sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Cebola nossa

A propósito de um infeliz post publicado em 25/11/2010, no Cebola.Net por um tal 7-8-9, soma 24, e por que não me é permitido ler comentários que porventura esse post tivesse merecido, sequer como arrogado cebolense de plenitude ter direito ao contraditório no referido Site, sirvo-me do meu cantinho para tecer alguns considerandos.

Assim,

1. O sr. 7-8-9 começa por dizer que se debruça sobre o assunto como quem se julga muito alto. Muito acima do assunto e dos que, coitados, se atrevem a estas veleidades. Não estará… embora saiba quem era, não sei quem é, mas, por mais que tenha subido desde então, nunca terá trepado às nobres alturas do Cebola. A humildade nunca nos estraga a vida…

2. Depois diz que sendo o correspondente do NC sabe do que fala porque na notícia que enviou àquele jornal dizia que foi a Junta de Freguesia que fez o pedido por “exigência” da generalidade dos cebolenses. E eu afirmo: foi de facto um grupo restrito! Foram os intelectualóides que venho apontando em vários escritos já publicados quem facilmente manipulou a Junta e lhes escreveu o pedido/exposição, já que, eles, os intelectualóides, eram os únicos que tinham alguns estudos. Daí que lhes fosse fácil manobrar, dominar e fabricar as opiniões, e mais fácil convencer a Junta, que não primava por grandes conhecimentos literários e administrativos (por vezes o Presidente até era analfabeto).

3. O nome s. Jorge da Beira foi consensual? Jamais o saberemos porque nunca, e disso tenho a certeza, foi perguntado ao povo. Como poderia ter ido outra proposta de ”nome para cima da mesa” se não houve mesa? Se não houve qualquer reunião magna? Se o povo nunca foi convidado a exprimir-se por votos, por aclamação ou de outro modo? O consenso foi apenas dos ditos senhores que prepararam a tramoia e de mais ninguém. Estávamos numa época em que às mulheres nem sequer era concedido o direito de voto para o que quer que fosse e os homens foram simplesmente desprezados…

4. Quanto às razões invocadas e aduzidas na exposição/pedido – afinal o motivo único desta burrice –, não passam de balelas que farão rir o maior circunspecto. Com efeito, tanta gente que andou por fora mas que, tendo orgulho na sua terra, sempre se marimbou para o que alguns mentecaptos pudessem dizer ou sorrir do nome Cebola. Aliás, mesmo cá em Portugal há centenas de nomes de povoações que têm nomes mais bizarros, mas cujos naturais, pela dignidade e amor à sua terra, jamais trocariam por outro.

5. Ao invés, faz realmente sentido a vergonha por que passava quem não tinha personalidade para sustentar uma brincadeira, afinal inócua. Esses tais senhores deveriam era dar graças ao seu padroeiro por serem de Cebola e os chamarem cebolas, senão chamar-lhes-iam abóboras!

6. Não sei, mas estranho que diga que “na altura – 1960 – frequentava o liceu da Covilhã”. Bom, o 7-8-9 (soma 24) nessa data tinha 27 anos. No liceu? Ninguém se admire por falar de abóboras…

7. Aqui e além, em escritos no meu blog e no Site de Cebola, tenho falado sobre esta matéria. Seguem-se alguns trechos de maior acuidade para melhor ilustrar as minhas opiniões.

Em “As fímbrias do Império”

(…) arrancado à nossa querida e incomparável Cebola – até se me parte o coração por a terem alcunhado com nome de um intrometido que lá não nasceu, nunca lá viveu e nem lá parentes teve… À serra não lhes foi permitido, e nem agora nem nunca o será, quer porque lá dorme eternamente o Cebola, o guardião, a quem a Terra durante séculos agradeceu o nome que seus honrados filhos dignamente e sem desdouro exaltaram pelo mundo, quer porque o nome da serra, que logicamente advém da Terra, tem registo nas organizações militares internacionais, e jamais haverá ilustres capazes de subverter a natureza da impossibilidade. Com orgulho mas sem apreço por quem levianamente lhe sonegou a mãe, responderá sempre, altaneira, por Serra de Cebola, ou Picoto de Cebola. E apenas sentirá saudades, grandes saudades, de ouvir de novo os maviosos andamentos quando o som emitido pelo badalar dos sinos se misturava com a bucólica e ressonante parafernália de guizalhos, chocalhos e campainhas das pachorrentas cabras que diariamente a visitavam, atraídas pelos seus viçosos rebentos da mais variada flora rasteira, onde predominavam tenros carquejais e erva de húmidos e frescos lameiros.(…)

(…) Assim, quando me perguntavam o nome da minha terra, imediatamente respondia com clareza e calculada altivez: Cebola. Era como se dissesse Lisboa, Paris, Londres ou Nova Iorque! Por vezes notava um ligeiro esgar trocista na cara de um ou outro, mas ao verem o orgulho e a dignidade com que pronunciava esse nome, e, em certos casos, o olhar furibundo com que os chispava, o assomo sarcástico logo desaparecia. Valeu-me que os iluminóides lá na terra ainda não tinham atuado (…) E – acreditem – nunca fui alcunhado de Cebola, o que, para mim, até nem seria ofensa! (…)

Em “O seixo e o Site”

(…) Entretanto, o Cebola, que no meu imaginário continuava vivo e que, como disse, se transformara no Seixo da Quebrada, logo por cima dos Cabecinhos, com a nova estrada a passar-lhe agora aos pés (?), em lugar dominador, de privilégio, já alvo pela erosão e pela idade, hoje tapado por moitas, carrascos e pinheiros, como se lhe tivesse crescido a barba e o cabelo, atento, tudo via, e acreditava, com orgulho, porque todos propugnavam para que nada faltasse, que o seu Povo tinha pernas para andar… e andava (…) até que um dia (…) conjurados, apareceram por lá uns pseudo-iluminados, de fraca personalidade, que por vergonha e por lhes faltar caráter, por serem incapazes de sustentar que alguém lá fora onde estudavam ou trabalhavam se risse por serem de uma nobre terra chamada Cebola, tinham tratado e conseguido eliminar o seu nome, esquecendo-se que são as pessoas ou as terras que fazem o nome e não o nome que faz as pessoas ou as terras (eu estava ausente a milhares de quilómetros de distância, mas mesmo que estivesse nada alteraria (…). Acharam que era melhor um nome importado das terras de sua majestade britânica, o patrono da Ordem da Jarreteira, trazido pelo Duque de Lencastre, que teve ainda o desplante de o impor, substituindo o nosso S Tiago, padroeiro de Portugal, por este intruso. Assim, em vez da vitamina C, a riqueza da cebola, ficamos com a vitamina J, de Jarreteira… ou da vitamina L, seu símbolo – uma Liga de jarretas.

Recentemente, o Cebola, como recompensa, foi, também ele, surpreendido pela magia das novas tecnologias, um vento de renovação que, sem complexos e sem pejo ou assombro, com vitamina C e não J, com determinação, alguém, com olhos de ver, graciosamente pôs ao serviço e utilidade do seu povo; e agora, já de novo com o talo ereto e florido, ri e rejubila por ter sido rebatizado de Cebola, o Seixo, perdão, Cebola, o SITE.”

Em “Detrás de serra”

(…) tais que se o intruso e adotado Jorge, um fantasma inglês, aceita por desconhecer e não compreender o intrínseco sentir e caráter sadio deste povo,  dado ser, também ele, um forasteiro, um “homem de fora”, de "detrás de (longinqua) serra",   o Cebola, o legítimo e verdadeiro pai da terra, o pai biológico, jamais aceitaria (…)

Constantino Braz Figueiredo

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O GAVROCHE DE CEBOLA




Sempre que a meio da manhã e a meio da tarde, diariamente, era libertada dos bancos escolares por um efémero espaço de tempo concedido por decreto, vulgo recreio, habitualmente fruído à eira, local mais adequado pela proximidade das escolas então existentes, a pequenada, contente por comum sentimento de alívio, descia as escaleiras de pedra em anárquico tropel, soltando, a um tempo, as bem timbradas e frescas vozes – agradável e cândido reboar que só tinha semelhança com vistoso bando de passarinhos, a chilrear em gratuita exibição campestre, saudando uma agradável manhã de florida e risonha primavera.

Jaime sabia com que ansiedade lá dentro se aguardava esse momento. Sabia-o, e agora, sob outra perspetiva, ainda o esperava como se fosse uma hora mágica! 
Como se também lhe pertencesse pelo direito que a idade justificava e o íntimo requeria, mas que precocemente perdeu sem o pedir por o terem empontado para a rua, onde paradoxalmente se viu só, "banido", numa 
terra de centenas de crianças de mais ou menos a sua idade.

Que estranho!... 

Em vez de natural orgulho por já se encontrar fora daquelas amarras, apenas tinha saudades do convívio, da comunicação inocente e salutar, da amigável cumplicidade nas descobertas, jogos e brincadeiras juvenis. Sentia-se triste! Eram os seus companheiros de quem fora obrigado a desligar-se. Ainda se lembra dos sábados em que os alunos, em marcha, iam para o campo aprender uns rudimentos de botânica e ele, sorrateiro, meter-se numa das filas, começar a marchar, para logo ser denunciado – “Sr. professor, este já não anda na escola”.  Atitude ingénua e sem maldade já que o “xiba” até era seu amigo.

Gorada a tentativa, voltava à eira!

Naquele carismático largo, a bola, as casas circundantes e seus donos, quem passava e as pessoas que iam à fonte – Jaime gostava do fontanário ao centro, de torre poliédrica, que era, ao tempo, o único monumento público civil com algum relevo – eram testemunhas e sofriam as consequências das correrias e chutos a solo contra aquelas paredes convertidas em prestimosas auxiliares para lhe devolverem a bola. Foi assim que, favorecendo o sinistro, depressa passou de destro a ambidestro, até o confundirem com um esquerdino nato.

– “O raio do garoto não sai daqui” …

– Ainda hoje é memória residual entre anciãos o episódio em que sua mãe, ao tomar o abastecimento de água na fonte para os seus afazeres caseiros, o repreendeu chamando-o para casa, o que levou alguém, aproveitando a ocasião, a animar-lhe as intenções: “Leve-o, leve-o, sr.ª Teresa, que já o não podemos aturar”! Mas esta, que detetou qualquer coisa depreciativa no tom da voz, retorquiu: “Ai é?!... Agora ficas! Joga agora que mando eu”!...

Tinha qualquer coisa de gavroche, embora seja abusiva a comparação com aquele garoto que Victor Hugo, seu criador, descreve em “Os Miseráveis” – Gavroche era um filho de Paris, das ruelas de Paris, deambulante dissimulado, conhecedor de toda a arte de viver do nada no libertino submundo onde se movimentava; descontraído e desenrascado mercê do treino intensivo adquirido nos sombrios esconsos da grande urbe, enganando, subvertendo e … conseguindo – menos desviar-se da bala perdida de um gendarme a quem fora roubar munições para os seus amigos amotinados e em escaramuças pós napoleónicas, ao passo que ele, Jaime, embora sadio, irreverente e traquinas, era de Cebola e Cebola estava a anos-luz de Paris, daí que, terminada a escola, só lhe restasse esperar e tirar partido do que a sorte, tato e instinto lhe oferecessem, porquanto, por proibição familiar e intrínseca convicção pessoal, estava impedido de pedir esmola ou favores e muitos menos de roubar, ainda que fosse fruta. “Quem rouba fruta logo rouba outra coisa se tiver ocasião”. E “Quem pede esmola perde a dignidade e a autoestima; pode-se aceitar sem pedir – dádiva não pedida é oferta, não esmola”!

Não demorou, pois, que alguém com mais posses olhasse e visse que aquele ladino garoto, que corria que nem um galgo sem qualquer proveito, poderia ser útil para uns servicitos. Jaime era prestável e de confiança, sobretudo discreto, e a partir daí, eram vários os recados e mandados, outras utilidades e préstimos para que constantemente era recrutado. Desde acarretar água da fonte para encher banheiras e outro consumo doméstico, levar o almoço ao campo e às minas aos burgueses que se davam a essas mordomias, ir pela serra afora registar cartas nos correios da Barroca Grande que era a estação mais próxima com esse serviço, limpar e untar o interior das grandes pipas dos tasqueiros em preparação para receberem a vinhaça que haveria de embebedar os homens da terra, e, mais que tudo, dada a aura de garoto que aprendia bem e depressa, atender os vários convites para dar explicações escolares a alguns menos vocacionados para a aprendizagem, que aliás consistiam apenas em ajudá-los a fazer os trabalhos de casa, ler e escrever cartas às gentes que necessitavam de comunicar com familiares e amigos ausentes…

Mas, uma vez…

… Jaime foi chamado a casa de duas senhoras completamente analfabetas para ler uma carta e escrever a resposta. O sobrescrito já estava aberto e foi-lhe presente o conteúdo; pegou na folha dobrada e logo viu que aquilo não iria acabar bem. Se aquelas nada sabiam, quem escreveu deveria saber pouco mais. Tentou uma, duas vezes, três… ficou desconfortável, a coçar-se, a mexer-se no banco, e palavra da carta … nada! As senhoras olhavam para a carta, para ele, para ele e para a carta… até que é dito: “Bom, temos de resolver isto mais tarde, por agora vamos escrever a nossa carta”, sendo de imediato colocado em cima da mesa o papel, uma caneta de pau e um tinteiro. Jaime animou-se. Pegou na caneta e começou a escrever o que lhe ditavam. Chegado ao fim, dizem-lhe: “Lê lá o que escreveste” . Obviamente que a carta foi lida sem qualquer dificuldade. “Mas o que ele escreve lê bem”! – admiraram-se. Então, uma delas, pegando na carta que chegara no correio da tarde e que não foi lida, pôs-se a mirá-la de alto a baixo, de viés, de lado, e sentenciou: “E se ela escreve bem… uma letra bonita como poucas”!

Com letra bonita ou com gatafunhos quase ininteligíveis, comunicar foi e continuará a ser a chave de entendimento de todos os seres vivos, uma necessidade insubstituível, que, entre os humanos, sofre constantes enriquecimentos evolutivos, e Jaime, cotejando hoje o patamar alcançado com as realidades de Cebola daquele tempo, onde quaisquer progressos ou melhoramentos se resumiam a arranjos de calçadas e outros pequenos benefícios de serviços e equipamentos, desde há muito conhecidos e esperados, porque “em tempo oportuno” anunciados pelos senhores mandantes e que chegavam paulatinamente, sem pressas nem surpresas, por isso encarados e recebidos com toda a calma e normalidade, logo concluiu que qualquer similitude é pura fantasia.

Desde o tempo dos grunhidos e riscos em forma de desenhos de coisas e animais nas cavernas, passando pelas transmissões com fumos a uma distância já considerável, ao aperfeiçoamento da palavra escrita, à circulação de barcos, carros e aviões, ao manar de notícias pela rádio e televisão, hoje, quase sem nos darmos conta, consentimos que deixaram de ser virtuais as imparáveis torrentes de informações e conhecimentos, porque novos caminhos e portas de relacionamento bem reais se abrem num simples estalar de dedos (um clic), chegando em catadupa, como se um formidável aluvião nos inundasse com ímpeto fulgurante e avassalador. De tal sorte que um “gavroche” de Cebola, já ancião, quantas vezes ou já não pode ou não consegue acompanhar tais ofertas, sobretudo as frenéticas tecnologias de cariz social, via Internet ou telemóvel, como os SMS, mails, as transmissões de fotografias e filmes particulares, as possíveis videoconferências profissionais ou familiares, a participação adequada nas redes sociais Twitter, Facebook, Instagram e outras, num mundo que encolheu, em suma, e nada mais é longe…


Constantino Braz Figueiredo

sábado, 25 de setembro de 2010

Em que pensas, José


Meninos… à lição


Em que pensas, José?

“Penso, logo existo”

Em 1637, com este enunciado no seu “Discurso do Método”, Descartes instituiu a dúvida, a perplexidade perante as incertezas que dominavam a humanidade, um estado de espírito cético e existencialista, tão incisivo e profundo que chocou os intelectuais de então, logo se espalhando pelo mundo. Indiferente e soberano, desafia o tempo, a sabedoria, todos os conhecimentos e dimensões, e viverá enquanto o homem for homem e conservar essa essência com os predicados que, lenta mas irreversivelmente, foi adquirindo e conquistando à natureza.

Realmente, interrogou-se Descartes, porque pensa o Homem? E responde a si próprio: certamente porque duvida!... E se duvida, pensa. E se pensa, existe; ou, dito inversamente, o homem sabe que existe porque pensa e pensa porque duvida. Uma coisa tão importante e de tal simplicidade até se torna chocante! Com ligeireza, até poderia ser tomada por uma lapalissada. É como dizer que se a é igual a b e b é igual a c, as três grandezas em nada diferem – a é, pois, também, igual a c.

Retiradas das páginas de motores de busca, sapo e google, aqui se mostram fotografias de pensadores, mas nem todos eles terão esse atributo, longe disso; também não se incluem todos os que o são, porque numa breve pesquisa não foram encontradas fotografias de figuras que demonstrem essa propensão. Se, com isto, ferir alguma suscetibilidade, é só dizer e logo desaparece daqui; por outro lado, se houver alguém conhecido, natural de Cebola, com uma foto idêntica, desde que obtida anteriormente, e quiser incluí-la sem pejo de se misturar com macacos e burros, basta seguir os passos normais.

São portugueses, bem conhecidos, os da primeira linha, também os seguintes, depois altas figuras intelectuais, poetas e escritores de elevado gabarito, e vários laureados com o Prémio Nobel da literatura, da física, química, medicina, economia e da paz. Ainda símios ou primatas, nossos antepassados que convém respeitar, sem esquecer os simplórios burros, de particular simpatia, que também pensam, a fazer jus ao popular dito “a pensar morreu um burro”.

Aliás, é velha a história deste aforismo:

Diz-se que o tal burro morreu a pensar quando, depois de muito trabalho, cansado, cheio de fome e de sede, já mal se segurando nas quatro, encontrou um balde com água fresquinha e outro com forragem da melhor, mas ele que tinha precisamente tanta sede quanta fome, ficou indeciso sem saber que balde atacaria primeiro. Se o do comer, morreria de sede; se o da água, morreria de fome – equação demasiado complicada para um burro resolver por si… Então, jumento duma figa, asno d’um raio, em que ficamos?

A indecisão foi-lhe fatal…

Contudo, gosto mais de acreditar e privilegiar outra asserção. A pensar morreu um burro porque o povo sempre que lida com alguém pouco expedito, apático ou falho de iniciativa logo o pejora de burro, e então quando esse alguém, dito burro, pelo seu querer, à custa de muito trabalho, com perseverança, sai das trevas da obscurante letargia mental e se atreve a pensar, simultaneamente desaparece o motivo por que era assim tratado. Logo, enquanto o burro que havia em si morreu, um homem nasceu!... Por isso eu direi enquanto me for permitido – “a pensar morreu um burro” porque aprendeu… a viver!

A fim de satisfazer possíveis curiosidades, aqui deixo os nomes das figuras expostas, unidas pela mesma característica: a pose meditativa.


Em cima, um burro, The Teacher.

A seguir

José Mourinho, Constantino (o tal de Cebola), Eça de Queiroz, Prof Marcelo Rebelo de Sousa, Miguel Sousa Tavares.



Não consegue chegar lá… fica a meio. Depois, fecha a mão e encosta. Como um símio, pois claro! Vacilou foi quando teve de enfrentar a França e o Sarkozy… Defendeu-se bem mas, embora tenha um invejável poder de encaixe, como demonstra pelo esfregar da pestana, não lhe auguro nada de bom. Ainda o veremos à frente duma caravana de ciganos!


Olha, olha! Que faz você aqui, homem? Não estará deslocado neste post? Terá alguma conotação com os acima expostos? Só os resultados poderão responder, n’é?… Que respondam então bem rápido e depois logo vejo se fica… Por agora, é preciso é tranquilidade!



Andará o primeiro à procura de salvação? Quem o absolve? Por mim…Ámen.


Nietzsche, John Dewey, (filósofos); Paul Eluard, Victor Hugo, Rimbaud (escritores)



Alberto Morávia,, Garcia Lorca, Juan Ramón Jimenez (escritores)



Sinclair Lewis, Salvatore Quasímodo, Grazia Deleda, Eugene O’Neil, Paul Sabatier, François Mariac (prémios Nobel)




François Bernaert, Sir Aust Chamberlain, Aun San Suu Kyi, Peter Grümberg, Ichiro Tomonaga, Barack Obama (prémios Nobel)


Pierre Curie, Madame Curie, Louis de Broglie, Vitaly Lazarevich Ginzbur, Robert Koch, (prémios Nobel)



Ilustres desconhecidos


Incógnitos


Outros Macacos.

Atente-se na concentração daquele profissional da informática, um internauta da primeira linha. Ainda o apanhamos no facebook a desafiar outro expert na matéria, alguém que eu conheço e muito respeito, sem embargo do revanchismo bem evidenciado em retaliações inconsequentes por motivos de lana caprina... Não me importaria, se dominasse a ciência, de arbitrar, no espaço sideral, este épico match - um singular duelo de titãs, esgrimido apenas com bytes, chips, bananas e amendoins!...



“O pensador”, de Rodin.



 

Com todo o respeito pelo artista, e ainda que em contraciclo com a opinião generalizada dos doutores do ramo, parece-me mal conseguido o protótipo de pensador. Repare-se na posição, pouco ortodoxa, forçada, desconfortável e inestética do cotovelo direito em cima do joelho esquerdo (!) segurando o maxilar.

Aliás, para um pensador nato, para um pensador que se preze, é condição necessária uma mesa para apoiar o cotovelo. 

Será possível que  Rodin  quisesse retratar alguém com dor de dentes mas, por opção retardada, ter-lhe-á mudado  o nome - quem sabe se para agradar a algum contemporâneo político influente, cacique local ou  eminência de elevada magistratura, porventura senhor de idêntica pose nos momentos de arroubos transcendentais em beatíficas  elucubrações, na procura de justificação por seus pares, em tempos idos, terem condenado a morrer na fogueira alguém mais esclarecido que corajosamente ousou desafiar as lúgubres e poderosas instituições com a mostra e prova insofismável  de fenómenos naturais -, resultando daí um grosseiro “pensador” imitando o respeitável e selvático macaco!

A menos que, mea culpa, esteja contida alguma mensagem absurdamente abstrata, avessa ao meu entendimento!...






Este, sim, este é um pensador nato! Em flagrante delito!...


E seria um “flagrante delito” se, na nossa essência, por que animais inteligentes, não mantivéssemos sempre como escopo a prossecução da Verdade e uma postura de incerteza perante premissas, factos, postulados e axiomas, ainda que a priori nos pareçam reais e inatacáveis. Duvide-se, duvide-se mesmo dela, da dúvida, contanto que no sentido espiritual ou filosófico do termo… Que nada de a confundir com exageradas, estéreis e doentias desconfianças, cumuladas com a carga imposta pela sentença popular, que manda “desconfiar até da própria sombra”.

A Verdade, apesar de ter um peso específico demasiado elevado para subir à tona, e ainda que sem bússola e sem vislumbre de porto seguro, não irá decerto soçobrar. Ao leme da jangada Dúvida, capitaneando, vogará, no espaço e no tempo, pelos mares encapelados do pensamento, na eterna busca de um farol.
 

Constantino Braz Figueiredo

domingo, 27 de junho de 2010


Detrás de serra


Sempre que em Cebola aparecia algum estranho procurando casa, com ares de quem se queria fixar, quase sempre negociantes de gado e correlativos, ou gente de ofícios como alfaiates, sapateiros e afins, o povo, curioso, naturalmente, perguntava-se:

 – De onde será?

E o mesmo povo respondia-se, perentória e invariavelmente – “de detrás de serra”.

 Detrás de serra! …

 Que melhor expressão para definir habitantes de algum lugar indefinido que ficasse por trás daquele enorme maciço bicéfalo, uma barreira natural quase intransponível que nos vedava o contacto visual com as terras que sabíamos existirem, mas a cujo acesso estávamos quase impossibilitados, a menos que um caso de força maior o exigisse ou a causa fosse digna de tal sacrifício? Bem ouvíamos falar, além das vilas e cidades, dos concelhos mais conhecidos, de aldeias e lugarejos como Aldeia das Dez, Alva, Avô, Coja, Covanca, Fajão, Fórnea, Loriga, Piódão, Souto, Teixeira, Varandas, Vide e outros recessos quase ignorados…  mas ir lá!... Por mim falo: nunca encontrei motivo que me atraísse a tais aventuras! É que, para guindar até àquelas culminâncias os quilitos com que fui gratificado pela medrança, mais as broas amarelas da tiá Olívia, a cinco paus cada uma, e os caldos de couves e feijões, era preciso ter boa corda nos sapatos, quase os únicos meios de locomoção daquele tempo em Cebola, rijas canetas e ar puro nos pulmões.

 Houve gente, muita gente, quase toda a gente, que nasceu, cresceu, viveu em Cebola e morreu sem nunca ter o atrevimento de agchör até ao cume. Não havia atalhos, nem veredas ou carreiros, quem ia, ia a direito que era o melhor caminho, além de ser o mais curto.  Só me lembro de uma vez ter-se organizado uma patuscada, mesmo, mesmo no picoto. Convidou-se uma cozinheira e alugaram-se duas mulas para carregarem com as provisões. O almoço, couvada cujo bacalhau foi adquirido no “armazém de víveres” da Panasqueira e bifanas na brasa do talho poucochinho, uma salada com todos e dois ou três garrafões com “tinto”. Estava um dia magnífico; visibilidade boa, apenas com alguma neblina nos vales e barrocos mais húmidos das encostas a norte. Sem binóculos (havia lá dinheiro para tal luxo!...), não se distinguia Coimbra e dizia-se que era possível.

 Detrás de serra…

 Se, depois de ter vencido aqueles obstáculos naturais, alguém aproava às portas de Cebola, pelos cabecinhos, pelo rodeio ou pela porta de honra que era o saudoso passadiço, fosse de qualquer terra de outro concelho, desde que supostamente ficasse abrangido por um arco imaginário de mais ou menos cento e oitenta graus, calculado desde o sopé do Vale de Cerdeira (porcim) e traçado, pelo Norte, até à portela, o povo, de ordinário, logo os rotulava como sendo de “detrás de serra”. E com justificada razão, porquanto quem viesse de outros quadrantes o seu destino seria as minas, logo se deduzindo que vinha à procura de emprego e uma vez encontrado, que ao tempo nem difícil era, por lá ficava, enquanto os que chegavam a Cebola, poucos, era para exploração de negócios ou para trabalharem nas suas profissões, expectando, como modo de vida honesta que a todos isso é legítimo, predar o dinheiro – dinheiro vivo – trazido pelos que labutavam nas artes volframistas.

 A princípio, o povo, não os olhava com desconfiança, mantendo-se, contudo, atento, em estudo e avaliação contínua, e só depois da habituação e sem atos que dessem motivo para reparo os acolhia sem mais reservas. Pior para eles era a concorrência já instalada … mas, enfim, dificuldades há sempre em qualquer atividade. 

 Uma coisa ressaltava logo nos primeiros contactos, eram ainda de cultura e conhecimentos um tanto fossilizados, embora pessoas de bem.  Rara exceção era aquela arsénica árvore, um indivíduo que depois de lá viver muitos anos, com família constituída e o seu “arranjo” já consolidado, se passeava gritando: “eu, da cinta pra cima é só veneno”. Como olhássemos e não vislumbrássemos inimigo por perto, logo depreendíamos que era unicamente para se afirmar e ser temido, mais que respeitado. E como o veneno não sai da cinta para cima, a não ser que, por hipótese precária, saísse dissimulado através da cera dos ouvidos, das lágrimas, do ranho ou da saliva cuspida em gafanhotos planadores, deixou por aí, teria de deixar, o nosso ilustre “homem de fora”, que veio de “detrás de serra” com certeza, atávicos rebentos de terceira geração, logicamente saídos por baixo.

 Algo reservados, lá se atreviam de quando em vez a tomar um copito no Pedôa, ti Aurélio ou no Bagão … e a tentar conversar… Mas as conversas nunca versavam assuntos que nós, os mais novos, pela vivência nas minas (não me canso de dizê-lo), pelos livros, jornais e revistas que líamos, pelos filmes que víamos na Panasqueira, pelo intercâmbio desportivo, pela atividade na prestigiada filarmónica, as representações teatrais, as manifestações lúdicas e de entretenimento, como campeonatos de sueca, damas, dominó e até da malha e do “burro” (o “burro – quem não se lembra? – consistia em “fitar” vinténs para cima de um caixote voltado, com a superfície dividida em retângulos numerados de um a dez e um buraquito redondo na parte posterior, que tinha pontuação bonificada com a introdução do vintém atirado da distância regulamentar), pela participação em instituições e associações, em tertúlias temáticas – a grande convivência, enfim, da gente de uma urbe a transbordar de juventude.

 Podíamos então falar, além dos problemas do trabalho quotidiano e das atividades da nossa terra, dissecar e discutir sobre os bestsellers da literatura, do rokc and roll e do seu rei Elvis Presley, dos tenores Enrico Caruso e Mário Lanza, Alberto Ribeiro e Luís Piçarra, de Pedro Infante, o monstro da canção mexicana e mundial, dos mais famosos temas cinéfilos vistos nos melhores filmes bíblicos de Cecil B. de Mill, de aventuras de amor, de pirataria e “capispada”  de  Errol Flynn, as interpretações de Burt Lancaster como em Trapézio, e Westerns com John Wayne e Gary Cooper, da beleza de Ava Gardner, Gina Lollobrigida, Sophia Loren, B.B. e M.M., das lindas pernas de Esther Williams e Kim Novak, falar do que no mundo se passava no desporto automóvel, no ciclismo, futebol e em todos os outros eventos desde que tivessem destaque nos média e na opinião pública… Diga-se, em abono da verdade, que em certos núcleos sedimentares, havia ainda quem contasse episódios de crendices, no entanto  sempre com o rótulo de coisas passadas antigamente, se calhar antes da chegada do Cebola.

 Ao invés, alguns vindos de “detrás de serra”, ficavam como peixe na água se alguém esporadicamente abria um tópico sobre ciências ocultas, com almas do outro mundo e almas penadas. Então era ouvir verdadeiros tratados de sombras e assombrações; delírios, fantasmas, fetiches e fantasias; danças de bruxas, guinchos de vampiros e uivos de lobisomens; abracadabras, luas vermelhas, portelas e cruzes de caminhos dentro de matas cerradas e sombrias; espantalhos, desgraças e enguiços; mascotes, gatos pretos, sapos e morcegos; facas, sangue e alguidares; maus-olhados e chinelos de trança; amuletos. figas, juras, pragas, superstições e maldições; espíritos malignos, feitiços e feiticeiras; videntes, curas, benzeduras, possessões e esconjuros. Um rol que não tinha fim…

 No presente - naquele presente - o mais longe que se ia, em Cebola, era que existia o medo, medo objetivo, de coisas concretas, medo de perigos reais, como todos devem sentir, embora sem exageros nem covardias.

 Já o medo incorpóreo, aquele misticismo que povoa e cria a demência nos fracos espíritos, e infelizmente comum onde a iliteracia domina e a religião impera, está em todo o lado porque esse medo tem sempre um hospedeiro – nunca está só porque está com quem o tem e vem com quem o traz ou vai com quem o leva. Lá que gosta de boleia, gosta!...

 Hoje e amanhã como ontem existiram, existem e hão de existir fraquezas humanas, advindas pela hereditariedade ou pelas vivências a que esses pacientes inconfessos foram ou estiveram sujeitos pela educação obscurante e fanatismo religioso que lhes foi inculcado. Para essas patologias e para os oportunistas iluminados em transes espirituais, já não há curandeiros, bruxas, astrólogos e tarólogos, nem inspirações virtuosas de ladeiras ou de covas que lhes valham … não chegarão horóscopos e planetas em trânsito, nem as doze casas do Zodíaco elevadas à máxima potência.

 Mas, felizmente, hoje em dia, existem prestigiados técnicos de psicologia, psiquiatria e psicanálise – os únicos terapeutas que, em vez da aplicação de mezinhas caseiras peregrinas  e perigosas se continuadas, apenas com a verdade científica os poderão ajudar nessas enfermidades mentais. Que façam, pois, um esforço: que tratem a disfunção espiritual que parece não ter cura – mas terá, no sítio e com as pessoas certas!

Foi então neste contexto – já lá vão mais de sessenta anos – que, inopinadamente, houve um brado, um toque a rebate, um grande alarido por causa de uma veemente jura a pés juntos de que um fantasma, uma alma penada, atacara lá para os lados do corredouro.

E quem sofreu o insólito ataque, veio de “detrás de serra”, vá lá saber-se donde. Era um homem alto, magro, ainda novo, tido como “pessoa de bem”, com a arte de sapateiro ou alfaiate ou albardeiro, já não me recordo bem, eu tinha uns onze doze anos, alugou uma casa e, com a família e a oficina, instalou-se ali para os lados da cruz da rua. Um dia, resolveu ir ao talho comprar uma dobrada (os bifes eram caros e não havia negócio nem carteira que a eles chegasse). A sua mulher, à falta de feijão branco, serviu-se de uns restos de grão-de-bico e, por não ter tempo para o demolho que duraria pelo menos dois dias, arriscou cozinhá-los pensando que era só deixá-los mais tempo a ferver. Deu para o almoço para toda a família e ainda sobrou um bom prato que o nosso homem não resistindo ao cheiro ou à falta de alternativa comeu ao jantar. Jantou.

 

Como não houvesse muito trabalho nem televisão para passar o tempo, foi deitar-se com o estômago já em ligeiros soluços ou convulsões espasmódicas. Por lhe ter caído em cima dose igual àquela do almoço ainda mal digerida, o estômago, num ato de boa vontade, tentou resolver o problema pondo toda a sua química em alerta e pronta para uma emergência. Mas não encontrando mecânica adequada para resolver a questão, pragmático e eficaz, resolveu que o melhor era expulsar aquelas bolinhas malcozidas e intragáveis, e vai daí atirou-as para o intestino delgado. Mas o intestino delgado, não tendo condições para tratar esta matéria, rejeitou-a também enviando-a ao intestino grosso. “Grão a grão enche a galinha o papo”, ou, melhor dizendo, grão a grão se atesta a tripa! O homem ia-se contorcendo, voltava-se, esperneava, tentava adormecer na esperança que aquilo passasse. Era a sério, começou a sentir as tripas revoltadas, a fazer força para, também elas, expurgarem de uma vez a intratável mixórdia.

Tinha de fazer alguma coisa… levantou-se, enfiou umas calças que não abotoou e uns sapatos que não atacou e desatou a correr para as hortas perto do casarão. Entrou por uma cancela que por sinal até estava aberta, dobrou-se e zás … despejou em catadupa toda aquela excrementícia. Com o alijar repentino da carga, os grãos ainda redondos, inteiros, tal como tinham sido engolidos pela sofreguidão do lauto manjar, espalharam-se quais bolas de berlinde ou zagalotes de caça às lebres em várias direções.

Foi quando ouviu claramente ouvido o que lhe pareceu ser uma saudável e estrondosa gargalhada saída de debaixo do rabo. O seu instinto logo lhe disse que se as suas tripas lhe doíam com os corpos conhecidos (tripas e bucho de uma vaca misturadas com grão), aquilo que ouvia, uma risada saída do chão só poderia ser de coisa do outro mundo, certamente do fantasma de alguém que deixou a terra e andava agora expiando pecados mal resolvidos. Sentiu tal arrepio que quase o paralisou. E a sua mente já abalada com o sofrimento tripeiro, só pôde reagir fugindo, porque, sem margem de erro, só riam assim almas do inferno perdidas na procura de perdão. E, calças na mão, ainda ouvindo as terríveis gargalhadas, correu, correu … tateou o passadiço, guiou-se pelos telhados para não esbarrar com as paredes e, demolido pelo susto e pelo cansaço, lá chegou a casa.

Já não se deitou e contou à mulher; amanheceu, foi tomar o mata-bicho, para o matar de facto, e narrou a odisseia a quem o quis ouvir; a sua mulher foi logo à fonte e disse às que enchiam o regador, e foi à primeira missa onde segredou a novidade. Daí a pouco toda a povoação, incrédula, falava em almas do outro mundo, e o homem mais a sua família, borrados de medo, em três dias desapareceram de Cebola, deixando vaga a casa e o que fora o seu atelier.

 Pouco tempo depois, ouvi contar uma história a um moço, mais velho que eu uns quatro ou cinco anos, bastante pândego aliás,  que, regressando do trabalho, ele e mais dois  foram gamar umas peras, ou maçãs ou figos ou as três coisas a uma horta que por ali havia, pertencente aos Pereira ou aos Branco ou aos Alves, talvez aos Covita, com árvores carregadas de boa fruta,  eis senão quando, no meio do ato do furto, entra alguém a correr pela cancela que eles só tiveram tempo para deitar-se ao comprido.

Logo verificaram que o homem que entrou não era o dono e o que queria era aliviar-se. Com tanto azar que o fez mesmo junto à cara dele, que não bulia e continha a respiração para não ser reconhecido. Contou ainda que, ao bater-lhe um grão no nariz, achou a isso graça e, pelo caricato da situação, não se conteve sem soltar uma estridente gargalhada, e mais se riu quando viu o homem arrancar atrapalhado, correndo e segurando as calças como podia, deixando-os de vez em paz para acabarem o seu trabalhinho.

Retirámos porém a ilação de que homens de fora nos querem impingir fantasmas, e não só os ignorantes como aquele de “detrás de serra”, mas também outros mais sabidos, com a apresentação de trabalhos literários travestidos de humanitárias roupagens, que, se o intruso e adotado Jorge, um fantasma inglês, aceita por desconhecer e não compreender o intrínseco sentir e caráter sadio deste povo, dado ser, também ele, um forasteiro, um homem de fora, de de “detrás de serra”, embora de outra serra, o Cebola, o legítimo e verdadeiro pai da terra, o pai biológico, jamais aceitaria.

 Constantino Braz Figueiredo


quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

A Partilha



A Partilha



O intercâmbio cultural, social e até político tido e apreendido pelos trabalhadores nos contactos mineiros das gerações anteriores e das gerações minhas contemporâneas, pouco a pouco, quer se queira quer não, foi-se entranhando na mente do povo em geral, com larga influência nos seus hábitos. Sou do tempo em que Cebola adquirira já estatuto de aldeia sui generis com tendências progressistas e cosmopolitas, sem perder ou empenhar a sua imutável essência e consciência coletiva, pontificada pela religiosidade, pelas tradições, pelos princípios e valores fundamentais que nos guiavam, e pelo exemplo e zelo das famílias mais ancestrais e conservadoras – arquibaluartes duma comunidade que sempre se quis. O mundo tomou conhecimento da nossa existência enquanto povo através da importância do minério, do volfrâmio – e veio até nós. Chegou à cata de trabalho, emprego seguro, uma preciosidade difícil de encontrar, a despeito das pesquisas levadas a cabo em todo o terreno de qualquer latitude.

Até ao advento mineiro, entre as aldeias circunvizinhas, por falta de estradas e meios de deslocação, apenas esporadicamente se convivia, e quase se ficava pelas visitas anuais às festas, algumas com estatuto de romarias. Quantas vezes com os sapatos aos ombros, pendurados pelos atacadores, se atravessaram aquelas serras em direção ao Norte – Covanca por aí fora até bem para lá do Piódão, objetivando a Senhora das Preces, Vale de Maceira, já no concelho de Oliveira do Hospital; ao Paul, (Senhora das Dores); a Santa Luzia do Castelejo com os seus famosos bombos –, para cumprir promessas ou apenas para conviver e ver outras caras, novas gentes, e poder ser visto por olhos de novas caras de outras gentes. Mas a partir de então, candongueiros e mulas alugadas, trabalhadores individuais, em grupo ou com as suas famílias das aldeias do concelho e dos concelhos limítrofes, de vários pontos do país e até do estrangeiro, entraram-nos porta adentro fixando-se na Panasqueira, Barroca Grande e Rio, em barracões imitando casernas e casas adrede construídas para os albergar, e trocaram connosco o seu saber e as suas experiências no convívio e na convergência da luta pela vida no novo eldorado, de cujos efeitos nocivos para a saúde ainda havia pouco ou nenhum conhecimento.

Vinham carregados de fé e expectativas; mas não se pense que todos eram brocas e ponteirolas para esburacar o ventre da terra… Não! A maioria, sim, seria pessoal indiferenciado, mas entre eles vinham engenheiros de minas, engenheiros civis, arquitetos, grandes crânios em serralharia e eletricidade, médicos, paramédicos, ecónomos, artífices, além de especialistas em gestão de pessoal e processamento, desenho e contabilidade, e um grande número de administrativos que povoaram apontadorias e o próprio escritório central, com vários departamentos e secções das mais diversas áreas e funcionalidades.

Fixaram-se em bairros dispostos em filas de vários lares contíguos, descendo em socalco pelas encostas, os de emprego mais modesto, já que os quadros médios tinham melhores condições em outros bairros com casas dotadas até com uma pequena horta ou jardim, e os quadros superiores, esses, os senhores doutores e engenheiros, dispunham de bem melhores regalias no chamado Bairro Azul, com campos de ténis, piscinas, etc. Tudo era sustentado por uma Companhia da estranja que possuía também um louvável hospital privativo e cumpria a lei para com o Estado e as autarquias…Tal era o lucro da exploração do “nosso” bem cotado volfrâmio!!!...

A breve trecho todas as comunidades, e o acolhedor povo de Cebola entre elas, por força da natural cumplicidade sustentada em compreensíveis interesses coincidentes, pelo convívio no trabalho, nas coletividades, e na participação em iniciativas lúdicas, culturais e desportivas, levadas a cabo sobretudo pela poderosa juventude cuja alegria e encanto derruba todas as paliçadas sociais ou convencionais, conviviam entre si como se todos pertencessem a uma mesma autoctonia.

Dado sermos os legítimos patriarcas anfitriões, ao mesmo tempo que adquiríamos hábitos, conhecimentos e uma maneira de estar já muito diferente dos conterrâneos do antanho, podíamos servir de exemplo aos desgarrados forasteiros, aquela gente do mundo que nem sequer se conhecia, a viver em comunidade e, sem desprezo pelas raízes, com eles aprender também, com muita gratidão, onde era e como era o mundo.

Constantino Braz Figueiredo