera e transformara-se num seixo, o seixo da quebrada, onde antes descansava e tomava as suas refeições enquanto cabras e ovelhas pastavam nos lameiros da selada, bem protegidas por dois grandes cães “Estrela”. Nada me custa admitir que entre os que iam chegando estavam os Almeida, os Alves, os Batista, os Barata, os Bento, os Branco, os Bravo, os Braz, os Camba, os Campos, os Covita, os Faustino, os Ferreira, os Genro, os Gonçalves, os Mendes, os Monteiro, os Pacheco, os Pereira, os Pires, os Ramos, os Saraiva, os Silva, e… nem tantos ou quantos mais? Todavia, não vinham com estes apelidos – de modo nenhum! –, embora, reitero, foram realmente estes os antepassados dos que hoje com legitimo entono se ufanam dos feitos dos seus dignos e respeitáveis ancestrais, cujo sangue lhes corre nas veias… E todos vieram de outras terras, de outros mundos; nenhum era autóctone porque nem as rochas nem as moitas pariram pessoas, embora fossem fêmeas!...

Explica-se isto porque, nesse tempo, as famílias não tinham apelido; os reis, assim como a fidalguia, as pessoas de alto coturno da Idade Média, até mesmo já na Idade Moderna, não podiam arrogar-se a esse luxo, recorrendo ao cognome da família ou apondo ao nome próprio um apelido derivado dos progenitores com acrescentamento do sufixo es que significa "filho de..". Se o pai era Henrique e o filho Afonso, ficava Afonso Henriques; se o pai fosse Gonçalo e o filho Manuel, ficava Manuel Gonçalves; se o pai fosse Marco e o filho Fernando, seria Fernando Marques; do mesmo modo Ramiro Esteves porque era filho de Estêvão; um filho de D. Rodrigo teria como apelido Rodrigues; Simões filho de Simão, Fernandes de Fernando, Nunes de Nuno… mas só gente de linhagem, porque aos outros, camponeses e servos do feudo, quando muito, era-lhes concedido o apelido do senhor das terras, ostentando, ele próprio, como suserano, o nome dessas terras.

Mais recentemente, já na Idade Contemporânea, com o crescimento demográfico nas localidades, e para evitar que as pessoas fossem tratadas por alcunhas como Zé do Canto, Augusto da Tapada ou Tonho da Ti Celeste, João da Nova ou Xico da Velha, foi necessário recorrer a apelidos que primeiro ficavam ao critério das pessoas que os batizavam, muitas vezes com a alcunha por que era conhecido o pai ou o padrinho, ou toponímicos e nomes de plantas, árvores, santos, animais, profissões, esgares, tiques, feitos, jeitos, defeitos… e, mais tarde, já com esses apelidos consolidados pelos pais, é que passaram então a fazer parte do nome de família – Manuel, se fosse gago, seria Manuel Gago, e um filho seu, de nome Joaquim, grande virtuoso na dicção, expedito e eloquente, quisesse ou não, seria registado como Joaquim Gago; em Portugal só em 1911, na aurora da I República, se tornou obrigatório o registo com os sobrenomes.

Com isto apenas quero dizer que se torna difícil ir muito longe no tempo, mesmo através das famílias mais enraizadas, à procura de árvores genealógicas que de algum modo nos dessem uma pista que nos levasse até próximo dos primeiros a chegar e, assim, poder escrever-se a história da nossa querida terra. Será um desafio para os mais novos? Uma boa tese para antropólogo ou etnólogo perdido em velhos alfarrabistas e calhamaços à cata de tema para doutoramento? Se alguém estiver convicto de que pertence a uma das famílias mais tradicionalistas, com base mais remota do que comummente se conhece, era bom que partilhasse esse conhecimento com o povo, pois todos estamos ávidos por saber o mais possível.

O que ficou dito não é nem quer ser uma asserção irrefutável, sequer uma meia verdade, tão-pouco um tratado histórico; todos podem ter a sua e eu tenho a minha… pelo menos aquela que, enquanto lá vivi, me foi povoando o espírito e alimentando o imaginário produzido e sustentado pela observação; o que ficou dito não é senão o que me parece mais provável. No entanto, desde pequeno, esta cabeça pensava,  queria saber… e já na quarta classe, ao estudar D. João I, parecia-me que uma família do Rodeio também produziu e criava e educava igual Ínclita Geração; pouco mais tarde veria que isso não passava de um lastimável e ridículo equívoco… por mais voltas que desse não batia a bota com a perdigota! 

Do mesmo modo, já mais velho, continuando com a minha fantasia,  agora com outro alcance, ao analisar as famílias da terra, os meus amigos, o comportamento de todos os habitantes, parecia-me que quem chegou primeiro depois do Cebola foram os Pereira, os Mendes e os Gonçalves que tinham andado nas cruzadas contra os mouros (quem sabe se não eram os que regressavam vitoriosos da recente Batalha do Salado? …), e traziam com eles os Branco e os Bravo, companheiros intrépidos dessa luta tenaz para de vez escorraçar os sarracenos infiéis, mais os elucidados e criativos Bento, e ainda os Alves, bons trabalhadores e propensos para as artes e para a diversão. Aqui se fixaram, mas logo viram que era demasiado trabalho para tão pouca gente. Careciam de mais braços para desbravar os campos acidentados, muito difíceis de arrotear. Chamaram então os Ferreira, os Covita, os Faustino, os Monteiro e os Campos; mais tarde chegaram os Pires e os Ramos; ainda demoraram, os Batista, os Saraiva, os Silva e todos os outros que se lhes quiseram juntar. Todos eram bem-vindos e bem recebidos desde que tivessem por lema o trabalho…era uma inserção fácil mesmo sem subsídio…! Bendito lema…ainda hoje era capaz de resultar!...

Alimentando ainda a utópica fantasia reportada à adolescência, via os Pereira a dirigir os trabalhos da lavoura para sustento da comunidade, bem coadjuvados pelos Gonçalves, os Branco e os Bravo que tratavam da organização, da logística e da arquitetura; os Mendes, não fossem eles da família do Lidador do tempo do Condado Portucalense, na organização da defesa dos ataques dos lobos aos rebanhos e desencorajando qualquer veleidade de salteadores. 

Sendo, a princípio, três, um foi colocado perto do picoto, creio que a arrancar torgas e a fazer carvão, dominando todas as entradas pelo lado poente e norte, outro, no alto do cabeço carvalheiro, a dominar as entradas do sul e nascente. As quadrilhas, os salteadores, não entravam porque a fama dos Mendes era conhecida e ninguém se atreveria a saquear a aldeia. Restavam as alcateias que nesse tempo eram muitas e faziam grandes razias no gado de pastoreio se não houvesse cuidado com elas. Mas também aqui, os pobres lobos, não tinham qualquer sorte. No entanto, teimosos, vendo que não conseguiam passar pelas serras tentaram o vale, e então, dizia-se, que entre os Torgais e as Eiras das Casas, o terceiro Mendes, a quem cabia defender aquela entrada, enfrentou sozinho uma alcateia de aguerridos e ferozes lobos dispostos a tudo para se locupletarem com o património do alheio, e ao primeiro que o atacou meteu-lhe a mão na boca, arrancou-lhe a língua e atirou-o pelos ares à alcateia esfaimada. Não sei se ainda existe, mas ao tempo havia nesse sítio um nicho com um quadro já velho e desbotado mas que dava para perceber idêntica cena!... Conheci ainda o velho António Mendes que era meu vizinho, do qual se dizia ter uma força hercúlea, quase sobre-humana. Os seus filhos gozavam também dessa aura, embora já noutra escala. 

Lembro-me que um deles, uma vez, numa tasca, ao Terreiro, estando com um pirolito na mão esquerda e a ser chateado por alguém já com uns copitos, para descarregar a sua ira e evitar bater no melga, porque um Mendes consciente da força que possuía não batia nos fracos, apertou o pirolito com essa mão… e instantaneamente a garrafa transformou-se em fanicos! Mais novo, o Alfredo Mendes, o nosso guarda-redes “Mira”, uma vez, na lavaria da Panasqueira, num dia de reparação, vi-o levantar duas galgas de cem quilos cada (que exagero!), uma em cada braço, parecendo duas broas debaixo dos sovacos! Estes episódios e façanhas nunca mais teriam fim. Hoje, não me admirava nada se me dissessem que os lendários Mendes eram os últimos lusitanos descendentes de Viriato dos Montes Hermínios…! Mendes, Mendes… sempre generosos, abnegados e altruístas. Coração tão grande como a vossa força… como a serra de Cebola; coração onde cabia toda a gente do Mundo… nunca poderíeis enriquecer porque já possuíeis uma incomensurável riqueza interior, essa sim indestrutível!

Não queria tornar-me mais enfadonho com estas coisas, porque o meu imaginário não ficava por aqui… nem de perto… contudo, dado que a família Batista era, no meu tempo, a mais dominante e determinante, quer pelo número quer pela influência no seio do povo, bem merece que se fale dela com algum respeito e admiração, a despeito de não haver conhecimento de equivalente similitude a nível nacional. 

A minha criativa utopia  dizia-me terem sido eles os maiores contribuidores para a Fundação da Nacionalidade, ainda nos tempos de D. Teresa; que tinham sido grandes na luta contra os mouros na expansão e consolidação do País; dos mais eficazes nas lutas da independência e da restauração; que tinham capitaneado, mar alto, os navios dos descobrimentos, e, depois, já na implantação da República também tinham dado o seu inestimável contributo; que tinham sido, ainda, os maiores nas letras, nas artes e na política, em suma, que foram, que eram, os senhores de Portugal!... Afinal, tempos depois, pude constatar que os Batistas mais conhecidos, desde a Fundação de Portugal, foram (com dos de Cebola, claro) o grande escritor Alçada Batista, o toureiro José Mestre Batista e o inefável Batista-Bastos, além do fascista e ditador cubano, Fulgêncio Batista, coqueluche americana, que Fidel e Che enviaram de presente a Salazar! Mas ponhamos os pés na terra, na nossa Terra, e falemos do que nos é próximo e muito caro – os Batista – e estes eram, nesse tempo, sem favor algum, a nata do nosso Povo… Como terão chegado os Batista? 

Estava convencido, e era coisa que não deveria andar muito longe da verdade, que vieram mais tarde e que eram gente culta, habituada a dirigir, a organizar e a ensinar; dos serviços administrativos, porventura filhos de professores, juízes, tabeliães e escrivães, registadores, cobradores de impostos, clero e comerciantes. Dignos, e de trato educado e afável, cedo se fixaram e fundiram com os Alves, os Monteiro, os Pereira e outras famílias de mais teres e haveres, de tal sorte que, a breve trecho, naturalmente, prevaleciam em quase todos os domínios.

Entretanto, o Cebola, que na minha ingénua crença continuava vivo e que, como disse, se transformara no Seixo da Quebrada, logo por cima dos Cabecinhos, com a nova estrada a passar-lhe agora aos pés (?), em lugar dominador, de privilégio, já alvo pela erosão e pela idade, hoje tapado por moitas, carrascos e pinheiros, como se lhe tivesse crescido a barba e o cabelo, atento, tudo via, e acreditava, com orgulho, porque todos propugnavam para que nada faltasse, que o seu Povo tinha pernas para andar… e andava…até que um dia, na serra de sudeste, abriu-se a boca de uma serpente mais perigosa e mais venenosa que aqueloutra que terá seduzido Eva; com milheiros de bem tecidos tentáculos aferentes, dissimulados até aos ínfimos escaninhos do seu antro, insidiosa, sorridente, chocalhando não a maçã mas o vil metal, depressa cativou os mais necessitados e a cobiça dos ambiciosos. De um fôlego quase todos levou e a todos levava se a tempo não houvesse um brado coletivo, um grande abanão nas consciências e apelos de outros afazeres, de outras vidas… Aí, o Seixo, o Cebola, sorriu! O seu povo estava salvo! 

O mesmo povo que pouco tempo antes quase o fizera sufocar de tristeza quando, conjurados, apareceram por lá uns pseudo-iluminados, de fraca personalidade, que por vergonha e por lhes faltar caráter, por serem incapazes de sustentar que alguém lá fora onde estudavam ou trabalhavam se risse por serem de uma nobre terra chamada Cebola, tinham tratado e conseguido eliminar o seu nome, esquecendo-se que são as pessoas ou as terras que fazem o nome e não o nome que faz as pessoas ou as terras (eu estava ausente por imposição a milhares de quilómetros de distância, mas mesmo que estivesse nada alteraria…). 

Acharam que era melhor um nome importado das terras de sua majestade britânica, o patrono da Ordem da Jarreteira, trazido pelo Duque de Lencastre, que teve ainda o desplante de o impor, substituindo o nosso S Tiago, padroeiro de Portugal, por este intruso. Assim, em vez da vitamina C, a riqueza da cebola, ficamos com a vitamina J, de Jarreteira… ou da vitamina L, seu símbolo – uma Liga de jarretas.

Recentemente, o Cebola, como recompensa, foi, também ele, surpreendido pela magia das novas tecnologias, um vento de renovação que, sem complexos e sem pejo ou assombro, com vitamina C e não J, com determinação, alguém, com olhos de ver, graciosamente pôs ao serviço e utilidade do seu povo; e agora, já de novo com o talo ereto e florido, ri e rejubila por ter sido rebatizado de Cebola, o Seixo, perdão, Cebola, o SITE.

Constantino Braz Figueiredo







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