domingo, 24 de maio de 2009
O SEIXO E O SITE
A JUSTA SENTENÇA
Ao escrever o texto que se segue, A Justa Sentença,
tinha em mente que os destinatários de então que o lessem compreenderiam que se
tratava de uma ficção, alegoria pouco abstrata e nunca ao arrepio das
circunstâncias temporais e dos motivos que o originaram, pelo que seria para
eles, todos meus conterrâneos, de fácil interpretação.
Tanto assim será que, volvidos alguns anos e embora
visitado com alguma assiduidade, não foi manifestada qualquer estranheza ou
dúvida quanto a dificuldades de perceção. Contudo, tenho a certeza que será
impossível, a quem não conheça a raiz deste assunto, conotá-lo com qualquer
realidade, próxima ou remota.
Daí o conselho para que primeiro deve ser lido e interpretado o escrito anterior com o título:
Põe o Testo na Panela
.....///.....
A JUSTA SENTENÇA
Bolbolónia é uma pacata e quase insignificante metrópole perdida no interior do sistema montanhoso luso-castelhano. Um dia, sentindo-se vexada por acontecimento de certo modo irrisório mas que beliscou o moral da sua cumpridora e ordeira gente, achou que a ofensa, conquanto não fosse grave, não poderia ficar impune. Era preciso que a sua reputação, adquirida, caldeada e cimentada em tantos sofrimentos, canseiras e sacrifícios ao longo de séculos, no bom conviver e bem receber… e no bem visitar, não ficasse manchada por ligeiras nódoas, ainda que facilmente laváveis numa primeira água sem carecerem de ensaboadela. Contudo, alguém tinha de as lavar, e isso só poderia ser por quem derramou os pingos que sujaram o manto branco de virtudes que o povo tinha e julgava merecer.
Para o efeito, reuniu a assembleia dos doze membros que era constituída por uma representação de cinco elementos dos que tinham onde cair mortos; duas pessoas do conselho de anciãos, já muito anciãos; dois representantes dos mais honestos e respeitáveis e justos, à justa; um membro do núcleo de feiticeiros, que a ninguém enfeitiçavam; outro das bruxas, que eram puras amadoras naquela arte, mas bem representadas pela sábia sibila do pombal; e, por último, o representante dos zés-ninguém, que também não aspiravam a zés-alguém…!
Discutidos e ponderados os pontos da ordem de trabalhos, mais os
que posteriormente foram admitidos e aduzidos, foi decidido, por maioria
absoluta, o seguinte:
1.
considerando (…);
2.
considerando (…);
3.
considerando haver
matéria para agir, aja-se em conformidade;
4. considerando todos os considerandos considerados e
mais os considerandos desconsiderados, e dentro das prerrogativas que nos são
conferidas pela soberana soberania do povo, determina-se:
§ único – Imediatamente eleita pelos presentes, é nomeada
uma comissão composta por três elementos para que, dentre os maiores sábios de
sempre, cuja ética e insenção sejam universalmente reconhecidas, e que
uma vez escolhidos nunca possam ser postos em causa, nem pelos vivos de agora
nem pelos vivos futuros, se vá encontrar um juiz que julgue e lavre sentença, a
qual, para este povo, valerá e servirá de guia e conduta até ao marco-limite
dos tempos.
Eleita e sancionada pela assembleia, logo a comissão se
pôs a trabalhar e a estabelecer um plano para, dentro do que historicamente
se conhecia, encontrar quem estivesse disposto e fosse capaz de julgar
causa tão importante quão singular.
E então, lembrou o comissário mais velho, assumindo, descaradamente, a liderança do grupo:
- Babilónia é um local cujo nome é parecido
com o da nossa terra, e é sítio onde as civilizações são das primeiras e a
justiça foi pioneira e aplicada com grande sabedoria por Hamurabi e seus
seguidores.
Que não, argumentou o segundo na idade, porque a lendária
Babilónia era um campo de ruínas; a torre de babel caíra devido às guerras que
assolaram a região, ao muito uso e à falta de obras de restauro periódicas e
adequadas; já não existiam jardins suspensos porque as correntes e colunas que
aguentavam a suspensão enferrujaram, partiram e os jardins sucumbiram; e o leão
da rainha espiritual Istar, já instável, velho, coxo e sem juba, deixou-a sem
meio de deslocação; por lá, agora, só se for o Bin Laden… mas talvez na China –
milenar encontro de civilizações de todos os continentes que afluem às afamadas
curas e outros predicados das águas do Ganges, o Santo Rio, onde Buda era
grande e justiceiro e Confúcio fora conhecido como grande ético e filósofo.
- Talvez…talvez - retorquiu o terceiro comissário, que era o
mais novo - mas, se bem me lembro, Buda passou-se para o lado da Índia e foi
aliar-se aos hindus e aos nirvanas… e aquilo agora na china são todos
comunistas. Até o Mao já é bom… e estão mais amarelecidos que nunca… ademais
com as Olimpíadas à porta…não, não… não é conveniente…decididamente, ali não!
Porque não ficamos antes pela Europa que nos conhece tão bem e que nós tão bem
conhecemos, e tem sábios e História como os outros continentes? Por exemplo
Odim, guia guerreiro e espiritual dos teutónicos e povos escandinavos, senhor
do pensamento, espírito e razão que lhe chega pelo corvo hugin e da memória e
entendimento que recebe através do outro corvo munim, era bem capaz de
ser o mais certo para um julgamento deste cariz.
-Também não - tornou o primeiro - porque as Valquírias
ficaram aloiradas e espalharam-se por aí com uns fulanos… além do mais, os
vikings, que o deveriam transportar, deixaram de trabalhar, ou, quando muito,
fazem-no a seis horas por dia e quatro dias por semana… e os corvos emissários
da sabedoria, coitados, já nem grasnar grasnam… mas, deixem ver (chefe é chefe
e tem sempre o último trunfo ainda que seja na manga) … e se fôssemos à Grécia,
mãe da cultura, ciências, matemáticas e justiça europeias?
Olharam-se, entenderam-se e assentiram de imediato, e o
pensamento dos três comissários, em perfeita sintonia, velozmente voou para a
Grécia e para a sua antiga civilização.
Sem grandes dificuldades chegaram ao monte do Olimpo, na
Tessália. Uma vez ali, dirigiram-se, sem delongas, ao santuário de Epiro, sob a
égide de Zeus, onde foram recebidos por uma sacerdotisa, que, posta ao corrente
das suas pretensões e depois de consultar toda a documentação e exposição que
fora primorosamente elaborada até ao último detalhe, enviou como mensageiro o
oráculo de serviço para receber ordens de Zeus.
Este, que dada a sua condição de supremo dos supremos já
sabia de tudo, devolveu o oráculo à origem com a seguinte comunicação: fala
Zeus, que por minha voz fala… reúna-se um séquito composto por duas
sacerdotisas, uma deste santuário, protetora da haurição, da família de Hades,
guardador dos tesouros do subsolo, e a outra do santuário de Delfos, da
jurisdição de Apolo, parente próxima de Orfeu, o lírico musico e poeta, que
terão por missão fazer boa companhia ao réu e zelar pelo seu bem estar antes e
durante o cumprimento da pena; mais Nestor, meu jovem oficial, guerreiro e
argonauta, de patente inferior, muito ensimesmado, por vezes com discurso breve
e cheio de alegorias, demasiado abstratas que só hermeneuta profissional
consegue descodificar, que será suficiente para cuidar da defesa dos meus
emissários, além de lhe confiar as rédeas de Pégaso, o meu cavalo alado, que é
expressamente cedido para levar o séquito ao local onde será executada a pena;
e, por fim, Morfeu, lendário mito dos sonos e dos sonhos que fará de meu
relator e conduzirá, passo a passo, o réu ao cumprimento integral da sentença
conforme por mim, Zeus, foi lavrada.
Ficou dito. Cumpra-se ainda hoje!
- Morfeu?!... Morfeu?!... – escandalizou-se o mais novo dos
três emissários – Mas esse não é o que se deita com as cachopas e as faz sonhar
com chocolates? Depois, dizem que o tipo é todo ai-ai… ainda nos pinta a manta de cor-de-rosa!... Qual quê,
disse o mais velho. Ele deve ser do tipo bem ui-ui, senão elas não gostavam
tanto dele, e, ao que me dizem, gosta é de cores bem vivas, como o encarnado,
também tanto ao gosto do réu. Bom, diz o do meio: não nos devem preocupar os
seus gostos. Morfeu traz uma missão bem precisa, e temos a garantia de que a
cumprirá…aceitemo-lo, então, assim.
A primeira parte era esperar que o réu se deitasse
comodamente e com saúde e boa disposição na sua cama e que adormecesse
profundamente. E aí, sob o olhar atento das sacerdotisas, com Nestor, logo que
acomodou Pégaso, em vigilância permanente num espaço exterior, mas contíguo,
Morfeu entrou em ação, sussurrando-lhe: és escritor, um bom escritor, a tua
missão é escrever, então toma um caderno e uma caneta e acompanha-me que vamos
viajar…
Num ápice chegaram
a um monte onde se encontrava um monumento, tendo um letreiro do lado voltado
para nascente a dizer Bolbolónia e outro, a poente, com a toponímica
Medialónia, e uma escadaria mesmo ao jeito de quem se quer sentar. Sentaram-se.
Morfeu logo se apressou a lembrar-lhe a caneta e o caderno para que escrevesse,
dizendo: manda Zeus, e a obedecer és obrigado, porque, neste caso, exageraste.
Tomaste a parte pelo todo ou o particular pelo geral. Assim, escreverás três
páginas desse caderno sobre a gesta
do povo da terra que vês lá ao fundo e publicá-las-ás no teu próximo livro que,
pelo conteúdo, deverá ter garantia de sucesso. Assim Zeus o decretou!... Assim
se cumpra!... Não se fez rogado o réu – escrever era com ele…
Entretanto, lá
pelo meio já da terceira página, passa um homem com um burro sem carga e tira o
chapéu em jeito de respeito pelo monumento ou saudando quem estava sentado;
olhando o gesto, o escritor levantou-se e correspondeu. Diz o homem do burro
que desconhecia com quem falava: não tirei o chapéu a si, mas ao monumento.
Responde o escritor: essa é velha… também não o cumprimentei a si, mas ao seu
burro, ah, ah, ah… riu-se também o dono do burro e lá foi. De repente, começa a
insinuar-se uma leve aragem que vinha dos lados do acume da serra; mais um
pouco e forma-se a neblina que depressa se transforma em nevoeiro cerrado.
Ficou sem enxergar o que quer que fosse…
Nesse momento passou-lhe pelo corpo um ligeiro arrepio,
não de medo, não de frio, e, sem saber se de perto se de longe, se saía do seu
interior ou se vinha com a aragem, ouviu uma voz cavernosa, como saída das
entranhas da terra, a murmurar-lhe confiantemente e modo quase familiar: e esta Mané?... Mané não
conhecia aquela voz, mas não lhe custou admitir que era a voz de um fantasma…
perscrutou melhor o interior da névoa e pôde intuir que se tratava da sombra de
algum desgraçado, ainda cheirando a vinho e com marcas de agressões várias, e,
então, em sua memória, retorquiu: e agora Mané?...
Estavam os Manés quase a entabular conversa, quando, do Sul,
reaparece o homem com o seu burro… olhe, senhor que escreve, o meu burro chegou
ali e recusa-se a andar. Acho que simpatizou consigo e teima em levá-lo. Não quer
ir? Olhe que é o melhor transporte cá do sítio!
Diz o escritor: bom… uma vez que terminei o trabalho e
dadas as circunstâncias, boleia assim não é para desprezar, mas nós somos dois,
eu e este… Não percebendo o homem do burro que o escritor se referia a Morfeu, logo
respondeu: nós também somos dois!... Bom, vamos lá… O burro, via-se nele, ficou
todo contente e orneou qualquer coisa impercetível, mas reveladora de simpatia
(hin-hã), e pacificamente deixou que o escritor lhe trepasse para o dorso. Sabe,
diz o do burro, este é esperto: é um burro das arábias, foi-me oferecido por um
vizir quando me desloquei à Mesopotâmia, junto ao fértil Eufrates… aprendeu
algumas coisas durante o tempo em que conviveu com fundamentalistas talibãs,
numa cova onde você nunca iria e onde a palha escasseava… nem queira saber,
tive um trabalhão para o morigerar… o pior é quando o encontro em reflexão… aí
fica imperscrutável e nunca tenho a certeza se este seráfico crânio asinino prepara a evacuação de restos
fisiológicos não assimilados para os largar em lugar menos conveniente,
conspurcando-o, ou se está a perpetrar um atentado daqueles de fazer tremer o
universo!...
O burro,
arrebitando as orelhas, levantou a beiçola
superior e mostrou a dentuça
enorme, parecendo rir-se… tal era a felicidade que o invadia naquele
momento; e porque desconhecia que o atrevimento é diretamente proporcional à
ignorância, despejou, por sua vez, em
bom zurrar: hin-hã, hin-hã, hin-hã. Tragam toda gente, quero testemunhas; toquem
campainhas, repiquem os sinos, deitem foguetes… chamem toda a comunicação. Que
fique bem gravado no mar, céu, terra e ar… a tinta indelével… a ferro e fogo… que
sou o jerico mais feliz do universo! O que eu esperei por este momento! Se
um burro carregado de livros é um doutor, o que serei eu agora que carrego o Saber de todos os livros do mundo?
- Arre, burro!...
Levantou-se uma brisa mais consistente e todo o nevoeiro
se varreu, dando lugar a um dia soalheiro de soberba visibilidade onde se
podiam facilmente distinguir alguns pinheiros, as moitas, as carquejas e os
seixos brancos que parecia brotarem do solo; as lombas, os contornos das
serras e suas vertentes de fragas e carrascos com o horizonte a perder de vista. Lá ao fundo o povoado despertava para os afazeres quotidianos. E, como como corolário da natureza campestre, o brinde de um estridente e
mavioso trinado, como qualquer quebra-nozes tchaikovskiano, de um melro de bico
amarelo que os saudou do galho de um cachapeiro…
E o escritor, enquanto com a mão afagava o cachaço
inquieto do burro, mal disfarçando um sorriso de magnânima compreensão, mirou pela última vez o sítio que momentos antes abandonara,
de fantasma já não havia sinal, mas pôde ver um significativo conjunto de
coloridas mariposas, algumas ainda quase crisálidas, adejando em busca de
protagonismo e da fama de novo adiada, e, de si para si, comentou: ainda não
foi desta… a história ora contada não vos pertence…talvez a próxima… persisti,
pois, hoje, amanhã e sempre…sem desânimo!
Olhou agora mais
adiante, e…o que via? As paredes interiores do seu quarto com as persianas já
corridas e através das janelas a Ponta do Papagaio, em Arrecife; as ondulantes
águas do Oceano Atlântico marulhando a costa pedregosa da ilha… e a sua bela e
grave governanta, de ascendência romana, Vestal, como gostava de ser tratada, e
que, com um sorriso bonacheirão de confiança sabiamente adquirida ao longo dos anos que o vinha servindo, lhe dizia:
- Bom dia, dorminhoco, tem o banho preparado, vou já tratar
do seu desayuno… que tal a soneca? Deve ter sido muito boa pois há
pouco ainda sorria… Era, decerto, de bons humores…
– Era, de facto – disse, sorrindo enigmaticamente, o
escritor –, mas pela salutar vivência com burlescos e peregrinos doutores!...
Constantino Braz Figueiredo
PÕE O TESTO NA PANELA
Se, por estulta ingenuidade, algum dia tivesse esperança de que pela afetividade, crença e prática de ritos espirituais, ditos piedosos, alguém aplacasse a sua vaidade, autoestima e as próprias tendências predadoras, tão comuns e quase tão naturais no homem como a necessidade de procriar e de se alimentar, bastava este triste episódio do José Pires, vulgo José Júnior, mal equacionado e sofrivelmente desenvolvido, para me tranquilizar.
Tenham paciência; haja decoro!...
Tão bem cheira a tua sopaQue um fantasma vem por elaPra que não a coma todaPõe o testo na panela
UM TAL ZÉ MARIA (1)
Qual quê! … Além de não tirar os olhos de mim, à distância
de uns trinta ou quarenta metros, assestando o seu inseparável arrocho aos meus
olhos, quase furioso, berrou de novo: Salazar! Ó Salazar! … Estuga as patas!
Assim mesmo! E quando já me conformava com tão despropositada quão notável
alcunha, ele, ao perceber um misto de estupefação, ironia e mal disfarçado
gáudio nos semblantes da outra canalhada, meus companheiros de infortúnio, para que não restassem dúvidas e para
que constasse, avançou corredor fora com modos de quem vai fazer alguma.
Chegado a mim, desferiu duas valentes arrochadas nas minhas nalgas,
vociferando com superior exuberância: “És tu! Tu é que és o Salazar”!!!!...
Com apenas treze anos ia lá agora discutir com quem tanto
sabia…! Para mais armado daquela maneira!... Só seremos heróis se, tendo
consciência do perigo e por cuidada avaliação o desconsiderarmos, o atacarmos e
o vencermos. Se assim não for, o mais que seremos é estúpidos, embora por vezes
protegidos pela sorte! Neste caso, nem sorte nem ataque nem contra-ataque, era
comer e calar!
Mais tarde, aproveitando uns minutos que sobraram do frugal almoço, e vendo pelo ar do vigilante “redolho” que o momento era propício, enchi-me de coragem e, com a maior humildade que consegui, perguntei-lhe: “Ó ti Joaquim, por que me chama Salazar?” Para meu espanto, e meu bem, não se escandalizou, e explicou-me então que o meu falecido pai é que era o Salazar, porque era um homem que sabia como ele e discursava como ele. “Dava gosto ouvi-lo! E ninguém levava preso aquele sacana!” … Poças! Que elogio! Mas seria bem melhor se não me fosse custando umas boas arrochadas!
Assim, aos poucos, ia compreendendo por que
alguma gente mais velha tanto gostava de “molhar a sopa”. Mas o “redolho”,
caindo em si, e admirado por ter sido tão condescendente em dois ou três
minutos de fraqueza sentimental, logo tentou emendar o lapso, e batendo com o
pau na lata protetora de uma roda cremalheira, gritou: “mas isso era o teu
pai; tu não vales nada… Fora daqui, vai trabalhar e depressa senão levas com o
arrocho.”
Pois é, mas ao meu pai nunca ouvira contar o que quer que fosse
acerca dos seus discursos e das suas lutas; mesmo a minha mãe, da família Gil
do ramo do Ourondo, quando o desposou já isso tinha acabado e ele já era então
o Geral – o capataz dos capatazes; cargo aliás que manteve por
pouco tempo (três anos), pois quando eu nasci já o não era, porque a politica
tinha mudado e a companhia parece que tinha feito as pazes com a “Situação” e
com a Igreja e o meu pai, diziam, era um comunista.
Talvez não fosse, pelo menos não estava filiado em qualquer
organização política, e quando alguém se atrevia a chamar-lhe isso logo se
apressava a responder que não, porque não tinha categoria nem classe para o
merecer… Deveria ser somente coisa da sua personalidade e consciência de
classe, porquanto, não raro, ainda se ouvia dizer: “Trabalhador que se preze,
enquanto tal, deve ser sempre contra o chefe, contra o patrão e contra o
governo”, explicando, logo de seguida, que a palavra contra deveria
ser entendida no sentido exclusivo de em oposição ao…
Os últimos cinco ou seis anos de vida passou-os já doente,
completamente rebentado pela sílica adquirida atrás de um martelo
pneumático. Triste, muito triste e sem vontade de falar de quase nada. A
única coisa de que o ouvi gabar-se, com certo orgulho, ao coberto, para os
vizinhos amigos, foi de que fora ele quem fizera a minita da
selada, à fontanheira, que alimenta o tornadouro com um caudal que nem os
ribeiros. A sua biblioteca era uma gaveta bem fechada com apenas três livros: O
Capital, de Karl Marx, O Imperialismo, de Lenine e – pasme-se! – O Homem Que
Ri, de Vítor Hugo. O que fazia ali este livro? Li-o (ao que me lembro era sobre
saltimbancos) e da sua leitura não encontrei coisa que se
identificasse com a doutrina que era atribuída ao Zé Maria. Quanto aos
outros, que nunca li, minha mãe deve tê-los queimado com medo da “tosse
convulsa” salazarista e cerejeirista.
Como se infere do exposto, querer contar coisas que não
vivi, de uma pessoa tão íntima e de quem nunca as ouvi, torna-se um pouco
frustrante. Mesmo assim, já que os seus conterrâneos apenas davam crédito e
valor a quem tinha e dizia ámen e ele apenas
tinha o que era ou o que tinha sido e a
palavra ámen não era do seu vocabulário, encontrei, por lá,
mas de outras terras, alguém que sabia algumas coisas. Além disso, há testemunhos
escritos por pessoas insuspeitas que dão bem conta da sua inigualável luta e
contributo para o progresso e bem-estar da vida mineira. Por exemplo, com a
devida vénia aos autores, embora com uma certa crítica por não terem recolhido os
elementos no cerne, transcrevo algumas passagens do livro “A Guerra da Mina”,
de Fernando Paulouro Neves e Daniel Reis:
Página 13
“Procurámos ouvir da boca dos mineiros mais antigos e dos
mais jovens, quantas vezes seus filhos, algo dessa história de lutas, desde o
dia em que um mineiro de nome Zé Maria, chamuscado nas escaramuças que
precederam a Guerra Civil de Espanha, subiu a uma lapa e arengou aos mineiros
levando-os a arrancar para a jorna de oito horas, até às lutas sindicais…”
Página 46
“António Lopes, do Sobral de S. Miguel, a poucos quilómetros da Panasqueira. Chegou à Mina no dia célebre em que “um gajo de S. Jorge chamado Zé Maria” levou os mineiros à greve pela jorna de oito horas.” (…).
Página 48
– (…) “Trabalhava-se dez horas por dia. Depois veio um gajo de
S. Jorge, chamavam-no Zé Maria. Veio de Espanha. Ele já sabia daquilo do
sindicato. Era sócio e tal. Andou lá a trabalhar muito tempo. Depois chegou aí
e viu que isto ainda era as dez horas. (…) foi mesmo no dia em que vim pedir
trabalho que eles andavam com a greve. O gajo convidou o pessoal para a
revolta. Fez um discurso ali na Galeria Cinco, outro no Escritório. Estava cá o
Regimento 21 da Covilhã e veio a Infantaria de Castelo Branco. Eram dois
Regimentos só para ameaçar o pessoal.
O Diretor trazia os ordenados atrasados seis meses. A
gente quando começava a trabalhar andava seis meses sem receber e só ao sétimo
é que recebia o primeiro. (…) Pois esse tal Zé Maria entrou aqui. Falava como
um polícia, o gajo. Olhe que ninguém o prendeu, não. Fez o discurso ali na
Galeria, fez outro nos Cambões. Subiu para cima de uma fraga, estava ali tudo
cheio de gente, tropa e tudo. Tudo junto a ouvi-lo. (…) Depois dali foi para a
Córrega Seca, fez a mesma coisa. A tropa foi-se embora e o Diretor, à semana
seguinte, pagou logo três meses. Na outra semana pagou dois. (…) Sabe o que é
que fizeram a esse tal Zé Maria? Puseram-no de capataz-geral.”
Pelo que testemunhas oculares me contaram, um certo dia,
acho que no discurso da Córrega Seca, tinham improvisado um palanque destinado
aos promotores e mentores da greve; todos de pé – não havia direito ao luxo de
mesas e cadeiras, microfones e altifalantes; era puxar pelos pulmões que, nesse
tempo, felizmente, ainda davam para tal….
Abria ele então o seu discurso, gritando à multidão: –
“Mineiros!... Povo!... Militares!... Senhores Diretores”... eis senão quando,
do seu lado, de supetão, surgiu um companheiro da direção da luta e, em tom de
voz e aspeto sério e convincente, diz: “Alto! Alto! Interrompo… Os homens tiram
o chapéu e as mulheres ajoelham, e podem acreditar que tudo o que o Zé Maria
disser é verdade e nada mais que a verdade. Podes continuar”. Perpassou então
pelo auditório um zombeteiro murmúrio, um sorriso de cumplicidade e de
tolerante compreensão pela brincadeira que lhe foi proposta, porque,
realmente, de brincadeira não passava e apenas serviu para descontrair os menos
afoitos…
… e descontraída e afoitamente continuou o tal Zé Maria
… e de que maneira!...
O tal Zé Maria (José Maria Figueiredo) nasceu em Cebola;
fora para as Astúrias onde trabalhou em minas durante alguns meses, mas vários
anos antes da Guerra Civil de Espanha. Faleceu a 2 de Março de 1949, no
hospital da Covilhã. Tinha cinquenta e cinco anos. Deixava onze filhos todos
nascidos e criados em Cebola… eu sou o sétimo.
Constantino Braz Figueiredo
Q
O INSIGNE E O INSIGNIFICANTE
Taratata… Boomm!... Buuum!... Era a alvorada ao alvorar; o alvoroço ao alvorecer! Não estrelejavam foguetes… não havia ainda fogo de “lágrimas”, não havia qualquer espetáculo que desse gozo, visual ou sonoro – só barulho estrondoso, incomodativo, para gáudio dos incautos mas prejudicial à saúde quer dos incautos quer dos sensatos; uma trovoada pirotécnica ruidosa, sem sentido, e sem justificação, a não ser que se quisesse mostrar aos anteriores mordomos que foram suplantados, vencidos, que este ano é que sim, que este ano é que iria ficar na memória de todos!...
E dentre os garotos, também eu, o Constantino, me perfilava na primeira linha na intenção de apanhar mais que os outros, já que esse era o desafio a que todos se propunham. Afinal as canas não tinham qualquer préstimo, a não ser o orgulho de as contar no final e ver que se tinha sido dos primeiros na “colheita”.
A essa hora já a filarmónica se preparava, à ponte, para dar início à sua marcha matinal pelas ruas do povoado, tocando sem desfalecimento, e só parando de vez em quando, nos largos, para um ligeiro mata-bicho oferecido por prestimosos confrades! E os garotos – sempre os garotos –, depois das canas, lá iam atrás da Banda, em bandos, alegres, saltitantes, ao toque dos “granadeiros”. Ao passar-se à Cruz da Rua, alguém da família “pedôa” me chamou: “Garoto!” – Garoto?... garoto era comigo… – “Faz-me um recado, vai...”
Para além de ser utilizado como o telemóvel daqueles tempos – e era bom porque era rápido e eficaz –, também servia para se demonstrar que, em Cebola, por não serem capazes de pronunciar o meu nome, todos me tratavam por “garoto”. “A nossa gente”, por um defeito de pronúncia, parecia ter horror aos ditongos ou vogais nasais e, o pior, propendia para síncopes e apócopes, o que equivale a dizer que omitia sílabas no meio das palavras e desprezava as últimas ou as transformava em hiatos esquisitos; por exemplo, Covilhã era cvilhen, amanhã, amnhen. Comiam-se letras e até palavras quase inteiras – barriga cheia!... – o que, indubitavelmente, lhe conferia o direito de poder ser reconhecida como a gente mais letrada do mundo!...
Retomando a narrativa depois de cumprir a "chamada de telemóvel" com a melhor acústica deste mundo – que eficiência!... Qualquer dia era melhor dizer que tinha a bateria descarregada…! –, ainda fui a tempo de apanhar a Banda antes da Eira.
Como sempre, a Filarmónica fez uma pausa à Eira, e pôde reparar que o coreto levava os últimos preparativos, entre outros, a colocação de bancos compridos trazidos do Clube, onde os músicos se iriam sentar para abrilhantar a tarde de quermesse e vendas de bugigangas, licores e artefactos, e extasiar os ouvidos de quem gostasse de boa música, conquanto fosse proibido dançar nas festas de caráter religioso, pelo menos nos espaços reservados para as manifestações pagas pela organização dos festejos. Seria só por soberana imposição, indiscutivelmente acatada, do titular do cargo paroquial? Mais tarde teria a confirmação! Mais tarde… Por agora bem via os corpos e pés de moças e moços a mexer inquietos, sedentos de um bailarico! – Olha…que se “lixasse” o padre... vamos dançar à Costa ou ao Rodeio, é só arranjar um tocador nem que seja de gaita de beiços!
Retomando a pausa da filarmónica na Eira, que já dispersava, chegou a hora de todos se aprontarem para a missa, que seria solene, com sermão e cantada por mais de um sacerdote, com acólitos, filhos da terra estudantes em seminários, promissores padres, mas todos ou quase todos malogrados nesse suposto desiderato. Mas ali não falhariam. A propósito, lembro-me que tendo feito a quarta classe no ano anterior, com dez anos e apenas com três anos de escola, lembro-me dizia, que na altura se esboçara um movimento liderado por um senhor que morava perto do adro, para, também eu, Constantino, ir para o seminário. Hoje acho certa graça, mas, naquele tempo, fiquei apavorado e fugi. Andei um dia perdido, escondido, sem comer, por aquelas serras do picoto… e o movimento abortou… Antes isso do que falhar!
Fui a casa e vesti uns calçõezitos lavados, já com remendos, mas lavados, uma camisita… “borrei” os olhos com água, tirei os “moncos” do nariz, esperei o toque dos badalos percutindo os sinos e saí para a festa.
A igreja estava a abarrotar com a gente da terra e muitos visitantes, maioritariamente dos lugares anexos à Sede da Freguesia; não havia bancos, pelo que ou se estava de joelhos ou de pé…a escolha era simples. Os altares estavam esmeradamente arranjados e cheios de verdura e rosas e cravos. Havia cadeirões almofadados e forrados com tecido purpurado e carpetes e passadeiras junto ao altar-mor com continuação pelas escadas até ao púlpito que ficava à esquerda da nave, na ótica dos fiéis.
Adrede fora contratado um padre jesuíta que tinha fama de ser bom na matéria. Esperava-se que o fosse realmente, porque do seu sucesso dependia em grande parte o sucesso da Festa e o êxito da organização. Logo que o pregador se levantou do seu cadeirão, encarou os fiéis com a natural sobranceria e à-vontade de quem está muito habituado a estes eventos. Pelo que me lembro – estamos a falar de coisas vividas há mais de setenta anos –, era um homem baixo, entroncado, olhava bem de frente, e pregava… bom… subiu as escadas, não a correr como o vaidoso político para mostrar saúde (essas cabotinices ridículas!), mas vagarosamente, como alguém que está seguro de que o tempo joga a seu favor, já que a ansiedade cria nas pessoas o suspense psicológico sempre favorável a quem as enfrenta.
– "Constantino"…
– O quê?!!!... Agora é que foram elas… O padre está a chamar-me? Não pode ser! Como me conhece ele? Por outro lado, cá não há outro… Alguma coisa se passa… e com o coraçãozito em batimentos desordenados, para cima é que não olharia mais! Comecei a escorregar por mim abaixo até quase me sumir, escondendo-me atrás de alguém mais alto. E ouvi de novo:
– "Coonns-taann-tiii-no… esta palavra que quase se canta"…
– Canta? Mas canta como? Querem ver que ele põe toda a gente a cantar o meu nome!... Havia de ser bonito! Se fosse há uns meses haviam de parecer os blues em Stanford Bridge a entoar o “Gouzé Morinho”! … Comecei a ficar inquieto, mal disposto, a suar, com as orelhas fumegantes…o diabo!... Consegui levantar os olhos, a medo, para as pessoas que me rodeavam… ninguém me prestava atenção. Porquê? Era simples: porque não conheciam aquele nome; aquele ranhosito ali era o Cstaten, na melhor das hipóteses, portanto nada tinha a ver com aquilo…! Volta o pregador: – "Constantino Magno"…. – Magno? Magno-manhoso? Magno-mágico? Mágico-bruxo, bruxo-fogueira… Será que o Tribunal do Santo Ofício tinha decretado que fosse queimado vivo? Querem ver que me vão assar!!! – Era o que mais faltava… bem me bastava já o revés sofrido na apanha das canas! … Mas o jesuíta numa voz bem clara e sotaque galaico-duriense ou luso-castelhano, ou espanholês ou talvez em portunhol, tornou:
Constantino Braz Figueiredo