domingo, 24 de maio de 2009

O SEIXO E O SITE

Quantos anos terão decorrido desde que o primeiro homem ou a primeira família resolveu fixar-se neste vale? Imaginemos o que foi vir alguém, através das lombas limítrofes ou pelo curso das águas do Zêzere até Porcim, olhar lá em cima as soturnas, misteriosas e medonhas serras, com altos matagais até aos seus incríveis pináculos, certamente terras de lobos e lobisomens, e aventurar-se, primeiro até às Eiras das Casas, com cuidadoso e bem estudado cálculo, passo a passo, às apalpadelas, não fosse aparecer por ali algum lobo esfomeado ou o último abencerragem dos infiéis maometanos, porventura à procura da sua moura encantada, ou a recuperar o ouro que ficara escondido debaixo daquele enorme calhau milenar, e que fora obrigado a deixar para trás aquando da forçada debandada pelo ataque dos cruzados que não deixavam pedra sobre pedra; depois, mais afoitos, à medida que outros iam chegando, à ocupação de locais mais abrigados – os planos e amenos intervalos dos ribeiros que desciam das vertentes montanhosas, e que hoje, sabemos, se trata da Moreira, Terreiro, Cruz da Rua, Rodeio e, consequentemente, por necessidade de espaço vital, atrevendo-se, corajosamente, a estender as suas moradas pelas encostas, mais um pouco até à Eira, Costa e Cabecinhos, Outeiro e Pombal.



Haverá quem defenda que os precursores desta aventura seriam famílias que, dos lugares mais populosos, fugiam à Peste Negra, que nos meados do Século XIV dizimou mais de metade da população quer em Portugal quer na Europa, e sobretudo para se livrarem da voracidade e cupidez dos lobos urbanos mais insaciáveis que os da montanha, pelos impiedosos e incomportáveis tributos que lhes fixavam e que eram obrigados a pagar, quer as dízimas aos bispos, aos mosteiros e ao clero rural, quer as rendas e foros aos senhores feudais. Primeiro terão demandado as terras chãs mais fecundas junto dos rios e ribeiras e de preparação menos custosa para as sementeiras, mas, já não encontrando aí espaço disponível porque outros se lhes terão antecipado, vinham à procura de lugares onde, com trabalho insano, pudessem cuidar das suas famílias através da caça, da pesca e da agricultura, além de, por alguns anos, ficarem a coberto das cobranças compulsivas.

Mas quando? Quando terá isso acontecido? Possivelmente, e é o que agora me parece mais credível, bastantes anos antes da chegada dos camponeses, como me dizia alguém quando ainda era pequeno, fora um pastor de Casegas, ou do recesso, seu anexo, Sobral de Casegas, que por aqui tendo encontrado boa água e bons lameiros, logo bons pastos para os rebanhos, em vez de ir dormir à sua terra, dormia perto do gado para melhor o defender dos predadores. Teria este pastor a alcunha de Cebola? Nada tem a ver, é certo, mas ainda conheci pessoas do Sobral de Casegas com este apelido a trabalhar comigo nas Minas…

Outros, fossem ou não de Casegas ou do Sobral, com a forçada partida final dos mouros que por cá ainda se mantinham depois da reconquista, começariam a chegar pelos meados de mil e trezentos mas em ritmos e cronologias diferentes. Do Cebola já não havia notícia. Morrera e transformara-se num seixo, o seixo da quebrada, onde antes descansava e tomava as suas refeições enquanto cabras e ovelhas pastavam nos lameiros da selada, bem protegidas por dois grandes cães “Estrela”. Nada me custa admitir que entre os que iam chegando estavam os Almeida, os Alves, os Batista, os Barata, os Bento, os Branco, os Bravo, os Braz, os Camba, os Campos, os Covita, os Faustino, os Ferreira, os Genro, os Gonçalves, os Mendes, os Monteiro, os Pacheco, os Pereira, os Pires, os Ramos, os Saraiva, os Silva, e… nem tantos ou quantos mais? Todavia, não vinham com estes apelidos – de modo nenhum! –, embora, reitero, foram realmente estes os antepassados dos que hoje com legitimo entono se ufanam dos feitos dos seus dignos e respeitáveis ancestrais, cujo sangue lhes corre nas veias… E todos vieram de outras terras, de outros mundos; nenhum era autóctone porque nem as rochas nem as moitas pariram pessoas, embora fossem fêmeas!...

Explica-se isto porque, nesse tempo, as famílias não tinham apelido; os reis, assim como a fidalguia, as pessoas de alto coturno da Idade Média, até mesmo já na Idade Moderna, não podiam arrogar-se a esse luxo, recorrendo ao cognome da família ou apondo ao nome próprio um apelido derivado dos progenitores com acrescentamento do sufixo es que significa "filho de..". Se o pai era Henrique e o filho Afonso, ficava Afonso Henriques; se o pai fosse Gonçalo e o filho Manuel, ficava Manuel Gonçalves; se o pai fosse Marco e o filho Fernando, seria Fernando Marques; do mesmo modo Ramiro Esteves porque era filho de Estêvão; um filho de D. Rodrigo teria como apelido Rodrigues; Simões filho de Simão, Fernandes de Fernando, Nunes de Nuno… mas só gente de linhagem, porque aos outros, camponeses e servos do feudo, quando muito, era-lhes concedido o apelido do senhor das terras, ostentando, ele próprio, como suserano, o nome dessas terras.

Mais recentemente, já na Idade Contemporânea, com o crescimento demográfico nas localidades, e para evitar que as pessoas fossem tratadas por alcunhas como Zé do Canto, Augusto da Tapada ou Tonho da Ti Celeste, João da Nova ou Xico da Velha, foi necessário recorrer a apelidos que primeiro ficavam ao critério das pessoas que os batizavam, muitas vezes com a alcunha por que era conhecido o pai ou o padrinho, ou toponímicos e nomes de plantas, árvores, santos, animais, profissões, esgares, tiques, feitos, jeitos, defeitos… e, mais tarde, já com esses apelidos consolidados pelos pais, é que passaram então a fazer parte do nome de família – Manuel, se fosse gago, seria Manuel Gago, e um filho seu, de nome Joaquim, grande virtuoso na dicção, expedito e eloquente, quisesse ou não, seria registado como Joaquim Gago; em Portugal só em 1911, na aurora da I República, se tornou obrigatório o registo com os sobrenomes.

Com isto apenas quero dizer que se torna difícil ir muito longe no tempo, mesmo através das famílias mais enraizadas, à procura de árvores genealógicas que de algum modo nos dessem uma pista que nos levasse até próximo dos primeiros a chegar e, assim, poder escrever-se a história da nossa querida terra. Será um desafio para os mais novos? Uma boa tese para antropólogo ou etnólogo perdido em velhos alfarrabistas e calhamaços à cata de tema para doutoramento? Se alguém estiver convicto de que pertence a uma das famílias mais tradicionalistas, com base mais remota do que comummente se conhece, era bom que partilhasse esse conhecimento com o povo, pois todos estamos ávidos por saber o mais possível.

O que ficou dito não é nem quer ser uma asserção irrefutável, sequer uma meia verdade, tão-pouco um tratado histórico; todos podem ter a sua e eu tenho a minha… pelo menos aquela que, enquanto lá vivi, me foi povoando o espírito e alimentando o imaginário produzido e sustentado pela observação; o que ficou dito não é senão o que me parece mais provável. No entanto, desde pequeno, esta cabeça pensava,  queria saber… e já na quarta classe, ao estudar D. João I, parecia-me que uma família do Rodeio também produziu e criava e educava igual Ínclita Geração; pouco mais tarde veria que isso não passava de um lastimável e ridículo equívoco… por mais voltas que desse não batia a bota com a perdigota! 

Do mesmo modo, já mais velho, continuando com a minha fantasia,  agora com outro alcance, ao analisar as famílias da terra, os meus amigos, o comportamento de todos os habitantes, parecia-me que quem chegou primeiro depois do Cebola foram os Pereira, os Mendes e os Gonçalves que tinham andado nas cruzadas contra os mouros (quem sabe se não eram os que regressavam vitoriosos da recente Batalha do Salado? …), e traziam com eles os Branco e os Bravo, companheiros intrépidos dessa luta tenaz para de vez escorraçar os sarracenos infiéis, mais os elucidados e criativos Bento, e ainda os Alves, bons trabalhadores e propensos para as artes e para a diversão. Aqui se fixaram, mas logo viram que era demasiado trabalho para tão pouca gente. Careciam de mais braços para desbravar os campos acidentados, muito difíceis de arrotear. Chamaram então os Ferreira, os Covita, os Faustino, os Monteiro e os Campos; mais tarde chegaram os Pires e os Ramos; ainda demoraram, os Batista, os Saraiva, os Silva e todos os outros que se lhes quiseram juntar. Todos eram bem-vindos e bem recebidos desde que tivessem por lema o trabalho…era uma inserção fácil mesmo sem subsídio…! Bendito lema…ainda hoje era capaz de resultar!...

Alimentando ainda a utópica fantasia reportada à adolescência, via os Pereira a dirigir os trabalhos da lavoura para sustento da comunidade, bem coadjuvados pelos Gonçalves, os Branco e os Bravo que tratavam da organização, da logística e da arquitetura; os Mendes, não fossem eles da família do Lidador do tempo do Condado Portucalense, na organização da defesa dos ataques dos lobos aos rebanhos e desencorajando qualquer veleidade de salteadores. 

Sendo, a princípio, três, um foi colocado perto do picoto, creio que a arrancar torgas e a fazer carvão, dominando todas as entradas pelo lado poente e norte, outro, no alto do cabeço carvalheiro, a dominar as entradas do sul e nascente. As quadrilhas, os salteadores, não entravam porque a fama dos Mendes era conhecida e ninguém se atreveria a saquear a aldeia. Restavam as alcateias que nesse tempo eram muitas e faziam grandes razias no gado de pastoreio se não houvesse cuidado com elas. Mas também aqui, os pobres lobos, não tinham qualquer sorte. No entanto, teimosos, vendo que não conseguiam passar pelas serras tentaram o vale, e então, dizia-se, que entre os Torgais e as Eiras das Casas, o terceiro Mendes, a quem cabia defender aquela entrada, enfrentou sozinho uma alcateia de aguerridos e ferozes lobos dispostos a tudo para se locupletarem com o património do alheio, e ao primeiro que o atacou meteu-lhe a mão na boca, arrancou-lhe a língua e atirou-o pelos ares à alcateia esfaimada. Não sei se ainda existe, mas ao tempo havia nesse sítio um nicho com um quadro já velho e desbotado mas que dava para perceber idêntica cena!... Conheci ainda o velho António Mendes que era meu vizinho, do qual se dizia ter uma força hercúlea, quase sobre-humana. Os seus filhos gozavam também dessa aura, embora já noutra escala. 

Lembro-me que um deles, uma vez, numa tasca, ao Terreiro, estando com um pirolito na mão esquerda e a ser chateado por alguém já com uns copitos, para descarregar a sua ira e evitar bater no melga, porque um Mendes consciente da força que possuía não batia nos fracos, apertou o pirolito com essa mão… e instantaneamente a garrafa transformou-se em fanicos! Mais novo, o Alfredo Mendes, o nosso guarda-redes “Mira”, uma vez, na lavaria da Panasqueira, num dia de reparação, vi-o levantar duas galgas de cem quilos cada (que exagero!), uma em cada braço, parecendo duas broas debaixo dos sovacos! Estes episódios e façanhas nunca mais teriam fim. Hoje, não me admirava nada se me dissessem que os lendários Mendes eram os últimos lusitanos descendentes de Viriato dos Montes Hermínios…! Mendes, Mendes… sempre generosos, abnegados e altruístas. Coração tão grande como a vossa força… como a serra de Cebola; coração onde cabia toda a gente do Mundo… nunca poderíeis enriquecer porque já possuíeis uma incomensurável riqueza interior, essa sim indestrutível!

Não queria tornar-me mais enfadonho com estas coisas, porque o meu imaginário não ficava por aqui… nem de perto… contudo, dado que a família Batista era, no meu tempo, a mais dominante e determinante, quer pelo número quer pela influência no seio do povo, bem merece que se fale dela com algum respeito e admiração, a despeito de não haver conhecimento de equivalente similitude a nível nacional. 

A minha criativa utopia  dizia-me terem sido eles os maiores contribuidores para a Fundação da Nacionalidade, ainda nos tempos de D. Teresa; que tinham sido grandes na luta contra os mouros na expansão e consolidação do País; dos mais eficazes nas lutas da independência e da restauração; que tinham capitaneado, mar alto, os navios dos descobrimentos, e, depois, já na implantação da República também tinham dado o seu inestimável contributo; que tinham sido, ainda, os maiores nas letras, nas artes e na política, em suma, que foram, que eram, os senhores de Portugal!... Afinal, tempos depois, pude constatar que os Batistas mais conhecidos, desde a Fundação de Portugal, foram (com os de Cebola, claro) o grande escritor Alçada Batista, o toureiro José Mestre Batista e o lépido Batista-Bastos, além do fascista e ditador cubano, Fulgêncio Batista, coqueluche americana, que Fidel e Che enviaram de presente a Salazar! Mas ponhamos os pés na terra, na nossa Terra, e falemos do que nos é próximo e muito caro – os Batista – e estes eram, nesse tempo, sem favor algum, a nata do nosso Povo… Como terão chegado os Batista? 

Estava convencido, e era coisa que não deveria andar muito longe da verdade, que vieram mais tarde e que eram gente culta, habituada a dirigir, a organizar e a ensinar; dos serviços administrativos, porventura filhos de professores, juízes, tabeliães e escrivães, registadores, cobradores de impostos, clero e comerciantes. Dignos, e de trato educado e afável, cedo se fixaram e fundiram com os Alves, os Monteiro, os Pereira e outras famílias de mais teres e haveres, de tal sorte que, a breve trecho, naturalmente, prevaleciam em quase todos os domínios.

Entretanto, o Cebola, que na minha ingénua crença continuava vivo e que, como disse, se transformara no Seixo da Quebrada, logo por cima dos Cabecinhos, com a nova estrada a passar-lhe agora aos pés (?), em lugar dominador, de privilégio, já alvo pela erosão e pela idade, hoje tapado por moitas, carrascos e pinheiros, como se lhe tivesse crescido a barba e o cabelo, atento, tudo via, e acreditava, com orgulho, porque todos propugnavam para que nada faltasse, que o seu Povo tinha pernas para andar… e andava…até que um dia, na serra de sudeste, abriu-se a boca de uma serpente mais perigosa e mais venenosa que aqueloutra que terá seduzido Eva; com milheiros de bem tecidos tentáculos aferentes, dissimulados até aos ínfimos escaninhos do seu antro, insidiosa, sorridente, chocalhando não a maçã mas o vil metal, depressa cativou os mais necessitados e a cobiça dos ambiciosos. De um fôlego quase todos levou e a todos levava se a tempo não houvesse um brado coletivo, um grande abanão nas consciências e apelos de outros afazeres, de outras vidas… Aí, o Seixo, o Cebola, sorriu! O seu povo estava salvo! 

O mesmo povo que pouco tempo antes quase o fizera sufocar de tristeza quando, conjurados, apareceram por lá uns pseudo-iluminados, de fraca personalidade, que por vergonha e por lhes faltar caráter, por serem incapazes de sustentar que alguém lá fora onde estudavam ou trabalhavam se risse por serem de uma nobre terra chamada Cebola, tinham tratado e conseguido eliminar o seu nome, esquecendo-se que são as pessoas ou as terras que fazem o nome e não o nome que faz as pessoas ou as terras (eu estava ausente por imposição a milhares de quilómetros de distância, mas mesmo que estivesse nada alteraria…). 

Acharam que era melhor um nome importado das terras de sua majestade britânica, o patrono da Ordem da Jarreteira, trazido pelo Duque de Lencastre, que teve ainda o desplante de o impor, substituindo o nosso S Tiago, padroeiro de Portugal, por este intruso. Assim, em vez da vitamina C, a riqueza da cebola, ficamos com a vitamina J, de Jarreteira… ou da vitamina L, seu símbolo – uma Liga de jarretas.

Recentemente, o Cebola, como recompensa, foi, também ele, surpreendido pela magia das novas tecnologias, um vento de renovação que, sem complexos e sem pejo ou assombro, com vitamina C e não J, com determinação, alguém, com olhos de ver, graciosamente pôs ao serviço e utilidade do seu povo; e agora, já de novo com o talo ereto e florido, ri e rejubila por ter sido rebatizado de Cebola, o Seixo, perdão, Cebola, o SITE.

Constantino Braz Figueiredo







A JUSTA SENTENÇA


Ao escrever o texto que se segue, A Justa Sentença, tinha em mente que os destinatários de então que o lessem compreenderiam que se tratava de uma ficção, alegoria pouco abstrata e nunca ao arrepio das circunstâncias temporais e dos motivos que o originaram, pelo que seria para eles, todos meus conterrâneos, de fácil interpretação.

Tanto assim será que, volvidos alguns anos e embora visitado com alguma assiduidade, não foi manifestada qualquer estranheza ou dúvida quanto a dificuldades de perceção. Contudo, tenho a certeza que será impossível, a quem não conheça a raiz deste assunto, conotá-lo com qualquer realidade, próxima ou remota.

Daí o conselho para que primeiro deve ser lido e interpretado o escrito anterior com o título:


Põe o Testo na Panela

 

.....///.....


A JUSTA SENTENÇA

 

 Bolbolónia é uma pacata e quase insignificante metrópole perdida no interior do sistema montanhoso luso-castelhano. Um dia, sentindo-se vexada por acontecimento de certo modo irrisório mas que beliscou o moral da sua cumpridora e ordeira gente, achou que a ofensa, conquanto não fosse grave, não poderia ficar impune. Era preciso que a sua reputação, adquirida, caldeada e cimentada em tantos sofrimentos, canseiras e sacrifícios ao longo de séculos, no bom conviver e bem receber… e no bem visitar, não ficasse manchada por ligeiras nódoas, ainda que facilmente laváveis numa primeira água sem carecerem de ensaboadela. Contudo, alguém tinha de as lavar, e isso só poderia ser por quem derramou os pingos que sujaram o manto branco de virtudes que o povo tinha e julgava merecer.

 

Para o efeito, reuniu a assembleia dos doze membros que era constituída por uma representação de cinco elementos dos que tinham onde cair mortos; duas pessoas do conselho de anciãos, já muito anciãos; dois representantes dos mais honestos e respeitáveis e justos, à justa; um membro do núcleo de feiticeiros, que a ninguém enfeitiçavam; outro das bruxas, que eram puras amadoras naquela arte, mas bem representadas pela sábia sibila do pombal; e, por último, o representante dos zés-ninguém, que também não aspiravam a zés-alguém…! 


Discutidos e ponderados os pontos da ordem de trabalhos, mais os que posteriormente foram admitidos e aduzidos, foi decidido, por maioria absoluta, o seguinte:


1.     considerando (…);

2.     considerando (…);

3.     considerando haver matéria para agir, aja-se em conformidade;

4. considerando todos os considerandos considerados e mais os considerandos desconsiderados, e dentro das prerrogativas que nos são conferidas pela soberana soberania do povo, determina-se:

 

§ único – Imediatamente eleita pelos presentes, é nomeada uma comissão composta por três elementos para que, dentre os maiores sábios de sempre, cuja ética e insenção sejam universalmente reconhecidas, e que uma vez escolhidos nunca possam ser postos em causa, nem pelos vivos de agora nem pelos vivos futuros, se vá encontrar um juiz que julgue e lavre sentença, a qual, para este povo, valerá e servirá de guia e conduta até ao marco-limite dos tempos.

 

Eleita e sancionada pela assembleia, logo a comissão se pôs a trabalhar e a estabelecer um plano para, dentro do que historicamente se conhecia, encontrar quem estivesse disposto e fosse capaz de julgar causa tão importante quão singular.

 

E então, lembrou o comissário mais velho, assumindo, descaradamente, a liderança do grupo: 


- Babilónia é um local cujo nome é parecido com o da nossa terra, e é sítio onde as civilizações são das primeiras e a justiça foi pioneira e aplicada com grande sabedoria por Hamurabi e seus seguidores.

 

Que não, argumentou o segundo na idade, porque a lendária Babilónia era um campo de ruínas; a torre de babel caíra devido às guerras que assolaram a região, ao muito uso e à falta de obras de restauro periódicas e adequadas; já não existiam jardins suspensos porque as correntes e colunas que aguentavam a suspensão enferrujaram, partiram e os jardins sucumbiram; e o leão da rainha espiritual Istar, já instável, velho, coxo e sem juba, deixou-a sem meio de deslocação; por lá, agora, só se for o Bin Laden… mas talvez na China – milenar encontro de civilizações de todos os continentes que afluem às afamadas curas e outros predicados das águas do Ganges, o Santo Rio, onde Buda era grande e justiceiro e Confúcio fora conhecido como grande ético e filósofo.

 

- Talvez…talvez - retorquiu o terceiro comissário, que era o mais novo - mas, se bem me lembro, Buda passou-se para o lado da Índia e foi aliar-se aos hindus e aos nirvanas… e aquilo agora na china são todos comunistas. Até o Mao já é bom… e estão mais amarelecidos que nunca… ademais com as Olimpíadas à porta…não, não… não é conveniente…decididamente, ali não! Porque não ficamos antes pela Europa que nos conhece tão bem e que nós tão bem conhecemos, e tem sábios e História como os outros continentes? Por exemplo Odim, guia guerreiro e espiritual dos teutónicos e povos escandinavos, senhor do pensamento, espírito e razão que lhe chega pelo corvo hugin e da memória e entendimento que recebe através do outro corvo munim, era bem capaz de ser o mais certo para um julgamento deste cariz.

 

-Também não - tornou o primeiro - porque as Valquírias ficaram aloiradas e espalharam-se por aí com uns fulanos… além do mais, os vikings, que o deveriam transportar, deixaram de trabalhar, ou, quando muito, fazem-no a seis horas por dia e quatro dias por semana… e os corvos emissários da sabedoria, coitados, já nem grasnar grasnam… mas, deixem ver (chefe é chefe e tem sempre o último trunfo ainda que seja na manga) … e se fôssemos à Grécia, mãe da cultura, ciências, matemáticas e justiça europeias?

 

Olharam-se, entenderam-se e assentiram de imediato, e o pensamento dos três comissários, em perfeita sintonia, velozmente voou para a Grécia e para a sua antiga civilização.

 

Sem grandes dificuldades chegaram ao monte do Olimpo, na Tessália. Uma vez ali, dirigiram-se, sem delongas, ao santuário de Epiro, sob a égide de Zeus, onde foram recebidos por uma sacerdotisa, que, posta ao corrente das suas pretensões e depois de consultar toda a documentação e exposição que fora primorosamente elaborada até ao último detalhe, enviou como mensageiro o oráculo de serviço para receber ordens de Zeus.

 

Este, que dada a sua condição de supremo dos supremos já sabia de tudo, devolveu o oráculo à origem com a seguinte comunicação: fala Zeus, que por minha voz fala… reúna-se um séquito composto por duas sacerdotisas, uma deste santuário, protetora da haurição, da família de Hades, guardador dos tesouros do subsolo, e a outra do santuário de Delfos, da jurisdição de Apolo, parente próxima de Orfeu, o lírico musico e poeta, que terão por missão fazer boa companhia ao réu e zelar pelo seu bem estar antes e durante o cumprimento da pena; mais Nestor, meu jovem oficial, guerreiro e argonauta, de patente inferior, muito ensimesmado, por vezes com discurso breve e cheio de alegorias, demasiado abstratas que só hermeneuta profissional consegue descodificar, que será suficiente para cuidar da defesa dos meus emissários, além de lhe confiar as rédeas de Pégaso, o meu cavalo alado, que é expressamente cedido para levar o séquito ao local onde será executada a pena; e, por fim, Morfeu, lendário mito dos sonos e dos sonhos que fará de meu relator e conduzirá, passo a passo, o réu ao cumprimento integral da sentença conforme por mim, Zeus, foi lavrada.

 

Ficou dito. Cumpra-se ainda hoje!

 

- Morfeu?!... Morfeu?!... – escandalizou-se o mais novo dos três emissários – Mas esse não é o que se deita com as cachopas e as faz sonhar com chocolates? Depois, dizem que o tipo é todo ai-ai… ainda nos pinta a manta de cor-de-rosa!... Qual quê, disse o mais velho. Ele deve ser do tipo bem ui-ui, senão elas não gostavam tanto dele, e, ao que me dizem, gosta é de cores bem vivas, como o encarnado, também tanto ao gosto do réu. Bom, diz o do meio: não nos devem preocupar os seus gostos. Morfeu traz uma missão bem precisa, e temos a garantia de que a cumprirá…aceitemo-lo, então, assim.

 

A primeira parte era esperar que o réu se deitasse comodamente e com saúde e boa disposição na sua cama e que adormecesse profundamente. E aí, sob o olhar atento das sacerdotisas, com Nestor, logo que acomodou Pégaso, em vigilância permanente num espaço exterior, mas contíguo, Morfeu entrou em ação, sussurrando-lhe: és escritor, um bom escritor, a tua missão é escrever, então toma um caderno e uma caneta e acompanha-me que vamos viajar…

 

 Num ápice chegaram a um monte onde se encontrava um monumento, tendo um letreiro do lado voltado para nascente a dizer Bolbolónia e outro, a poente, com a toponímica Medialónia, e uma escadaria mesmo ao jeito de quem se quer sentar. Sentaram-se. Morfeu logo se apressou a lembrar-lhe a caneta e o caderno para que escrevesse, dizendo: manda Zeus, e a obedecer és obrigado, porque, neste caso, exageraste. Tomaste a parte pelo todo ou o particular pelo geral. Assim, escreverás três páginas desse caderno sobre a gesta do povo da terra que vês lá ao fundo e publicá-las-ás no teu próximo livro que, pelo conteúdo, deverá ter garantia de sucesso. Assim Zeus o decretou!... Assim se cumpra!... Não se fez rogado o réu – escrever era com ele…

 

 Entretanto, lá pelo meio já da terceira página, passa um homem com um burro sem carga e tira o chapéu em jeito de respeito pelo monumento ou saudando quem estava sentado; olhando o gesto, o escritor levantou-se e correspondeu. Diz o homem do burro que desconhecia com quem falava: não tirei o chapéu a si, mas ao monumento. Responde o escritor: essa é velha… também não o cumprimentei a si, mas ao seu burro, ah, ah, ah… riu-se também o dono do burro e lá foi. De repente, começa a insinuar-se uma leve aragem que vinha dos lados do acume da serra; mais um pouco e forma-se a neblina que depressa se transforma em nevoeiro cerrado. Ficou sem enxergar o que quer que fosse…

 

Nesse momento passou-lhe pelo corpo um ligeiro arrepio, não de medo, não de frio, e, sem saber se de perto se de longe, se saía do seu interior ou se vinha com a aragem, ouviu uma voz cavernosa, como saída das entranhas da terra, a murmurar-lhe confiantemente e modo quase familiar: e esta Mané?... Mané não conhecia aquela voz, mas não lhe custou admitir que era a voz de um fantasma… perscrutou melhor o interior da névoa e pôde intuir que se tratava da sombra de algum desgraçado, ainda cheirando a vinho e com marcas de agressões várias, e, então, em sua memória, retorquiu: e agora Mané?...

 

Estavam os Manés quase a entabular conversa, quando, do Sul, reaparece o homem com o seu burro… olhe, senhor que escreve, o meu burro chegou ali e recusa-se a andar. Acho que simpatizou consigo e teima em levá-lo. Não quer ir? Olhe que é o melhor transporte cá do sítio!

 

Diz o escritor: bom… uma vez que terminei o trabalho e dadas as circunstâncias, boleia assim não é para desprezar, mas nós somos dois, eu e este… Não percebendo o homem do burro que o escritor se referia a Morfeu, logo respondeu: nós também somos dois!... Bom, vamos lá… O burro, via-se nele, ficou todo contente e orneou qualquer coisa impercetível, mas reveladora de simpatia (hin-hã), e pacificamente deixou que o escritor lhe trepasse para o dorso. Sabe, diz o do burro, este é esperto: é um burro das arábias, foi-me oferecido por um vizir quando me desloquei à Mesopotâmia, junto ao fértil Eufrates… aprendeu algumas coisas durante o tempo em que conviveu com fundamentalistas talibãs, numa cova onde você nunca iria e onde a palha escasseava… nem queira saber, tive um trabalhão para o morigerar… o pior é quando o encontro em reflexão… aí fica imperscrutável e nunca tenho a certeza se este seráfico crânio asinino prepara a evacuação de restos fisiológicos não assimilados para os largar em lugar menos conveniente, conspurcando-o, ou se está a perpetrar um atentado daqueles de fazer tremer o universo!...

 

 O burro, arrebitando as orelhas, levantou a beiçola superior e mostrou a dentuça enorme, parecendo rir-se… tal era a felicidade que o invadia naquele momento; e porque desconhecia que o atrevimento é diretamente proporcional à ignorância, despejou, por sua vez, em bom zurrar: hin-hã, hin-hã, hin-hã. Tragam toda gente, quero testemunhas; toquem campainhas, repiquem os sinos, deitem foguetes… chamem toda a comunicação. Que fique bem gravado no mar, céu,  terra e ar… a tinta indelével… a ferro e fogo… que sou o jerico mais feliz do universo! O que eu esperei por este momento!  Se um burro carregado de livros é um doutor, o que serei eu agora que carrego o Saber de todos os livros do mundo?

 

- Arre, burro!...

 

 

Levantou-se uma brisa mais consistente e todo o nevoeiro se varreu, dando lugar a um dia soalheiro de soberba visibilidade onde se podiam facilmente distinguir alguns pinheiros, as moitas, as carquejas e os seixos brancos que parecia brotarem do solo; as lombas, os contornos das serras e suas vertentes de fragas e carrascos com o horizonte a perder de vista. Lá ao fundo o povoado despertava para os afazeres quotidianos.  E, como como corolário da natureza campestre, o brinde de um estridente e mavioso trinado, como qualquer quebra-nozes tchaikovskiano, de um melro de bico amarelo que os saudou do galho de um cachapeiro…

 

E o escritor, enquanto com a mão afagava o cachaço inquieto do burro, mal disfarçando um sorriso de magnânima compreensão, mirou pela última vez o sítio que momentos antes abandonara, de fantasma já não havia sinal, mas pôde ver um significativo conjunto de coloridas mariposas, algumas ainda quase crisálidas, adejando em busca de protagonismo e da fama de novo adiada, e, de si para si, comentou: ainda não foi desta… a história ora contada não vos pertence…talvez a próxima… persisti, pois, hoje, amanhã e sempre…sem desânimo!

 

 Olhou agora mais adiante, e…o que via? As paredes interiores do seu quarto com as persianas já corridas e através das janelas a Ponta do Papagaio, em Arrecife; as ondulantes águas do Oceano Atlântico marulhando a costa pedregosa da ilha… e a sua bela e grave governanta, de ascendência romana, Vestal, como gostava de ser tratada, e que, com um sorriso bonacheirão de confiança sabiamente adquirida  ao longo dos anos que o vinha servindo, lhe dizia:

 

- Bom dia, dorminhoco, tem o banho preparado, vou já tratar do seu desayuno… que tal a soneca? Deve ter sido muito boa pois há pouco ainda sorria… Era, decerto, de bons humores…

 

– Era, de facto – disse, sorrindo enigmaticamente, o escritor –, mas pela salutar vivência com burlescos e peregrinos doutores!... 

 

Constantino Braz Figueiredo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 









PÕE O TESTO NA PANELA


Se, por estulta ingenuidade, algum dia tivesse esperança de que pela afetividade, crença e prática de ritos espirituais, ditos piedosos, alguém aplacasse a sua vaidade, autoestima e as próprias tendências predadoras, tão comuns e quase tão naturais no homem como a necessidade de procriar e de se alimentar, bastava este triste episódio do José Pires, vulgo José Júnior, mal equacionado e sofrivelmente desenvolvido, para me tranquilizar.

Realmente, este homem existiu em Cebola. Pelos relatos que pessoas credíveis me contam, não há dúvida que o homem existiu… e já era homem em 62! Então porque, puxando pela memória até à exaustão, não o consigo lembrar minimamente. Será que o homem não pisava terreno de mouros onde eu melhor me afoitava? Será que andava tão distraído que nem reparava nas pessoas da minha terra? Como seria possível?!...  A meu ver só encontro uma explicação: JP ou JJ trilharia já caminhos que não eram os meus. Não seriam, indubitavelmente…

Este escrito era para ter sido divulgado há já algum tempo, porém e apesar de se ter falado bastante sobre o assunto e ninguém ter ido mais além do que as próprias suposições de Saramago, não o consegui, visto que estive à espera de dados concretos que pudessem narrar a história verídica ou o mais aproximada possível, e que tinha pedido (encomendado) a pessoas da minha confiança, para, assim, documentar o texto e melhorar a análise e o podermos enterrar de vez se fosse caso disso, como aliás me parece.

Nada nos custa entender que nem só JP ou JJ, em certo momento, se encontrou na mó de baixo. Em todo o mundo, em todas as terras, aldeias, cidades, lugares; nas escolas, na rua ou nas praias há, sempre haverá, gente que se diverte à custa dos outros. Quase sempre, por paradoxal que pareça, são os pobres que se divertem à custa dos pobres; os fracos que se divertem à custa dos fracos. Porquê? Porque sendo seus iguais, da mesma estirpe, estabelecem entre si códigos de valores, empatias e cumplicidades difíceis de compreender. A dinâmica terá origem na própria necessidade de afirmação entre eles. Por vezes, as coisas dão para o torto e alguém sai magoado. Pode, se o incidente for grave, suscitar notícia breve na comunicação social. Mas isso acontece e acontece todos os dias, a toda a hora, em todos os lugares, porém, nem sempre chega lá um promitente Prémio Nobel da Literatura disposto a enfatizar o caso, e que, dado o seu prestígio, o atire para a fama e posteridade. Digo promitente Prémio Nobel porque, se não viesse a sê-lo, jamais um intelectual da nossa terra se interessaria por este assunto, nem por Saramago, tão-pouco assegurar-lhe a recorrência quinquenal em pura exibição gratuita, individualmente cabotina, infeliz e fastidiosa.

Saramago é, qual feiticeiro, um sedutor e um manipulador de sentimentos e de emoções. Na sua visita, que tanto nos honra e prestigia, no dizer de uns quantos, escamoteou a coragem e o trabalho heroico da nossa gente; não perguntou como se fizeram chãos de milho, courelas e socalcos de hortas estendidas pelos barrocos, ribeiros e serras acima; como se plantaram olivais e até vinhas…de porcim ao picoto, passando pelos declives da Cerdeira, do vale de muro às generosas aradas, do vale d’água ao fértil vale da portela-meãs, passando pelos lameiros e quebradas onde tudo foi arroteado, desbravado, transformado em campos para o sustento das famílias; não falou das épicas obras que foram, sem auxílios estranhos, as construções da capela, do monumento e da nova igreja. E tudo ao mesmo tempo em que trabalhavam, adoeciam e morriam nas minas…Isso é comum, diria o escritor-jornalista. Ele, como todos os artífices da comunicação, precisa que o dono morda no cão… E então, se isso acontece, tem material para desenvolver… e fá-lo!

Em fulgurantes pinceladas de génio, tão depressa levanta os seus personagens do chão como os põe de rastos, espezinhados, dormindo e roncado para embalar as moscas que lhes tomam o apreciado e guloso néctar das mucosas ou os despeja numa valeta ou esconso buraco, onde mijam e escarram, estonteados pela droga ou pelo álcool. A uns glorifica a outros crucifica. Uns pinta cruéis e cáusticos, outros ternos e piedosos, por vezes macios, outras, acerados; agora um santo ou um pecador, logo um mártir ou um carrasco, um herói ou um covarde; alegres, tristes, maus e bons, todos pertencem a uma mesma família: são os filhos do mestre que lhes deu luz, vida, pensamento, inteligência, saúde, doenças, alegrias, tristezas, para que o universo da sua obra seja igual à natureza, ao próprio cosmos – igual a si próprio. Nada é diferente; só o artista!... E assim, de um episódio banal que não transcenderia em nada o que é vulgar em todos os tempos e recantos do mundo, porque fora fruto de simples incidente, não planeado e não premeditado, e que rapidamente esqueceria à comunidade que nem sequer o viveu na plenitude, porquanto, poucos anos depois, perguntando Saramago a três pessoas lá na terra – o próprio o diz – já nenhuma se lembrava, obrigando-o a socorrer-se de uma local de um jornal do tempo do acontecimento, que ele próprio redigira, para então literariamente o tratar e converter em tragédia grega para impressionar a humanidade.  

Tenham paciência; haja decoro!...

Saramago criou um fantasma que é seu, não nosso; inventou-o em Cebola inspirado em duas linhas que havia escrito em seu jornal. Tomámo-lo dele, não ele de nós. Cebola é terra de gente, não de fantasmas, e gente tão nobre e honrada como os nobres e honrados campinos escalabis de Azinhaga ou como os fidalgos de Lanzarote. E não será qualquer fantasma que manchará a consciência do nosso Povo, ainda que entrajado na forma genialmente moldada por talentoso e ímpar costureiro da literatura. Mandemos, pois, todos os fantasmas às malvas, gerados ou não por Saramago, e coartemos de vez estéreis vaidades pessoais causadas por citações nóbeis que, de algum modo, possam tolher o passo à nossa briosa gente, e prossigamos de cabeça levantada, sem qualquer preconceito a ensombrar a nossa mente individual ou coletiva.

Ao abordar este assunto, tê-lo-ei feito com alguma leviandade, é certo; porém, insisto que foram pressupostos errados, clichés que por aí vogavam, e que, mau grado a sensibilidade que por vezes não abunda, ainda se podem ler na página dedicada à nossa terra no site da CM da Covilhã, que me levaram à convicção de que os acontecimentos se reportavam a uma data muito mais remota. Poderia eu pensar que aquele Povo, tal como o conheci e do qual fiz parte integrante e ativa durante quase vinte e cinco anos, teria tido atitudes como as descritas por Saramago? E teve? O Povo teve? Recuso-me a acreditar …melhor: digo que não! Mas, ai de mim! Ao sustentar esta asserção, que deixei expressa e explicada em anteriores escritos, exponho-me, eu próprio, ao destino do JP ou JJ. Com efeito, mal “tropecei”, de nada serviram os argumentos do meu engano acompanhados das minhas penitências. Como a um ímpio, pequena caterva de assanhados e pretensos intelectuais e seus armados prosélitos logo começaram a atirar-me de todo o lado pedradas e vitupérios, ora com artesanais e arcaicas fundas ora através de sofisticadas bestas, modernas, transformadas…de laboratório…. Creio, até, já estarem a preparar as catapultas com técnica embushada, de última geração!

Uns eram garotos que achavam graça a uma diversão estúpida porque era fácil bater e atirar pedras a um indefeso, embora, por vezes, também ele gostasse da brincadeira porque daí advinha a atenção carecida, sustento do seu equilíbrio emocional, e quem lhe pagava mais um copito, talvez o fizesse, inconscientemente, só para o ver mais alegre e feliz; outros, quais farisaicos moralistas, únicos detentores da verdade, os julgadores, os rotuladores e classificadores do indivíduo só porque viram isso escrito em qualquer livro ou apócrifo documento – grandes sages! –, aqueles que assobiaram para o lado durante e quando os factos terão acontecido vêm, agora, numa vergonhosa e anacrónica cruzada, condenar todo um Povo, sério e honesto, a opróbria e perene contrição.

JP ou JJ morreu, talvez em 67 ou 68, em 73 foi o julgamento que, à matéria dos autos, disse nada; Saramago escreveu em 1981, mas eles ainda demoraram algum tempo a descobrir aquele filão, e quando enfim o descobriram logo aproveitaram o ensejo para fazer brilhar as suas mentes enobrecidas com alguns rudimentos aprendidos nos bancos do saber. Durante mais de trinta anos ninguém soube nem se incomodou com o JP ou JJ. Os seus superiores intelectos estavam tranquilos…Ah grande Saramago!... Uns atiraram as pedras ao teu José, tu atiraste a pedra ao charco; uns deram-lhe o vinho, tu, a eles, a lama que o charco continha, e assim, os grandes eruditos da nossa praça, encontraram uma razão para mostrar-se e pôr as suas consciências em paz, e consumir-se então em profundos pensamentos e assombradas reflexões, cogitando, meditando e lucubrando até ao amanhecer, mas procedendo, afinal, de igual modo; com empírica e calculada subtileza, seguem o mesmo princípio: bater nos mais débeis. Está fraco, vulnerável? Então agora é que é dar-lhe… basta dizer que a razão está no teu lado, logo não está no dele, topas? Atira daí que eu atiro daqui! Se algum desalenta, logo outro vem em sua defesa! Força, força!...É fartar, vilanagem, é fartar… 

Concedam-me, no entanto, o privilégio de ser eu a pensar já que estou mais avezado!... E, por favor, evitem alardear as vossas veneráveis honorificências sociais, os vossos respeitáveis títulos académicos, as vossas riquezas; obras, talentos e virtudes…Isso em nada impressionaria quem já enfrentou, sem inibições, gente até de outro estatuto, e não a defraudou nem desprestigiou Cebola, a nossa querida terra.


Conquanto sitiado no meu baluarte, não estou completamente desarmado, e não sou o JP ou JJ; a mim não me atingem pedradas filosofais. Essas tretas botei pela janela fora há mais de trinta anos. Fosse meu o campo e fosse eu o dono da bola, e mais novo, e haviam de testemunhar verdades incontornáveis em vernáculo do melhor, espargindo-se em jogadas incomparavelmente belas, esplendorosas, dignas dum grande jogador e, quiçá, o maior vernaculista de Cebola. Infelizmente, não tenho uma coisa nem outra, e de cada vez que tento chutar forte, ou experimentar uma jogada menos ortodoxa, a bola é-me retirada e sou admoestado e substituído… e a idade também já me vai retraindo o ânimo que outrora fora  inquebrantável.

Perorando… já sinto a fragrância dum acepipe que me faz lembrar a sopa que a minha irmã Maria José, há muitos anos radicada em França, cozinhou quando éramos miúdos, e a quadra que então lhe fiz para celebrar o seu cheiro e sabor:
                                                                                         

Tão bem cheira a tua sopa
Que um fantasma vem por ela
Pra que não a coma toda
Põe o testo na panela


Constantino Braz Figueiredo







UM TAL ZÉ MARIA (1)


“Salazar!?... Ó Salazar?!...” Quem assim gritava, na famigerada correia, era o vigilante “redolho”, um tipo estrábico que parecia olhar contra o governo, mas que ao berrar aquele nome olhava ostensivamente na minha direção. Com tal ímpeto e insistência que me pôs a catar nos lados e atrás, a ver se descobria tão grande estadista… ou alguém que fosse digno de merecer o seu “sagrado” apelido!

Qual quê! … Além de não tirar os olhos de mim, à distância de uns trinta ou quarenta metros, assestando o seu inseparável arrocho aos meus olhos, quase furioso, berrou de novo: Salazar! Ó Salazar! … Estuga as patas! Assim mesmo! E quando já me conformava com tão despropositada quão notável alcunha, ele, ao perceber um misto de estupefação, ironia e mal disfarçado gáudio nos semblantes da outra canalhada, meus companheiros de infortúnio, para que não restassem dúvidas e para que constasse, avançou corredor fora com modos de quem vai fazer alguma. Chegado a mim, desferiu duas valentes arrochadas nas minhas nalgas, vociferando com superior exuberância: “És tu! Tu é que és o Salazar”!!!!...

Com apenas treze anos ia lá agora discutir com quem tanto sabia…! Para mais armado daquela maneira!... Só seremos heróis se, tendo consciência do perigo e por cuidada avaliação o desconsiderarmos, o atacarmos e o vencermos. Se assim não for, o mais que seremos é estúpidos, embora por vezes protegidos pela sorte! Neste caso, nem sorte nem ataque nem contra-ataque, era comer e calar!

Ainda nesse dia, à tarde, tentei saber junto de familiares e de pessoas mais velhas da terra o significado daquele nome aplicado a tão reles figura – nada; não havia explicação plausível.

 Mais tarde, aproveitando uns minutos que sobraram do frugal almoço, e vendo pelo ar do vigilante “redolho” que o momento era propício, enchi-me de coragem e, com a maior humildade que consegui, perguntei-lhe: “Ó ti Joaquim, por que me chama Salazar?” Para meu espanto, e meu bem, não se escandalizou, e explicou-me então que o meu falecido pai é que era o Salazar, porque era um homem que sabia como ele e discursava como ele. “Dava gosto ouvi-lo! E ninguém levava preso aquele sacana!” … Poças! Que elogio! Mas seria bem melhor se não me fosse custando umas boas arrochadas! 

Assim, aos poucos, ia compreendendo por que alguma gente mais velha tanto gostava de “molhar a sopa”. Mas o “redolho”, caindo em si, e admirado por ter sido tão condescendente em dois ou três minutos de fraqueza sentimental, logo tentou emendar o lapso, e batendo com o pau na lata protetora de uma roda cremalheira, gritou: “mas isso era o teu pai; tu não vales nada… Fora daqui, vai trabalhar e depressa senão levas com o arrocho.”

Pois é, mas ao meu pai nunca ouvira contar o que quer que fosse acerca dos seus discursos e das suas lutas; mesmo a minha mãe, da família Gil do ramo do Ourondo, quando o desposou já isso tinha acabado e ele já era então o Geral – o capataz dos capatazes; cargo aliás que manteve por pouco tempo (três anos), pois quando eu nasci já o não era, porque a politica tinha mudado e a companhia parece que tinha feito as pazes com a “Situação” e com a Igreja e o meu pai, diziam, era um comunista.

Talvez não fosse, pelo menos não estava filiado em qualquer organização política, e quando alguém se atrevia a chamar-lhe isso logo se apressava a responder que não, porque não tinha categoria nem classe para o merecer… Deveria ser somente coisa da sua personalidade e consciência de classe, porquanto, não raro, ainda se ouvia dizer: “Trabalhador que se preze, enquanto tal, deve ser sempre contra o chefe, contra o patrão e contra o governo”, explicando, logo de seguida, que a palavra contra deveria ser entendida no sentido exclusivo de em oposição ao… 

Os últimos cinco ou seis anos de vida passou-os já doente, completamente rebentado pela sílica adquirida atrás de um martelo pneumático. Triste, muito triste e sem vontade de falar de quase nada. A única coisa de que o ouvi gabar-se, com certo orgulho, ao coberto, para os vizinhos amigos, foi de que fora ele quem fizera a minita da selada, à fontanheira, que alimenta o tornadouro com um caudal que nem os ribeiros. A sua biblioteca era uma gaveta bem fechada com apenas três livros: O Capital, de Karl Marx, O Imperialismo, de Lenine e – pasme-se! – O Homem Que Ri, de Vítor Hugo. O que fazia ali este livro? Li-o (ao que me lembro era sobre saltimbancos) e da sua leitura não encontrei coisa que se identificasse com a doutrina que era atribuída ao Zé Maria. Quanto aos outros, que nunca li, minha mãe deve tê-los queimado com medo da “tosse convulsa” salazarista e cerejeirista.

Como se infere do exposto, querer contar coisas que não vivi, de uma pessoa tão íntima e de quem nunca as ouvi, torna-se um pouco frustrante. Mesmo assim, já que os seus conterrâneos apenas davam crédito e valor a quem tinha e dizia ámen e ele apenas tinha o que era ou o que tinha sido e a palavra ámen não era do seu vocabulário, encontrei, por lá, mas de outras terras, alguém que sabia algumas coisas. Além disso, há testemunhos escritos por pessoas insuspeitas que dão bem conta da sua inigualável luta e contributo para o progresso e bem-estar da vida mineira. Por exemplo, com a devida vénia aos autores, embora com uma certa crítica por não terem recolhido os elementos no cerne, transcrevo algumas passagens do livro “A Guerra da Mina”, de Fernando Paulouro Neves e Daniel Reis:

Página 13

“Procurámos ouvir da boca dos mineiros mais antigos e dos mais jovens, quantas vezes seus filhos, algo dessa história de lutas, desde o dia em que um mineiro de nome Zé Maria, chamuscado nas escaramuças que precederam a Guerra Civil de Espanha, subiu a uma lapa e arengou aos mineiros levando-os a arrancar para a jorna de oito horas, até às lutas sindicais…”

Página 46

“António Lopes, do Sobral de S. Miguel, a poucos quilómetros da Panasqueira. Chegou à Mina no dia célebre em que “um gajo de S. Jorge chamado Zé Maria” levou os mineiros à greve pela jorna de oito horas.” (…). 

Página 48 

– (…) “Trabalhava-se dez horas por dia. Depois veio um gajo de S. Jorge, chamavam-no Zé Maria. Veio de Espanha. Ele já sabia daquilo do sindicato. Era sócio e tal. Andou lá a trabalhar muito tempo. Depois chegou aí e viu que isto ainda era as dez horas. (…) foi mesmo no dia em que vim pedir trabalho que eles andavam com a greve. O gajo convidou o pessoal para a revolta. Fez um discurso ali na Galeria Cinco, outro no Escritório. Estava cá o Regimento 21 da Covilhã e veio a Infantaria de Castelo Branco. Eram dois Regimentos só para ameaçar o pessoal.

O Diretor trazia os ordenados atrasados seis meses. A gente quando começava a trabalhar andava seis meses sem receber e só ao sétimo é que recebia o primeiro. (…) Pois esse tal Zé Maria entrou aqui. Falava como um polícia, o gajo. Olhe que ninguém o prendeu, não. Fez o discurso ali na Galeria, fez outro nos Cambões. Subiu para cima de uma fraga, estava ali tudo cheio de gente, tropa e tudo. Tudo junto a ouvi-lo. (…) Depois dali foi para a Córrega Seca, fez a mesma coisa. A tropa foi-se embora e o Diretor, à semana seguinte, pagou logo três meses. Na outra semana pagou dois. (…) Sabe o que é que fizeram a esse tal Zé Maria? Puseram-no de capataz-geral.”

Pelo que testemunhas oculares me contaram, um certo dia, acho que no discurso da Córrega Seca, tinham improvisado um palanque destinado aos promotores e mentores da greve; todos de pé – não havia direito ao luxo de mesas e cadeiras, microfones e altifalantes; era puxar pelos pulmões que, nesse tempo, felizmente, ainda davam para tal….

Abria ele então o seu discurso, gritando à multidão: – “Mineiros!... Povo!... Militares!... Senhores Diretores”... eis senão quando, do seu lado, de supetão, surgiu um companheiro da direção da luta e, em tom de voz e aspeto sério e convincente, diz: “Alto! Alto! Interrompo… Os homens tiram o chapéu e as mulheres ajoelham, e podem acreditar que tudo o que o Zé Maria disser é verdade e nada mais que a verdade. Podes continuar”. Perpassou então pelo auditório um zombeteiro murmúrio, um sorriso de cumplicidade e de tolerante compreensão pela brincadeira que lhe foi proposta, porque, realmente, de brincadeira não passava e apenas serviu para descontrair os menos afoitos…

… e descontraída e afoitamente continuou o tal Zé Maria … e de que maneira!...

 

O tal Zé Maria (José Maria Figueiredo) nasceu em Cebola; fora para as Astúrias onde trabalhou em minas durante alguns meses, mas vários anos antes da Guerra Civil de Espanha. Faleceu a 2 de Março de 1949, no hospital da Covilhã. Tinha cinquenta e cinco anos. Deixava onze filhos todos nascidos e criados em Cebola… eu sou o sétimo.

Constantino Braz Figueiredo 

Q



O INSIGNE E O INSIGNIFICANTE

(Magnus et Parvus)

Taratata… Boomm!...  Buuum!... Era a alvorada ao alvorar; o alvoroço ao alvorecer! Não estrelejavam foguetes… não havia ainda fogo de “lágrimas”, não havia qualquer espetáculo que desse gozo, visual ou sonoro – só barulho estrondoso, incomodativo, para gáudio dos incautos mas prejudicial à saúde quer dos incautos quer dos sensatos; uma trovoada pirotécnica ruidosa, sem sentido, e sem justificação, a não ser que se quisesse mostrar aos anteriores mordomos que foram suplantados, vencidos, que este ano é que sim, que este ano é que iria ficar na memória de todos!...
 
Nos da terra e nos das redondezas…!
 
Mas na terra só por caridosa tolerância se aceitava este tremendo dislate e nas redondezas mal se ouvia o foguetório, se por acaso se ouvia mesmo com o vento de feição!... Aqui, nesta como em muitas outras aldeias, impunham-se ainda, soberanos, avitos símbolos que vão ficando no inconsciente do povo, manifestando-se sempre que haja ensejo e momento propício nos usos e costumes, e nas tradições  que  vão assegurando a continuidade comportamental coletiva, com direito a um lugar  consagrado e certo nos baús da posteridade. Contudo, mesmo sem ferir os valores éticos que há que preservar a todo o custo, algumas tradições deveriam ser revistas e ajustadas às realidades… O Povo é revolucionário, progressista! Se o deixarem, evolui naturalmente é inovador e criativo, todavia há sempre quem lhe meta a travanca, lhe ponha o freio, o modere!

Que desperdício!... 

Chchsss…. Buumm! …

Pois sim! Mas um garoto, qualquer garoto, quer de outrora quer de agora, não tinha como não tem problemas sonoros, quanto maior e mais duradouro for o ribombar dos canhões, melhor – mais foguetes, logo mais canas para apanhar. Assim funciona a lógica das idades e das coisas das idades! Somos garotos, vamos então apanhar as canas, antes que as apanhe quem lança os foguetes… mas como garotos, que na nossa terra não havia putos. 
 
 E dentre os garotos, também eu, o Constantino, me perfilava na primeira linha na intenção de apanhar mais que os outros, já que esse era o desafio a que todos se propunham. Afinal as canas não tinham qualquer préstimo, a não ser o orgulho de as contar no final e ver que se tinha sido dos primeiros na “colheita”. 

E eu, que em outras contagens nunca fora dos piores, desta vez, fosse por má colocação no terreno ou por deficiente avaliação do vento ou somente por erro estratégico, em dezoito, fiquei em décimo oitavo – o último. 

O dia começava bem…

A essa hora já a filarmónica se preparava, à ponte, para dar início à sua marcha matinal pelas ruas do povoado, tocando sem desfalecimento, e só parando de vez em quando, nos largos, para um ligeiro mata-bicho oferecido por prestimosos confrades! E os garotos – sempre os garotos –, depois das canas, lá iam atrás da Banda, em bandos, alegres, saltitantes, ao toque dos “granadeiros”. Ao passar-se à Cruz da Rua, alguém da família “pedôa” me chamou: “Garoto!” – Garoto?... garoto era comigo… – “Faz-me um recado, vai...”
 
Para além de ser utilizado como o telemóvel daqueles tempos – e era bom porque era rápido e eficaz –, também servia para se demonstrar que, em Cebola, por não serem capazes de pronunciar o meu nome, todos me tratavam por “garoto”. “A nossa gente”, por um defeito de pronúncia, parecia ter horror aos ditongos ou vogais nasais e, o pior, propendia para síncopes e apócopes, o que equivale a dizer que omitia sílabas no meio das palavras e desprezava as últimas ou as transformava em hiatos esquisitos; por exemplo, Covilhã era cvilhen, amanhã, amnhen. Comiam-se letras e até palavras quase inteiras – barriga cheia!... – o que, indubitavelmente, lhe conferia o direito de poder ser reconhecida como a gente mais letrada do mundo!... 

Então, Constantino era Cstaten, Csten ou Ten. Aproximado, não? Já era adolescente, jogava à bola no Estrela, e nas redondezas todos conheciam l’enfent terrible, mas esses tinham o caminho aplanado, porque, como o meu irmão Alexandre também jogava e era conhecido por Figueiredo, o Constantino, mais novo, não passava do “irmão do Figueiredo”, expressão de que gostava bastante, aliás; em Cebola, ao descrever-se uma jogada, dizia-se: “e aquele tiro do garoto à trave”… “e aquele golo do garoto”. Ou assim ou Cstaten! 

Porreiro! 
 
Houvera duas exceções e não me dei bem com qualquer delas: Uma, na catequese, devia ter beliscado o parceiro do lado ou tirado um macaco do nariz, quando o padre, que era o catequista, gritou sem prejudicar uma sílaba ou uma letra, “Constantino, se voltas a fazer isso, ponho-te lá fora e vais para o olho do inferno”, ao mesmo tempo que me atingia uma orelha com a sua “varinha mágica”; a outra foi na escola…estávamos na época mais crítica e mais dura do Estado Novo, com a Mocidade Portuguesa no auge… e eu, o Constantino, aluno da terceira classe, na hora do recreio, sentei-me à Eira, na soleira de uma das portas laterais da casa dos Batista, passa a professora e fiquei na mesma posição (fi-lo não por um gesto heroico, mas porque estava em protesto com qualquer coisa que na minha vida correra  menos bem) … Chegados à  escola, todos sentados, a professora também sentada, parecia calma,  pelo que me pareceu que a minha falta tinha sido relevada. 

"Esqueceu-se” – pensei. 

Qual quê!... Quando já aliviava do sentimento de culpa, vejo-a   levantar-se, agora com semblante denotando alguma adrenalina,  e impor: “Silêncio”… Então com todos respeitosamente calados – e eram noventa e nove… –, em voz bem timbrada, metálica e esganiçada, chamou: “Constantino Braz Figueiredo, à secretária”… “Sabem por que está aqui este menino?” Só ela e eu o sabíamos. - “Quando passei por ele – explicou para memória futura e cumprimento geral – não se levantou nem fez a continência regulamentar (a continência regulamentar era igual à da MP, à Mussolini – braço direito firme e bem estendido na horizontal), agora vai apanhar quatro reguadas para que lhe sirva de lição". E puxou-as bem, a senhora professora!

Retomando a narrativa depois de cumprir a "chamada de telemóvel" com a melhor acústica deste mundo – que eficiência!... Qualquer dia era melhor dizer que tinha a bateria descarregada…! –,  ainda fui a tempo de apanhar a Banda antes da Eira. 

As ruas estavam todas engalanadas com arcos ornamentados com artifícios de papel de várias cores, representando coroas, jarros, flores, candeeiros, fitas entrelaçadas em fole e serpentinas. Tudo lavorado por equipas de raparigas habilidosas. Ainda me lembro de me mandarem ir comprar o papel – sempre os recados –, “vai à loja do ti (…) e traz dez folhas lendas (lindas), quatro verdes e seis encarnadas”, respeitando a proporção das cores nacionais - 2/5 e 3/5, ou seja 40 e 60 por cento!

Chegado o dia, a hora, por todo o lado onde passasse a procissão, à Cruz da Rua, à Moreira, ao Terreiro, nas varandas e janelas, enfeitadas com a melhor gama de plantas, suas ou emprestadas por outras que moravam fora do percurso, e com as melhores colchas de cetim e toalhas de cambraia, bordadas com motivos florais e campestres pelas suas mãos ou pelas mãos pacientes das mães e avós, que bem as guardavam no fundo das arcas canforadas. Debruçadas nos parapeitos, esperavam então ansiosamente a passagem do cortejo, para atirarem ao padroeiro ou à santa festejada, em preito de homenagem, os confetes ou papelinhos (pisótes, como lá se dizia) e as pétalas de flores que tinham conseguido. 

Como sempre, a Filarmónica fez uma pausa à Eira, e pôde reparar que o coreto levava os últimos preparativos, entre outros, a colocação de bancos compridos trazidos do Clube, onde os músicos se iriam sentar para abrilhantar a tarde de quermesse e vendas de bugigangas, licores e artefactos, e extasiar os ouvidos de quem gostasse de boa música, conquanto fosse proibido dançar nas festas de caráter religioso, pelo menos nos espaços reservados para as manifestações pagas pela organização dos festejos. Seria só por soberana imposição, indiscutivelmente acatada, do titular do cargo paroquial? Mais tarde teria a confirmação! Mais tarde… Por agora bem via os corpos e pés de moças e moços a mexer inquietos, sedentos de um bailarico! – Olha…que se “lixasse” o padre... vamos dançar à Costa ou ao Rodeio, é só arranjar um tocador nem que seja de gaita de beiços! 

E lá iam… e os garotos também! 

O coreto era desmontável e, se bem me lembro, tinha por baixo uma portinhola com forte fechadura onde metiam forasteiros que se portassem mal ou quem se embebedasse e andasse a causar distúrbios ou a ofender a moral pública. Ali ficavam a dormir, ou a “curtir”, sob o alegre e agradável som da nossa grande Filarmónica.

Sortudos!...

Retomando a pausa da filarmónica na Eira, que já dispersava, chegou a hora de todos se aprontarem para a missa, que seria solene, com sermão e cantada por mais de um sacerdote, com acólitos, filhos da terra estudantes em seminários, promissores padres, mas todos ou quase todos malogrados nesse suposto desiderato. Mas ali não falhariam. A propósito, lembro-me que tendo feito a quarta classe no ano anterior, com dez anos e apenas com três anos de escola, lembro-me dizia, que na altura se esboçara um movimento liderado por um senhor que morava perto do adro, para, também eu, Constantino, ir para o seminário. Hoje acho certa graça, mas, naquele tempo, fiquei apavorado e fugi. Andei um dia perdido, escondido, sem comer, por aquelas serras do picoto… e o movimento abortou… Antes isso do que falhar!
 
Fui a casa e vesti uns calçõezitos lavados, já com remendos, mas lavados, uma camisita… “borrei” os olhos com água, tirei os “moncos” do nariz, esperei o toque dos badalos percutindo os sinos e saí para a festa.

 A Festa!... A Missa cantada!... O Sermão!... A Procissão!...

A igreja estava a abarrotar com a gente da terra e muitos visitantes, maioritariamente dos lugares anexos à Sede da Freguesia; não havia bancos, pelo que ou se estava de joelhos ou de pé…a escolha era simples. Os altares estavam esmeradamente arranjados e cheios de verdura e rosas e cravos. Havia cadeirões almofadados e forrados com tecido  purpurado e carpetes e passadeiras junto ao altar-mor com continuação pelas escadas até ao púlpito que ficava à esquerda da nave, na ótica dos fiéis.

A Missa começara…

E  chegou a hora mais ansiada:  a homilia majorada, o Sermão!

Adrede fora contratado um padre jesuíta que tinha fama de ser bom na matéria. Esperava-se que o fosse realmente, porque do seu sucesso dependia em grande parte o sucesso da Festa e o êxito da organização. Logo que o pregador se levantou do seu cadeirão, encarou os fiéis com a natural sobranceria e à-vontade de quem está muito habituado a estes eventos. Pelo que me lembro – estamos a falar de coisas vividas há mais de setenta anos –, era um homem baixo, entroncado, olhava bem de frente, e pregava… bom… subiu as escadas, não a correr como o vaidoso político para mostrar saúde (essas cabotinices ridículas!), mas vagarosamente, como alguém que está seguro de  que o tempo joga a seu favor, já que a ansiedade cria nas pessoas o suspense psicológico sempre favorável a quem as enfrenta. 

E, do espaço reservado à pregação, com as mãos abertas e  poisadas no parapeito do púlpito, forrado e bem colorido,  olhou calmamente o auditório, rezou em latim, benzeu-se e esperou que todos se acomodassem. Afastados os ruídos e já sem qualquer som incomodativo, pigarreou ligeiramente e com  voz de barítono timbrada e  bem sonora, fez ouvir:
 
 "Constantino"…
 
– O quê?!!!... Agora é que foram elas… O padre está a chamar-me? Não pode ser! Como me conhece ele? Por outro lado, cá não há outro… Alguma coisa se passa… e com o coraçãozito em batimentos desordenados, para cima é que não olharia mais! Comecei a escorregar por mim abaixo  até quase me sumir, escondendo-me atrás de alguém mais alto.  E  ouvi de novo:

– "Coonns-taann-tiii-no… esta palavra que quase se canta"…

– Canta? Mas canta como? Querem ver que ele põe toda a gente a cantar o meu nome!... Havia de ser bonito! Se fosse há uns meses haviam de parecer os blues em Stanford Bridge a entoar o “Gouzé Morinho”! … Comecei a ficar inquieto, mal disposto, a suar, com as orelhas fumegantes…o diabo!... Consegui levantar os olhos, a medo, para as pessoas que me rodeavam… ninguém me prestava atenção. Porquê? Era simples: porque não conheciam aquele nome; aquele ranhosito ali era o Cstaten, na melhor das hipóteses, portanto nada tinha a ver com aquilo…! Volta o pregador: – "Constantino Magno"…. – Magno? Magno-manhoso? Magno-mágico?  Mágico-bruxo, bruxo-fogueira… Será que o Tribunal do Santo Ofício tinha decretado que fosse queimado vivo? Querem ver que me vão assar!!! – Era o que mais faltava… bem me bastava já o revés sofrido na apanha das canas! … Mas o jesuíta numa voz bem clara e sotaque galaico-duriense ou luso-castelhano, ou espanholês ou talvez em portunhol, tornou:

 - "Constantino, esse amantíssimo e dileto filho de Santa Helena, esse grande Imperador Romano, que antes de uma batalha decisiva viu uma cruz no céu, e junto dessa cruz as palavras sagradas “Com este sinal vencerás”; Constantino Magno que pegou nesse símbolo sagrado e guiado pela fé venceu o seu rival e consolidou a sua posição de imperador. Constantino, O Grande, O Magnus, com o poder temporal que lhe fora conferido por Deus, pelo Édito de Milão, no ano do Senhor de 313, concedeu a liberdade aos cristãos que assim puderam abandonar as catacumbas e sair definitivamente da clandestinidade; Constantino… Constantino"…

 E continuou explicando a dicotomia entre o ser Insigne e Grande na Terra – Magnus – e o quanto se é, ao mesmo tempo, insignificante e pequeno – parvus – perante Deus! Terminada a sua pregação, viu que o povo estava completamente extasiado; completamente rendido às palavras tão sabiamente pronunciadas (a História, o sotaque e o “o nome que quase se canta” ajudaram bastante, convenhamos), desceu as escadas tão devagar como as subiu; perscrutando com o olhar os admirados e agradecidos fiéis, gozou a ovação que não podia ouvir  mas que o seu ego sentia. Entretanto, por agora, o insignificante Constantino, o Cstaten, já tinha a sua conta, e enquanto as pessoas se fixavam no padre fazendo respeitosas reverências à sua passagem em direção do Altar-Mor, esquivei-me como uma sombra pela porta lateral. 

Ainda hoje estou convicto de que ninguém reparou.

Saí dali e todo o meu corpo era fogo. Fui submetido a uma prova que nem mesmo O Magno na sua batalha com o cunhado Maxêncio suportou. Mas esse levava a Cruz … E eu,  como ganharia as  batalhas futuras? Era necessário ter um sinal. Tomei o caminho do Ribeiro Souto, precisava de me refrescar; só parei em cima do pontão da presa que por acaso estava quase cheia; não me atirei à água porque não sabia nadar, mas ali fique a pensar, a olhar, enquanto o meu corpo e espírito iam adquirindo a normalidade; de qualquer modo, para mim, a procissão estava comprometida…!

Olhei então para a esquerda, a canada entre hortas, um caminho de cabras que vem lá do cabeço carvalheiro; olhei para a direita, o cascalhal, o caminho que vem da Eira até ao ribeiro; olhei o ribeiro que nada me disse; mirei o céu que ficou mudo e quase escandalizado por alguém tão insignificante ousar questioná-lo. Estava bom de ver, enquanto o outro, o Insigne, o Magno, o Maior, fora na sua suntuosa quadriga, ladeado por pretores e senadores, pela Via Ápia até ao monte Palatino, tendo por baixo Roma e as  límpidas e calmas águas do Tibre,  logo o céu, solícito, acorreu a prestar-lhe atenção e mostrar-lhe o sinal, a cruz, além de uma legenda num latim que Plínio, o Moço ou Séneca não desdenhariam in hoc signo vinces, eu, o parvus, o menor, ali estava, sozinho, no lugar mais baixo e, em vez da quadriga, duas pernitas, em vez da Via Ápia, caminhos de cascalho, em vez de um lindo rio, um ribeirote onde se faziam e despejavam todas as serventias…

Subitamente, da sinistra, da minha canhota, do lado da canada, surgiu uma velha toda vestida de preto. Já em cima do pontão, de dentro do lenço que lhe tapava toda a cabeça e a cara, olhou-me lá do fundo com olhos penetrantes, medonhos, de arrepiar, e, talvez por me ver assim quase a levitar-me, desenquadrado do mundo real, vociferou: – “Credo! … Abrenúncio!... Cruzes-Canhoto"!... Mais adiante pude ver que na mão direita levava uma lata, talvez com leite, e a mão esquerda ia livre, fechada, com o polegar entre o indicador e o médio, fazendo figas, e pude ainda ouvir nitidamente: "parvo". (parvus?)

Seria aquele o meu sinal? Ela falou, seria a minha legenda! Ela fez um sinal e insistiu nele… Seria aquilo a minha cruz? Fosse ou não, passaria a apresentá-la em todas as batalhas onde me metesse – nas peladinhas, ao pião, às canas, na bilharda, ao trinta e um, ao jogo das escondidas, ao fito e por aí fora… 

Mas cruz!... Que cruz?...
A da velha - uma figa, ora essa!


Constantino Braz Figueiredo