domingo, 24 de maio de 2009

O INSIGNE E O INSIGNIFICANTE

(Magnus et Parvus)

Taratata… Boomm!...  Buuum!... Era a alvorada ao alvorar; o alvoroço ao alvorecer! Não estrelejavam foguetes… não havia ainda fogo de “lágrimas”, não havia qualquer espetáculo que desse gozo, visual ou sonoro – só barulho estrondoso, incomodativo, para gáudio dos incautos mas prejudicial à saúde quer dos incautos quer dos sensatos; uma trovoada pirotécnica ruidosa, sem sentido, e sem justificação, a não ser que se quisesse mostrar aos anteriores mordomos que foram suplantados, vencidos, que este ano é que sim, que este ano é que iria ficar na memória de todos!...
 
Nos da terra e nos das redondezas…!
 
Mas na terra só por caridosa tolerância se aceitava este tremendo dislate e nas redondezas mal se ouvia o foguetório, se por acaso se ouvia mesmo com o vento de feição!... Aqui, nesta como em muitas outras aldeias, impunham-se ainda, soberanos, avitos símbolos que vão ficando no inconsciente do povo, manifestando-se sempre que haja ensejo e momento propício nos usos e costumes, e nas tradições  que  vão assegurando a continuidade comportamental coletiva, com direito a um lugar  consagrado e certo nos baús da posteridade. Contudo, mesmo sem ferir os valores éticos que há que preservar a todo o custo, algumas tradições deveriam ser revistas e ajustadas às realidades… O Povo é revolucionário, progressista! Se o deixarem, evolui naturalmente é inovador e criativo, todavia há sempre quem lhe meta a travanca, lhe ponha o freio, o modere!

Que desperdício!... 

Chchsss…. Buumm! …

Pois sim! Mas um garoto, qualquer garoto, quer de outrora quer de agora, não tinha como não tem problemas sonoros, quanto maior e mais duradouro for o ribombar dos canhões, melhor – mais foguetes, logo mais canas para apanhar. Assim funciona a lógica das idades e das coisas das idades! Somos garotos, vamos então apanhar as canas, antes que as apanhe quem lança os foguetes… mas como garotos, que na nossa terra não havia putos. 
 
 E dentre os garotos, também eu, o Constantino, me perfilava na primeira linha na intenção de apanhar mais que os outros, já que esse era o desafio a que todos se propunham. Afinal as canas não tinham qualquer préstimo, a não ser o orgulho de as contar no final e ver que se tinha sido dos primeiros na “colheita”. 

E eu, que em outras contagens nunca fora dos piores, desta vez, fosse por má colocação no terreno ou por deficiente avaliação do vento ou somente por erro estratégico, em dezoito, fiquei em décimo oitavo – o último. 

O dia começava bem…

A essa hora já a filarmónica se preparava, à ponte, para dar início à sua marcha matinal pelas ruas do povoado, tocando sem desfalecimento, e só parando de vez em quando, nos largos, para um ligeiro mata-bicho oferecido por prestimosos confrades! E os garotos – sempre os garotos –, depois das canas, lá iam atrás da Banda, em bandos, alegres, saltitantes, ao toque dos “granadeiros”. Ao passar-se à Cruz da Rua, alguém da família “pedôa” me chamou: “Garoto!” – Garoto?... garoto era comigo… – “Faz-me um recado, vai...”
 
Para além de ser utilizado como o telemóvel daqueles tempos – e era bom porque era rápido e eficaz –, também servia para se demonstrar que, em Cebola, por não serem capazes de pronunciar o meu nome, todos me tratavam por “garoto”. “A nossa gente”, por um defeito de pronúncia, parecia ter horror aos ditongos ou vogais nasais e, o pior, propendia para síncopes e apócopes, o que equivale a dizer que omitia sílabas no meio das palavras e desprezava as últimas ou as transformava em hiatos esquisitos; por exemplo, Covilhã era cvilhen, amanhã, amnhen. Comiam-se letras e até palavras quase inteiras – barriga cheia!... – o que, indubitavelmente, lhe conferia o direito de poder ser reconhecida como a gente mais letrada do mundo!... 

Então, Constantino era Cstaten, Csten ou Ten. Aproximado, não? Já era adolescente, jogava à bola no Estrela, e nas redondezas todos conheciam l’enfent terrible, mas esses tinham o caminho aplanado, porque, como o meu irmão Alexandre também jogava e era conhecido por Figueiredo, o Constantino, mais novo, não passava do “irmão do Figueiredo”, expressão de que gostava bastante, aliás; em Cebola, ao descrever-se uma jogada, dizia-se: “e aquele tiro do garoto à trave”… “e aquele golo do garoto”. Ou assim ou Cstaten! 

Porreiro! 
 
Houvera duas exceções e não me dei bem com qualquer delas: Uma, na catequese, devia ter beliscado o parceiro do lado ou tirado um macaco do nariz, quando o padre, que era o catequista, gritou sem prejudicar uma sílaba ou uma letra, “Constantino, se voltas a fazer isso, ponho-te lá fora e vais para o olho do inferno”, ao mesmo tempo que me atingia uma orelha com a sua “varinha mágica”; a outra foi na escola…estávamos na época mais crítica e mais dura do Estado Novo, com a Mocidade Portuguesa no auge… e eu, o Constantino, aluno da terceira classe, na hora do recreio, sentei-me à Eira, na soleira de uma das portas laterais da casa dos Batista, passa a professora e fiquei na mesma posição (fi-lo não por um gesto heroico, mas porque estava em protesto com qualquer coisa que na minha vida correra  menos bem) … Chegados à  escola, todos sentados, a professora também sentada, parecia calma,  pelo que me pareceu que a minha falta tinha sido relevada. 

"Esqueceu-se” – pensei. 

Qual quê!... Quando já aliviava do sentimento de culpa, vejo-a   levantar-se, agora com semblante denotando alguma adrenalina,  e impor: “Silêncio”… Então com todos respeitosamente calados – e eram noventa e nove… –, em voz bem timbrada, metálica e esganiçada, chamou: “Constantino Braz Figueiredo, à secretária”… “Sabem por que está aqui este menino?” Só ela e eu o sabíamos. - “Quando passei por ele – explicou para memória futura e cumprimento geral – não se levantou nem fez a continência regulamentar (a continência regulamentar era igual à da MP, à Mussolini – braço direito firme e bem estendido na horizontal), agora vai apanhar quatro reguadas para que lhe sirva de lição". E puxou-as bem, a senhora professora!

Retomando a narrativa depois de cumprir a "chamada de telemóvel" com a melhor acústica deste mundo – que eficiência!... Qualquer dia era melhor dizer que tinha a bateria descarregada…! –,  ainda fui a tempo de apanhar a Banda antes da Eira. 

As ruas estavam todas engalanadas com arcos ornamentados com artifícios de papel de várias cores, representando coroas, jarros, flores, candeeiros, fitas entrelaçadas em fole e serpentinas. Tudo lavorado por equipas de raparigas habilidosas. Ainda me lembro de me mandarem ir comprar o papel – sempre os recados –, “vai à loja do ti (…) e traz dez folhas lendas (lindas), quatro verdes e seis encarnadas”, respeitando a proporção das cores nacionais - 2/5 e 3/5, ou seja 40 e 60 por cento!

Chegado o dia, a hora, por todo o lado onde passasse a procissão, à Cruz da Rua, à Moreira, ao Terreiro, nas varandas e janelas, enfeitadas com a melhor gama de plantas, suas ou emprestadas por outras que moravam fora do percurso, e com as melhores colchas de cetim e toalhas de cambraia, bordadas com motivos florais e campestres pelas suas mãos ou pelas mãos pacientes das mães e avós, que bem as guardavam no fundo das arcas canforadas. Debruçadas nos parapeitos, esperavam então ansiosamente a passagem do cortejo, para atirarem ao padroeiro ou à santa festejada, em preito de homenagem, os confetes ou papelinhos (pisótes, como lá se dizia) e as pétalas de flores que tinham conseguido. 

Como sempre, a Filarmónica fez uma pausa à Eira, e pôde reparar que o coreto levava os últimos preparativos, entre outros, a colocação de bancos compridos trazidos do Clube, onde os músicos se iriam sentar para abrilhantar a tarde de quermesse e vendas de bugigangas, licores e artefactos, e extasiar os ouvidos de quem gostasse de boa música, conquanto fosse proibido dançar nas festas de caráter religioso, pelo menos nos espaços reservados para as manifestações pagas pela organização dos festejos. Seria só por soberana imposição, indiscutivelmente acatada, do titular do cargo paroquial? Mais tarde teria a confirmação! Mais tarde… Por agora bem via os corpos e pés de moças e moços a mexer inquietos, sedentos de um bailarico! – Olha…que se “lixasse” o padre... vamos dançar à Costa ou ao Rodeio, é só arranjar um tocador nem que seja de gaita de beiços! 

E lá iam… e os garotos também! 

O coreto era desmontável e, se bem me lembro, tinha por baixo uma portinhola com forte fechadura onde metiam forasteiros que se portassem mal ou quem se embebedasse e andasse a causar distúrbios ou a ofender a moral pública. Ali ficavam a dormir, ou a “curtir”, sob o alegre e agradável som da nossa grande Filarmónica.

Sortudos!...

Retomando a pausa da filarmónica na Eira, que já dispersava, chegou a hora de todos se aprontarem para a missa, que seria solene, com sermão e cantada por mais de um sacerdote, com acólitos, filhos da terra estudantes em seminários, promissores padres, mas todos ou quase todos malogrados nesse suposto desiderato. Mas ali não falhariam. A propósito, lembro-me que tendo feito a quarta classe no ano anterior, com dez anos e apenas com três anos de escola, lembro-me dizia, que na altura se esboçara um movimento liderado por um senhor que morava perto do adro, para, também eu, Constantino, ir para o seminário. Hoje acho certa graça, mas, naquele tempo, fiquei apavorado e fugi. Andei um dia perdido, escondido, sem comer, por aquelas serras do picoto… e o movimento abortou… Antes isso do que falhar!
 
Fui a casa e vesti uns calçõezitos lavados, já com remendos, mas lavados, uma camisita… “borrei” os olhos com água, tirei os “moncos” do nariz, esperei o toque dos badalos percutindo os sinos e saí para a festa.

 A Festa!... A Missa cantada!... O Sermão!... A Procissão!...

A igreja estava a abarrotar com a gente da terra e muitos visitantes, maioritariamente dos lugares anexos à Sede da Freguesia; não havia bancos, pelo que ou se estava de joelhos ou de pé…a escolha era simples. Os altares estavam esmeradamente arranjados e cheios de verdura e rosas e cravos. Havia cadeirões almofadados e forrados com tecido  purpurado e carpetes e passadeiras junto ao altar-mor com continuação pelas escadas até ao púlpito que ficava à esquerda da nave, na ótica dos fiéis.

A Missa começara…

E  chegou a hora mais ansiada:  a homilia majorada, o Sermão!

Adrede fora contratado um padre jesuíta que tinha fama de ser bom na matéria. Esperava-se que o fosse realmente, porque do seu sucesso dependia em grande parte o sucesso da Festa e o êxito da organização. Logo que o pregador se levantou do seu cadeirão, encarou os fiéis com a natural sobranceria e à-vontade de quem está muito habituado a estes eventos. Pelo que me lembro – estamos a falar de coisas vividas há mais de setenta anos –, era um homem baixo, entroncado, olhava bem de frente, e pregava… bom… subiu as escadas, não a correr como o vaidoso político para mostrar saúde (essas cabotinices ridículas!), mas vagarosamente, como alguém que está seguro de  que o tempo joga a seu favor, já que a ansiedade cria nas pessoas o suspense psicológico sempre favorável a quem as enfrenta. 

E, do espaço reservado à pregação, com as mãos abertas e  poisadas no parapeito do púlpito, forrado e bem colorido,  olhou calmamente o auditório, rezou em latim, benzeu-se e esperou que todos se acomodassem. Afastados os ruídos e já sem qualquer som incomodativo, pigarreou ligeiramente e com  voz de barítono timbrada e  bem sonora, fez ouvir:
 
 "Constantino"…
 
– O quê?!!!... Agora é que foram elas… O padre está a chamar-me? Não pode ser! Como me conhece ele? Por outro lado, cá não há outro… Alguma coisa se passa… e com o coraçãozito em batimentos desordenados, para cima é que não olharia mais! Comecei a escorregar por mim abaixo  até quase me sumir, escondendo-me atrás de alguém mais alto.  E  ouvi de novo:

– "Coonns-taann-tiii-no… esta palavra que quase se canta"…

– Canta? Mas canta como? Querem ver que ele põe toda a gente a cantar o meu nome!... Havia de ser bonito! Se fosse há uns meses haviam de parecer os blues em Stanford Bridge a entoar o “Gouzé Morinho”! … Comecei a ficar inquieto, mal disposto, a suar, com as orelhas fumegantes…o diabo!... Consegui levantar os olhos, a medo, para as pessoas que me rodeavam… ninguém me prestava atenção. Porquê? Era simples: porque não conheciam aquele nome; aquele ranhosito ali era o Cstaten, na melhor das hipóteses, portanto nada tinha a ver com aquilo…! Volta o pregador: – "Constantino Magno"…. – Magno? Magno-manhoso? Magno-mágico?  Mágico-bruxo, bruxo-fogueira… Será que o Tribunal do Santo Ofício tinha decretado que fosse queimado vivo? Querem ver que me vão assar!!! – Era o que mais faltava… bem me bastava já o revés sofrido na apanha das canas! … Mas o jesuíta numa voz bem clara e sotaque galaico-duriense ou luso-castelhano, ou espanholês ou talvez em portunhol, tornou:

 - "Constantino, esse amantíssimo e dileto filho de Santa Helena, esse grande Imperador Romano, que antes de uma batalha decisiva viu uma cruz no céu, e junto dessa cruz as palavras sagradas “Com este sinal vencerás”; Constantino Magno que pegou nesse símbolo sagrado e guiado pela fé venceu o seu rival e consolidou a sua posição de imperador. Constantino, O Grande, O Magnus, com o poder temporal que lhe fora conferido por Deus, pelo Édito de Milão, no ano do Senhor de 313, concedeu a liberdade aos cristãos que assim puderam abandonar as catacumbas e sair definitivamente da clandestinidade; Constantino… Constantino"…

 E continuou explicando a dicotomia entre o ser Insigne e Grande na Terra – Magnus – e o quanto se é, ao mesmo tempo, insignificante e pequeno – parvus – perante Deus! Terminada a sua pregação, viu que o povo estava completamente extasiado; completamente rendido às palavras tão sabiamente pronunciadas (a História, o sotaque e o “o nome que quase se canta” ajudaram bastante, convenhamos), desceu as escadas tão devagar como as subiu; perscrutando com o olhar os admirados e agradecidos fiéis, gozou a ovação que não podia ouvir  mas que o seu ego sentia. Entretanto, por agora, o insignificante Constantino, o Cstaten, já tinha a sua conta, e enquanto as pessoas se fixavam no padre fazendo respeitosas reverências à sua passagem em direção do Altar-Mor, esquivei-me como uma sombra pela porta lateral. 

Ainda hoje estou convicto de que ninguém reparou.

Saí dali e todo o meu corpo era fogo. Fui submetido a uma prova que nem mesmo O Magno na sua batalha com o cunhado Maxêncio suportou. Mas esse levava a Cruz … E eu,  como ganharia as  batalhas futuras? Era necessário ter um sinal. Tomei o caminho do Ribeiro Souto, precisava de me refrescar; só parei em cima do pontão da presa que por acaso estava quase cheia; não me atirei à água porque não sabia nadar, mas ali fique a pensar, a olhar, enquanto o meu corpo e espírito iam adquirindo a normalidade; de qualquer modo, para mim, a procissão estava comprometida…!

Olhei então para a esquerda, a canada entre hortas, um caminho de cabras que vem lá do cabeço carvalheiro; olhei para a direita, o cascalhal, o caminho que vem da Eira até ao ribeiro; olhei o ribeiro que nada me disse; mirei o céu que ficou mudo e quase escandalizado por alguém tão insignificante ousar questioná-lo. Estava bom de ver, enquanto o outro, o Insigne, o Magno, o Maior, fora na sua suntuosa quadriga, ladeado por pretores e senadores, pela Via Ápia até ao monte Palatino, tendo por baixo Roma e as  límpidas e calmas águas do Tibre,  logo o céu, solícito, acorreu a prestar-lhe atenção e mostrar-lhe o sinal, a cruz, além de uma legenda num latim que Plínio, o Moço ou Séneca não desdenhariam in hoc signo vinces, eu, o parvus, o menor, ali estava, sozinho, no lugar mais baixo e, em vez da quadriga, duas pernitas, em vez da Via Ápia, caminhos de cascalho, em vez de um lindo rio, um ribeirote onde se faziam e despejavam todas as serventias…

Subitamente, da sinistra, da minha canhota, do lado da canada, surgiu uma velha toda vestida de preto. Já em cima do pontão, de dentro do lenço que lhe tapava toda a cabeça e a cara, olhou-me lá do fundo com olhos penetrantes, medonhos, de arrepiar, e, talvez por me ver assim quase a levitar-me, desenquadrado do mundo real, vociferou: – “Credo! … Abrenúncio!... Cruzes-Canhoto"!... Mais adiante pude ver que na mão direita levava uma lata, talvez com leite, e a mão esquerda ia livre, fechada, com o polegar entre o indicador e o médio, fazendo figas, e pude ainda ouvir nitidamente: "parvo". (parvus?)

Seria aquele o meu sinal? Ela falou, seria a minha legenda! Ela fez um sinal e insistiu nele… Seria aquilo a minha cruz? Fosse ou não, passaria a apresentá-la em todas as batalhas onde me metesse – nas peladinhas, ao pião, às canas, na bilharda, ao trinta e um, ao jogo das escondidas, ao fito e por aí fora… 

Mas cruz!... Que cruz?...
A da velha - uma figa, ora essa!


Constantino Braz Figueiredo


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