segunda-feira, 25 de maio de 2009

UM TAL ZÉ MARIA (2)


 

UM TAL ZÈ MARIA (2)

 

 

Este simples escrito tem por finalidade homenagear um mineiro que nos deixou, que me deixou, faz hoje, dia dois de março de dois mil e nove, sessenta anos. A narração é de quando já a silenciosa sílica ultimava os preparativos para consumar os seus desígnios. E é apenas uma lembrança e oferta do tio aos seus quarenta netos.

 

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Por imposição de temporâneas realidades em circunstâncias adversas, a que obviamente fui alheio, vi-me tristemente excluído do ingresso natural aos estudos académicos regulares, secundário e superior. Digo natural porque em qualquer sociedade justa, onde houvesse dirigentes e autoridades autarcas, políticos e governantes com sensibilidade para as prioridades universais como sejam o interesse e o dever de zelar pela igualdade de oportunidades e do bem-estar das pessoas, sobretudo das crianças, seria curial e de bom juízo ver até onde poderiam chegar as supostas potencialidades daquele que, na nossa aldeia, até àquela data, fora consensualmente considerado o melhor aluno.

 

Mas a despeito disso, ou talvez por isso, não recordo impaciência para qualquer divertimento ou para comer o que quer que fosse com tal  desejo e ansiedade como a que me encorajava e impelia para um livro ainda que quase mendigado, porquanto, também e principalmente, jamais esqueceria o que a esse respeito, quando tornávamos da Covilhã do exame da quarta classe, ouvira meu pai dizer a pessoas que o felicitavam por ter dois “doutores” só de uma assentada, já que – admirava-se o povo – dentre tantos alunos,  escola cheia,  apenas três foram a exame e dois eram seus filhos, e o outro, um pouquinho mais velho, pertencia a  família tida por mais abastada:

 

– Era para estar contente – disse com um sorriso mesclado de orgulho e apreensão –, bem sei, e estou, mas não satisfeito. Porquê?... porque me preocupa o que irá ser deles no futuro, sobretudo do mais novo que tem apenas dez anos… só teria a ganhar se ficasse na escola por mais um ano… bem instei quem de direito para que assim fosse, mas não fui atendido…. Qualquer dia morro, eles não vão estudar, e depressa, atendendo à idade, se lhes apagará da memória tudo o que aprenderam.

 

Por instantes ficou concentrado com o olhar fixo num ponto que só ele via, talvez meditando sobre os sombrios horizontes pejados de armadilhas e incertezas, talvez prevendo a brutalidade dos escolhos que nos esperavam, talvez avaliando o tempo de vida que lhe restava, talvez olhando a carência das coisas básicas necessárias e essenciais à nossa subsistência, talvez para um futuro sem futuro, talvez…

 

Parecia ter-se esquecido que ainda quase se ouviam os foguetes comprados na Panasqueira, tendo botado três à curva da capela, depois de pedir para a carreira esperar, e outros tantos quando chegámos à ponte… Quando enfim voltou à realidade, recuperando o momento, encarou de novo os interlocutores, mas a sequência do seu discurso, saído do mais profundo do seu ser, já não era com eles… soava mais como um magoado protesto, traduzido num conselho, numa lição dirigida a nós, a quem o ouvia…  ao mundo! Olhava-nos então com um semblante onde o sorriso já se extinguira, severo, e sopesando parcimoniosamente cada palavra que, sem levantar a voz, pronunciava:

 

– Agora ficais por vossa conta. Acabaram-se as aulas e os professores, e se não continuardes a exercitar a tabuada, a leitura e a redação depressa tudo esquecereis e  este bonito dia não terá qualquer significado; será  apenas uma lembrança inútil… Doravante, tudo deve ser aproveitado para ler e escrever; se virdes um papel velho de jornal no chão, numa valeta, sujo ou não, qualquer papel com letras, apanhai-o e lede-o e fazei por entender o que diz… para vós não será interessante, mas pode tornar-se muito valioso, mesmo que seja só pela prática da leitura e interpretação; não desperdiceis a mais pequena oportunidade para ler e principalmente para ouvir os mais velhos, e segui, por imposição própria e nunca descurada nem desviada, os conselhos e ensinamentos do mestre: aprender, aprender, aprender sempre

 

Notável, este inlustre de Cebola!

 

A partir daí, tudo o que viesse à rede era peixe”, e o primeiro “peixe” foi nem mais nem menos que “Os Lusíadas” … Isso mesmo – os Lusíadas! Ainda não tinha doze anos quando o filho mais velho da minha mãe, o meu irmão Zé Gil, apareceu em casa com a monumental epopeia de Camões. Alguém lho emprestou com a condição e exigência de não o estragar. Assim, o Zé Gil, sempre cioso dos seus compromissos, imediatamente me preveniu de que ficava proibido de pescar aquela truta. Qual quê!... com um livro à mão, ali, limpinho, charmoso, apelativo, capa dura com estampa do autor, legendas gravadas…  ia lá agora apanhar papéis sujos do chão!?...

Era ele virar costas e logo eu entrava na "forja" onde o erudito ferreiro com amabilidade me acolhia e franqueava a sua portentosa obra, servindo de cicerone para que admirasse e compreendesse com inefável arrebatamento as "brônzeas oitavas",  produto final daqueles metais preciosos que aquecera em subida fornalha ateada com sopros de musas, tágides, ninfas e ventos de tempestades adamastóricas; que caldeara de História, estrelas, mitos e lendas, de amor, aventuras e desventuras; que moldara num mar bravo de onduladas bigornas com martelo dourado e flamejante turquês; a que deu contornos, forma e brilho com cinzel de reserva olímpica, destinada e limitada a si e seus pares , e que concluiu com têmpera em águas de vertidas mágoas e nos óleos dos cegos olhos da política de uma sociedade contemporânea de obscurante compreensão e magra indulgência.

Embrenhava-me então e devorava e adorava os versos, as estrofes ou estâncias, os dez cantos, a construção imortal! Embora não a entendesse muito bem, sentia-me, no entanto, grato e regozijava-me por ser um dos raros, um eleito a quem foi concedida tal graça, e só me lembro de pensar como é que alguém podia ser senhor de tal arte e sabedoria...!  E tive sorte acrescida já que era um exemplar editado com todos os cantos, enquanto, naquele tempo, o “canto nono”, aquele da Ilha dos amores…


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Toda banhada em riso e alegria,

Cair se deixa aos pés do vencedor,

Que todo se desfaz em puro amor.

 

Oh, que famintos beijos na floresta,

E que mimoso choro que soava!

Que afagos tão suaves! que ira honesta,

Que em risinhos alegres se tornava!

O que mais passam na manhã, e na sesta,

Que Vénus com prazeres inflamava,

Melhor é experimentá-lo que julgá-lo;

Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo. (*)

 

…, estava interdito no ensino liceal, daí que os livros aprovados fossem antecipadamente mutilados pelas editoras, de acordo com diretrizes governamentais salazaristas.

 

O segundo veio logo a seguir e foi lido a meias com um amigo, ao Rodeio, nas suas scaleras; líamos ao mesmo tempo porque o livro também não era seu e tinha prazo para o devolver. Era “A Rosa do Adro”, de Manuel Maria Rodrigues, escrito em 1870. Livros e conteúdos parecidos não eram… de todo... mas acho que me fez bem. Ao menos serviu para despertar a puberdade e imaturas qualidades e sentimentos que ainda se encontravam envoltos em manto de natural inocência, e muita ingenuidade para não lhe chamar ignorância…

 

Quem me dera amar um dia,

Ter amor, ter afeição.

Ser escrava, dar a vida

Por um terno coração.

 

Se tu queres amor, ó bela,

Eu te dou amor bem puro;

Se tu juras ser só minha,

Será belo o meu futuro. (**)

Notável, o Zé Maria… 

Não tinha quintas nem quintais; não tinha pomares, hortas e lezírias; nem courelas, oliveiras, matos e cabeços; não tinha vacas nem cabras; não tinha onde cair morto…, mas deixou-me por herança algo mais valioso que tudo isso: legou-me o interesse pelo misterioso e infinito universo sem marcos nem fronteiras, com horizontes a perder de vista. Planos espaciais euclidianos com seus axiomas e postulados, teoremas pitagóricos e azimutes cartesianos com pontos e coordenadas de orientação; admiráveis caminhos de beleza e de liberdade espiritual; vias e comunicações de excelência com sentido da verdade e honestidade, onde se pode circular sem poluir ou pagar impostos com toda a gama de veículos, cujas patentes dão por desejo,  paixão, razão, vontade  e  conhecimento; regatos e rios de ciências e experiências nos quais correm respeitáveis talentos e virtuosas sabedorias.

Tudo num baldio de floresta exuberante e repleto de frondosas árvores que eminente botânico metodicamente ordenou, classificou, catalogou, valorou e registou nos respetivos cânones, entre muitos outros, por Pitágoras, Galileu, Da Vinci, Newton, Einstein, Darwin, Espinosa, Shakespeare, Schopenhauer, Voltaire, Henri Bergson, Kant, Comte…,  cujas folhas são ricas e douradas patacas  perpétuas,  prenhes da esplendorosa luz dos génios, descodificada em caracteres configurando fórmulas, vocábulos, proposições… e lições; um éden adornado com flamejantes matizes de Rembrandt, Renoir, Marc Chagall, Gauguin, Michelangelo, Dali, Rubens, Picasso …, podendo, ao mesmo tempo, deleitar os ouvidos com sublimes arroubos imortais de Tchaikovsky, Wagner, Strauss, Verdi, Bach, Haendel, Mozart, Chopin, Brahms Um espaço de amplitude imensurável onde as sementes germinam, florescem e frutificam espontaneamente e que todos podem explorar e fruir e partilhar sem avenças nem desavenças.

Acima de tudo, este  Zé Maria, inculcou-me a cobiça do saber e as ferramentas para o satisfazer, assim como o imenso querer para com muito sacrifício e demais trabalho conduzir e educar os seus dois netos, esses sim, doutores, sem se deterem, qualquer deles, em repetições de anos ou cadeiras, desde a pré-primária, no colégio, até aos canudos das faculdades, coroados com dois bonitos chapéus de pós-graduação!

 Mas…ó senhores!...

Um homem como ele, naquele tempo, num meio que por razões óbvias lhe era hostil, rude, adverso; completamente desprovido de vivos horizontes sociais e intelectuais; isolado, criticado e sem qualquer escora de apoio no seio dos “ilustres”, para que chegasse a tal estado de ponderação teve de cheirar e sentir as fezes do mundo em que o mundo vivia. Teve de suportar em corpo e espírito dantescos flagelos morais; enfrentar enganos, desilusões, incompreensões, traições e covardias; conhecer a essência das suas causas, e possuir a força e o saber para calcar aos pés temores e preconceitos obscurantistas; repugnar sombrios e zelosos fanáticos ou inspirados sectários que desde a idade medieval, do tempo de Otão I ou do Sacro Império, barbaramente dominaram os povos.

 

Os mesmos que, depois, já nas planuras submissas, aos vencidos, reverentes e humilhados prometeram hipócritas recompensas para depois da morte em troca de cega obediência e serviços e sacrifícios e contribuições simoníacas, ou, em alternativa, ameaçando-os com  falsos e demagógicos castigos e sofrimentos eternos, rebuscados nas subtilezas da metafísica, abeberada nos tempos e nas ideias e escritos platónicos e aristotélicos, mas adulterada e burilada por sumas teológicas a jeito e preceito para os fins desejados, resultando em tão abstrata e duvidosa nos conceitos quanto intolerante e cruel na aplicação compulsória. 

 

E ter ainda a coragem para, arrostando com impiedosas vicissitudes físicas e materiais, conservar a sua intrínseca vontade, orgulhar-se do estatuto de arrogado positivista, manter a mesma atitude e desprezar o que parecia – e era, e foi – inexorável…

 

 

Constantino Braz Figueiredo

          (02/03/2009)

 

 

*   Camões – Os Lusíadas, canto nono, estâncias 82 (final) e 83

** Quadras colhidas no livro referenciado, citadas de memória de 60 anos

 

 






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