terça-feira, 30 de junho de 2009

Vamos ao Clube

Ainda sem grande esforço, puxo mais uma vez pelo memorial – memorial de memória nua, desprovida de quaisquer apontamentos ou testemunhos – que me parece inesgotável. Porém, nem tudo será, sempre, digno de ser contado, pelo que já vou optando pelo retraimento a fim de livrar eventuais leitores de assuntos inteiramente subjetivos, frívolos ou triviais, e também, tanto quanto possível, preservar-me do ridículo. De qualquer modo, quando se trata de estórias vividas pela comunidade cebolense, a que assisti, sofro e não contenho a tentação de as partilhar, ainda que a priori possam, mesmo assim, ser qualificadas de dispensáveis, sem interesse.

 Pois que o sejam!

 Conto na mesma!...

 Já não era desconhecida para a esmagadora maioria do povo de Cebola. Sim, aquela pequena caixa com ecrã que por magia, em direto, nos trazia as notícias, os espetáculos de variedades, as cantigas, o teatro, o folclore e o futebol como se lá estivéssemos na hora em que aconteciam, passou a ser tema de “converseiro” e entretém nos serões de sábado e tardes de domingo. A grande maioria tinha-a visto já durante a tropa, nas cidades que visitaram, nos clubes da Panasqueira e Barroca Grande, noutras terras das redondezas onde a eletricidade havia sido instalada com avanço quase secular, embora, essa eletricidade, a das Minas, a tivéssemos ali há muito tempo, a dois passos, ou a vê-la passar atravessando, em escandalosa provocação, o “nosso” cabeço carvalheiro.

 Que tristeza! Que mal sucedidos foram os autarcas de então; não tanto por falta de coragem, tenho a certeza, mas pelo cerceado poder reivindicativo, apanágio decursivo do jugo implantado pelos altos poderes instituídos!

 Mas chegou, enfim, também lá à nossa terra, a alta tensão com seus raios e coriscos. A princípio forçosamente imperfeita pela natureza da incipiência - as ruas mal iluminadas, escuras e com clareiras amarelas, vultos aparecendo e desaparecendo na noite e a continuação das casas alumiadas com candeias, velas e candeeiros a petróleo. Mas passados cerca de dois anos, já então com muitas casas iluminadas, o Clube incluído, caminho aberto para se instalar a televisão.   

 A televisão, com as sombras, a inevitável “chuva”, as riscas verticais, riscas horizontais, em scrool, e por vezes com o total desaparecimento da imagem, mas apenas com quatro anos de atraso em relação a Lisboa – vendo bem, se compararmos com outras coisas, nem era assim tanto tempo!...

 A eletricidade fora inaugurada creio que em finais de 59, e eu, por circunstâncias de força maior, não assisti aos festejos. Mas vi a chegada da televisão, e vi a curiosidade e o regozijo dos conterrâneos, talvez pelo convencimento de que já estavam a ser reconhecidos como gente preparada para ingressar nas tertúlias do progresso!… Para além das instituições religiosas, desportivas e culturais, de fazer inveja a muito bom povo das redondezas, já havia a carreira, o telefone, os correios, o carteiro, agora a luz, a televisão – a gente estava a subir na vida… Para onde ia então a caixinha de surpresas? Para o Clube, pois então… E mais outra – só mais outra – para o “t’Jorge”, Sebastião e irmãos, comprada pelos pais, pois claro. Mas era deles, muito particular… particularíssima.  Com todo o direito.

 E nós?

 Vamos ao Clube!

 Também nas grandes cidades como Lisboa, a esmagadora maioria das famílias, passados três ou quatro anos ainda iam para as coletividades, e enchiam os cafés só para ver televisão. Fui testemunha disso…. Só depois, pouco a pouco, foram pejando os telhados com os captadores de ondas eletromagnéticas, dando o triste espetáculo que ainda hoje podemos presenciar, ao ver as florestas de antenas sobre as casas dos bairros antigos. E o sinal deixava, também aqui, muito a desejar, pelo que cada um procurava sempre suplantar o vizinho com a última novidade desse indispensável requisito.

 Vamos ao Clube! À nossa Coletividade…

 Nada de vergonhas!

 É pra se ver!

 Lembro, a propósito, que quando era um garoto de cinco ou seis anos e estava com o meu irmão Alexandre (ele tinha mais quase cinco anos que eu, mas onde ele estava, por perto andava o Constantino) a ouvir um relato de futebol na loja do Pedoa),  de ele me dizer que “qualquer dia vemos o jogo, bola e jogadores num rádio assim”. “Como? – perguntei eu – O campo em cima do rádio? E os jogadores e a bola não caem”? “Não! – disse ele – Parece-me que não! Na América inventaram um rádio com um vidro à frente como um espelho que vê os campos e chega a todo o mundo”.

 Nunca tinha visto cinema e fiquei pensativo, algo baralhado!... Mais tarde soube que havia algumas diferenças. E a menor não era com certeza o convencimento instalado pela propaganda ocidental de que todos os inventos teriam de vir obrigatoriamente da América, mas não! Embora todas as potências com cientistas e tecnologia avançada tivessem contribuído para o grande sucesso, franceses, ingleses, alemães e russos começaram as emissões algum tempo antes dos americanos, os três primeiros em emissões experimentais e os russos, a partir de 39, já com emissões regulares.

 Agora ali estava ela, azadinha, no nosso Clube!

 E via-se, bastava olhar para o tal vidro da frente, o tal espelho…e ninguém caía, nem a bola fugia!

 E via-se!…

 Ainda com pouca qualidade porque as antenas difusoras – creio que as mais próximas eram as da serra da Lousã – não estavam tão perto como depois vieram a ficar, mas dava para enxergar, a duas cores, e reconhecer locutores pivots de noticiários e animadores e relatores de atividades culturais e desportivas como Pedro Moutinho, Jorge Alves, Igrejas Caeiro, Artur Agostinho… atuações de Simone de Oliveira, António Calvário, Madalena Inglesias,  Artur Garcia, o Max … filmes com o Vasco Santana, António Silva, “Ribeirinho”, Laura Alves, Beatriz Costa, Hermínia Silva, Milú… o teatro com Amélia Rey Colaço, José Viana, Armando Cortês, Jacinto Ramos… os “Serões para Trabalhadores”, as festas de folclore nacional e as marchas dos santos populares … o futebol do Eusébio, Coluna, Puskas, Di Stefano… Lá assistimos, em direto, às finais da taça dos campeões europeus  de 61 e 62 com o Benfica a vencer respetivamente Barcelona e Real Madrid.

 O Clube, nessa altura, tinha como presidente o sr. Tomás. Era um senhor que não era filho da terra. Trabalhava nos escritórios da Barroca Grande, casou em Cebola, onde passou a morar e, sendo de trato afável, era muito conceituado e respeitado. Daí que merecesse o cargo de presidente. Enfim, presidente do Clube era, também, por inerência, presidente da “caixinha mágica”! E ele assumiu mais esse cargo sem discurso nem embaraço…. Então, como bom administrador, porque a Instituição precisava de fundos para melhoramentos e equipamentos lúdicos, logo tratou de rentabilizar a novidade. Servindo-se de algumas cadeiras já existentes, arranjou mais uma data de bancos corridos, sem costas, parecidos com os da matança do porco, daqueles que faziam os lugares da “geral” no barracão do cinema do Corredouro, e vai daí montou uma plateia digna de um qualquer coliseu…

 Mandou colocar a televisão no palco, bem ao centro, em cima de um pequeno escadote dissimulado por um pano colorido que talvez tivesse sido colcha de seda ou de cambraia, ou modesto e desgastado cortinado de qualquer janela, e ele próprio se incumbia de a acender, encontrar o supremo sinal das ondas de modulação hertzianas, sintonizar as frequências e depois rodar o botão off para descanso noturno. Comutação de canais é que não porque só havia um. Que felicidade a dele quando tudo resultava e via a assembleia satisfeita com os espetáculos e que tristeza e aflição quando não a conseguia satisfazer por mais que rodasse os botões. Por vezes, acontecia que estava a passar um filme da estranja e ele olhava e via o povo aborrecido, então dizia que não conseguia apanhar a nossa e que tivessem paciência… que vissem o canal italiano, porque era o que, de momento, conseguia encontrar.

 A plateia era composta pelos sócios que nada mais pagavam além da quota mensal e pelos não sócios que pagavam a módica quantia de 2$50 (vinte e cinco tostões, dois escudos e cinquenta centavos) por sessão. Tanto como subir ao pedestal do Cristo-Rei, em Almada, por isso lhe chamavam o “papa 25, ao pedestal, claro! A princípio ainda houve uma certa relutância sobretudo por parte de algumas mulheres mais dadas à “salvação”:

 – Ó D’jazus, vás hoij à telvisen? – perguntava a vizinha como a querer arranjar companhia…

–Vo, Maria, mas-ëi mai log, depos de cuider du më Manel. Ma num së séi pecad…

– Num, num éi! Já perguntë o padr e el dix q’num era…. Olha, diz à Piadad s tamaem quer ire.

 O Clube tornava-se então o local de convergência das pessoas que vinham desde a Ponte aos Cabecinhos, da Abesseira ao Pombal. A plateia abarrotava de gente entusiasmada para ver os filmes portugueses, as cantorias e sobretudo o folclore popular.

 E num dia de maior expetativa, um domingo à tarde, quando se esperava grande animação, o Sr. Tomás bem rodava os botões do aparelho que, teimosamente, lhe fugia para outros comprimentos de onda; batia-lhe ao de leve com os nós dos dedos em cima, nos lados. Já nervoso, quase a agitava. Ouvia-se qualquer coisa imitando um ruído, mas, de folclore… patavina. Ele estava cansado, desanimado. O povo há muito que passara da impaciência ao desespero. Nesta altura reinava um contido silêncio por cumplicidade e empatia com a luta do presidente! Apenas nalgumas mesas postadas aos cantos da sala, ainda ativas com o dominó e a sueca, se ouvia o cuidadoso poisar das pedras ou o sussurrar dos jogadores de cartas. Não fossem os “brandos costumes” dum povo ordeiro e de tradicional conduta pacífica e qualquer pretexto poderia dar lugar a um motim! Levantou-se então uma mulher da fila da frente, decidida, mas mais nervosa do que corajosa, e todos os olhares se voltaram, pregando-se nela. A curiosidade vencera os poderes televisivos. E quando a todos pareceu que iria botar discurso ou liderar o descontentamento geral, apenas se lhe ouviu dizer com a maior brandura e simplicidade:

 – Ó snhô Tomás, ponha ranchos!

 Constantino Braz Figueiredo

 

 







Sem comentários:

Enviar um comentário