quinta-feira, 28 de maio de 2009

O PIONEIRO

O PIONEIRO



Foi ele…

Naquele dia de primavera alta, ainda lusco-fusco, antes do fogoso sol despontar por detrás da encosta maciça que sempre nos escondeu a Covilhã (talvez a querer dizer-nos quão distante e desconexa com as nossas realidades estava a concelhia), o que por calculadas contas de muitos contares só aconteceria mais ou menos no instante em que transpusesse o ligeiro planalto da Selada Cova, onde a “minha” vereda Cebola - avesseira - fraga alta - vale d’ermida cruza a estrada Minas-Portela de Unhais, começando depois o declive do rebordão para os lados da Barroca Grande e freguesia de S Francisco de Assis, subia, sem desânimo, passo certo, que nessa longínqua data, diga-se, pouco custava. Com a respiração desforçada e ritmo constante ia olhando,  vendo, desfrutando… e assegurando-me de que não era ouvido, pensava…

Foi ele…

Com o céu ainda salpicado de pontos cintilantes que, consoante o seu valor astral, a própria grandeza e intensidade iam esmorecendo gradual e proporcionalmente à medida que a aurora se impunha, sumindo-se de vez, tímidos e envergonhados pela anunciada chegada do imperador que aos primeiros clarões apaga e esconde todos os concorrentes estelares, a terra submete e ilumina com o seu majestoso esplendor, e a natureza campestre, agradecida, repete-se em manifestação de vida rumorejante, e brota e renasce e desabrocha e floresce…

Cruzava ainda a abeceira – digo abeceira, étimo que se impôs pela via popular, em vez de avesseira do léxico erudito, porquanto, nestes casos, é o povo que manda até prova em contrário! –, um pouco acima das hortas em socalco, e já quase a chegar ao viso, logo acima dos enigmáticos “barreiros” de terra semibranca, semi chumbo, de cuja proveniência não há vestígios nem indícios que justifiquem a sua textura geológica, cor e disposição naquele local. 

Lembrei-me então de quando mais jovem o meu colega me rendia no posto de trabalho, um pouco antes do turno que acabava às três da manhã, e, sem esperar pelos mineiros que sairiam à hora certa, demandava a nossa terra, passando as serras sozinho e completamente às escuras. Chegado ali, onde agora seguia em sentido inverso, sentava-me durante algum tempo se fosse verão, olhando, mas mais percebendo do que vendo, o decrépito casario, amontoado inexpressivo, guardando e selando o mistério de cada vida em plena escuridão e silêncio…


Meu povo vem à janela
Firma bem o teu olhar
E vê como a noite é bela
Até mesmo sem luar


Começava a dobrar a aresta que nos vira para o vale d’ermida e já se iam notando as rugosas serras em íngremes lombas descendo para nascente, abertas em concha, como se em sublime dádiva e entrega sem reservas à fecundidade do astro-rei. É a eterna partilha em cópula deleitosa, sempre renovada, resultante de tácito acordo legalizado por escritura intemporal, em obediência a ditames universais! 

Lá em baixo, as hortas, courelas e lezírias de couves, legumes e hortaliças e milho já alto, verdejante, ladeavam a ribeira. Os barrocos e ribeiros, com árvores de fruta, videiras e oliveiras transmitiam um total aproveitamento dos espaços construídos com suor, sofrimento e… muitos calos. Nada era desperdiçado porque tudo era necessário. A despeito do dinheiro das Minas, havia que não descurar essa essencial complementaridade, sem a qual não haveria modo de dar de comer a tanta gente. Nunca se contaram tantos habitantes. Falava-se em duas mil e duzentas pessoas só no burgo principal… 

Em frente, os barroquitos do vale de ermida estavam completamente esburacados em rescaldo e testemunho do que fora a procura do estanho durante os períodos do kilo e do saltipilha. O trilho que seguia, a vereda, era de pedras soltas; umas reboladas lá de cima com as chuvas e os ventos, outras, a grande maioria, reminiscências do período garimpeiro. A serra, nesse lugar, estava feia, triste, paupérrima, quase despida de vegetação. Lembrava carências… a miséria de tempos idos, mas bem próximos. As poucas moitas, assim como as pedras, estavam ainda suadas pelo orvalho da noite… Mais ao longe, o manto de neve que ainda há pouco tempo cobria toda a serra do nosso horizonte nordestino recuou, e agora parecia-se a um gorro branco ou cabeça de bisavô encanecido, tapando apenas o cocuruto continental! 

Ainda os sinos da torre da igreja não tinham batido as seis badaladas; ia pegar às sete, e ia só, e ia pensando…! Apesar de nesse tempo ser proibido e crime de lesa a pátria tomar tal atitude, pensava,

Foi ele…

O nosso povo, tal como os povos de todo o mundo, tal como os povos de todos os tempos, mais e quase sempre por razões económicas, nunca financeiras, poucas vezes políticas, começou a emigrar e desta vez parecia ser a sério. Quem ficasse sujeitar-se-ia a ficar sozinho… Tinha chegado da Índia no ano anterior e tudo parecia ter mudado, até as mentalidades!... Já não havia equipa de futebol; a filarmónica estava desfalcada ou já não tocava; deixara de haver atividades culturais e recreativas organizadas, e  as lúdicas eram raras e já não faziam sentido. Três anos na tropa foram suficientes para não reconhecer a juventude pujante e impetuosa que fora na década de cinquenta e impusera Cebola ao respeito de todas as outras terras circunvizinhas. Não porque mudassem ou fossem piores ou diferentes…! Apenas porque, paulatinamente, foram dispersando à procura de melhores dias para eles e para os seus. Havia também que dar outro rumo à vida, à minha vida, e ia pensando, mesmo sendo proibido, pensava,

Foi ele…

Várias gerações de dedicados e incansáveis arqueólogos e antropólogos, pelos conhecimentos adquiridos com estudo e aturado trabalho, e pelos cálculos e leituras dos materiais encontrados e exumados de escavações de ruínas até aí ocultas, que pacientemente inventariaram e classificaram, vão-nos transmitindo como foram as grandes urbes do antanho, desde os tempos primitivos, com raízes muito anteriores ao Paleolítico, o seu modo de vida, a sua sociedade, sem embargo de, não raro, tais descobertas se encontrarem já conspurcadas, adulteradas e profanadas por salteadores, oportunistas ou simplesmente ignorantes; ou arrasadas e roubadas por conquistadores impiedosos e exércitos sem escrúpulos, por isso mais difíceis de interpretar, mesmo considerando o avanço das ciências e o saber e ousadia desses meticulosos peritos. 

Apenas temos a certeza incontestável do seu modo de vida referente aos últimos seis-sete mil anos pelos documentos escritos que as civilizações já muito avançadas nos legaram; primeiro a dos sumérios e mesopotâmicos em cuneiforme, depois pelos hieróglifos egípcios, e também pelas suas obras monumentais. 

Por esses testemunhos, sabe-se que o homem era instintiva e naturalmente gregário como todos os seres vivos por variadas razões, sendo que a primeira se confinava à necessidade de proteção e segurança e a segunda, não menos importante nem dependente daquela, à luta pela sobrevivência. Só vivendo em grupo se sentia seguro, e mesmo que assim não fosse, a necessidade de vivência com outras pessoas obrigá-lo-ia à união com a própria família e ao seu clã, e depois a integrar-se no seio da sociedade, de todo o seu povo, para se reproduzir e se continuar, obedecendo, mesmo sem se dar conta, ao apelo da sua própria natureza. 

Era nómada enquanto vivia apenas dos recursos naturais que não careciam de cuidadas técnicas de tratamento, tais como a caça, a pesca e depois o pastoreio. Percorria então grandes distâncias à procura de locais de clima mais acolhedor, tal como já o faziam e fazem milhares de seres vivos da fauna e até mesmo da flora. Com a descoberta da agricultura há mais de quinze mil anos, já no vislumbre do mesolítico, logo se adaptou a viver como sedentário, construindo casas e monumentos pagãos e religiosos que deram lugar a belas cidades, grandes metrópoles, enormes civilizações. Produziram leis que foram sendo transmitidas pelas gerações, e que, embora corrigidas e adaptadas, ainda são, hoje, a base do direito que nos rege. Tudo, afinal, está tão ligado, tão próximo…! 

O Tempo parece, por vezes, confundir-se com a História, e parar... - mas não. A História talvez, mas unicamente para melhor se adaptar e conhecer os povos, reis e senhores  das guerras que em certos periodos a vão escrevendo a seu bel-prazer, e depois, sem avisar, como castigo,  tirar-lhes a pena e a tinta e dá-la a outros povos, a outros reis, a outros senhores das guerras, e continuar então a sua marcha, enquanto o Tempo, indiferente e imparável no seu espaço e movimento, não encontra patamares para repousar, exercendo e mantendo sem descanso a inexorável lógica evolutiva da relatividade cósmica.

O viver dos povos não foi sempre bom em todo o lado. Tinha fases, épocas. Quer porque a produção sazonal não fosse suficiente, quer porque a demografia tivesse aumentado descontroladamente em tempos de maior fartura; para minorar essa dificuldade, impunha-se a procura de terras mais ricas para dar sustento ao povo excedentário, que era sempre, por óbvias razões, a classe mais carenciada, as famílias mais numerosas. Então os mais afoitos, insatisfeitos com o precário modo de vida, abandonavam o seu território procurando onde melhor pudessem angariar aquilo de que necessitavam. E esses, não sendo egoístas, logo transmitiam e convidavam e aliciavam outros e estes, mais outros… Não havia papelada nem fronteiras, de tal sorte que, a dado passo, em vez de imigração controlada, os povos recetores viam-se a braços com verdadeiras invasões de hordas de famílias esfomeadas, primeiro entrando pacificamente, depois, com aguerridas forças armadas, conquistando os territórios acolhedores.

Mas os tempos mudaram. Embora continuasse a haver povos e territórios mais ricos que outros, agora já transformados em grandes nações com fronteiras, delimitações vincadas e quase invioláveis, com muros ou guardas bem equipados, tinham contudo necessidade de contratar mão-de-obra para, em desenvolvimento pacífico e harmonioso, colaborar em fábricas, construção e outros serviços primários; e assim, legalmente, começou a migração dos povos modernos no sentido das nações modestas para as mais ricas… 

E porque daqui, de Cebola, embora esporadicamente houvesse um ou outro aventureiro que fosse trabalhar para a Venezuela, Brasil, USA, Canadá, Colónias ou África do Sul, nunca isso foi considerado como emigração de massas porque esses “atrevidos”, isolados, sempre por lá ficaram sem darem cavaco…e por isso eu ia pensando… sem o dizer não fosse o diabo tece-las, pensava…

Foi ele

Ele, por mais paradoxal que pareça, era um empregado de escritório; estatuto social invejável nos tempos de então!... Trabalhava no escritório central das Minas, na Barroca Grande – departamento de estudos. Não sei qual seria o montante do seu vencimento; julgo que seria bem modesto; se calhar era inferior ao de um mineiro; não sei nem nunca lho perguntei porque nunca tivemos grande confiança. Era um pouco mais velho que eu e morava no extremo oposto, lá bem no cimo do Outeiro. Não era músico, não jogava, nem alinhava em certas atividades, pelo que, em toda a vida, não devemos ter trocado mais que meia dúzia de palavras ocasionais, sem significado. 

Não sei onde mora, como vive, se vive (oxalá que sim e por muitos anos); sei, contudo, que foi ele que um dia, sem se esperar, emigrou para França; de lá logo chamou os irmãos, estes chamaram os cunhados, os cunhados, os irmãos e os irmãos dos cunhados, mais os primos; e os primos, outros irmãos e cunhados... 

Da França foram para a Suíça, Luxemburgo, Alemanha, para o Canadá; a febre alastrou e mesmo os que não foram para o estrangeiro viajaram para Lisboa (aconteceu comigo e ainda vim a tempo de aqui trabalhar um pouco mais de quarenta anos!) e outras terras de Portugal. Haverá alguns cuja saída, como é o meu caso, nem terá a ver diretamente com essa concatenação de “chamamentos”, mas estou certo que foram propelidos para essa atitude dentro do espírito, da “febre”, que o precursor do movimento lhe incutiu, e esse, quer se queira quer não, até prova em contrário, foi quem penso que foi, porque já nessa altura, de baixinho para eles não o saberem, pensava…

Foi ele…

Ele é o que está sentado no lado direito da foto em baixo, de fato preto e chama-se Zé Fontes; José dos Santos Fontes ou José Fontes dos Santos; filho de uma senhora que era forneira e trabalhava no forno do Terreiro. Creio que todos os emigrantes da primeira, segunda e terceira geração, assim como os remigrados, lhe deveriam dar o nome de uma rua, que poderia ser a rua da casa onde nasceu; ou até um busto custeado pela emigração para o estrangeiro e para o território nacional. Bem merece ser recordado e ficar para a posteridade da nossa terra.




Constantino Braz Figueiredo

segunda-feira, 25 de maio de 2009

AMBOS OS DOIS OU O SACO E A BARAÇA

 ambos os dois ou o saco e a baraça

 

 

Volátil! Ansiosa! Sorridente…  É a mensageira do futuro! 

Uma rainha!

A imperatriz do pensamento e do espaço infinito. 

Com a velocidade do relâmpago, desloca-se fluidamente por todos os lugares disponíveis e indisponíveis. Desdenha, qual divindade, de quaisquer obstáculos que lhe interponham. Pelo cumprimento e aplicação da justiça, da lógica e da inteligência, da pertinácia, trabalho e sedução, desbrava lugares e povos inconcebíveis, ignorados ou desconhecidos; altiva, curiosa e perspicaz invade os fechados e quase impenetráveis domínios senhoriais e acomoda-se em seus majestosos palácios, com atrevimento e a rir da mais disciplinada segurança.

Senta-se à mesa de reis e usufrui com os anfitriões e insignes convidados de luxuosos aposentos, benesses, iguarias, diversões sociais, caçadas, bailes, regabofes, bacanais e toda a espécie de voluptuosas orgias vulgarmente atribuídas a tais lugares.

Do mesmo modo, entra em miserável, imundo e promíscuo antro de desviados, social e levianamente considerados a escória, o rebotalho. Mas aqui – alto lá! – é um campo onde pouco se detém, seja porque não gosta da deprimência, seja por imperativos relacionados com a sua habitual inconstância e irreverência mais propensos e vocacionados para a bem-aventurança ou para quem  procura alcançá-la.

É a sua natureza!

Não tem problemas de consciência, é inculpável, mas fica terrivelmente perturbada e desconfortável com quem mantém ou dá fôlego à indigência e aos desvalidos, aos marginais e a toda a cáfila de parasitas que se move em torno de quem trabalha e honestamente faz pela vida. A Sociedade que os produziu, os políticos, os governantes de todos os países do planeta, numa atitude corajosa, uniforme e concertada, que faça algo a montante e a longo prazo para que o mal seja cerceado, em vez de financiar estéreis conflitos só para mostrar quem tem o poder e as armas mais destruidoras, e, principalmente, para submeter os outros povos à subserviência económica.

Com esse propósito, preconiza ações convergentes para total erradicação da pobreza que nunca será suprida nem minorada (apenas alimentada) com as habituais mezinhas caridosas, esporádicas ou pontuais, aparente ou realmente simpáticas, mas não isentas de beatífica hipocrisia, quantas vezes para justificar profissões bem remuneradas. Um dia far-se-á a conta ao influxo financeiro absorvido pelos agentes do bem em detrimento dos infelizes destinatários.

Sabe como agir, mas considera que é uma área que não lhe pertence porque seriam necessários grandes investimentos, e além de muita dureza, alguma crueldade politicamente incorreta…  muitas linhas e anzóis, e a recuperação de forjas, ferreiros e ferradores para dar cabal cobertura ao reflorescimento das atividades necessitadas de pás, enxadas, ancinhos, roçadeiras, picaretas e… ferraduras…

Mas não ficaria, porém, escandalizada com a substituição daquelas históricas e eficazes ferramentas, de romântica saudade, por tecnologia de ponta, consubstanciada em segadeiras, debulhadoras, tratores, pás mecânicas, assim como exaustiva implementação de oficinas e laboratórios de investigação, com mestres de reconhecido e elevado gabarito em todos os ramos da ciência, equipados de aparelhagem moderna, e técnicos informáticos, bem armados de magalhães, gamas, colombos e outros cabrais.

Versátil, temperamental, impulsiva.

Se o deseja veste um cariz vulgar, comum, civilizado, alegre ou sentimental, mas sempre prático e objetivo, e sem perder tempo à espera de permissão invade os mais íntimos e secretos esconderijos da sua paixão. Sensual, dispõe à vontade e sacia-se dos comuns desejos com a cupidez dos que em silêncio sofrem e amam, porque, imbuída do espírito destemido que lhe é peculiar, vai, ela própria, ao lugar do endereço da carta da popular trova que compôs e que nunca lhe mereceu enviar.



“Vai-te carta, vai-te carta,
Entra na primeira sala.
Se não houver quem te leia,
Abre-te carta… e fala!”

     Incansável. Subtil. Inteligente. Sedutora. Fatal!

Mas é, mais que tudo, razão.

É ela que, através do seu imensurável poder criativo, faz evoluir todo o universo do conhecimento. Imparável e avassaladora, acolhe e acode a todos os ramos das ciências e das artes.  Quase de graça, trabalha incansavelmente para tornar os povos mais prósperos e desenvolve e tira partido de todos os recursos da natureza para melhorar o progresso, o nível de vida, a saúde, a longevidade. 

Em alguns casos parece carente, vaidosa, ciumenta, insaciável, e então pode tornar-se perigosa com as suas prodigiosas invenções, contanto que sejam levadas para sendas tortuosas e postas à disposição de déspotas de ambição desmedida ou escroques do mais baixo jaez. 

Ela é a Imaginação, a sabedoria, mas não seria de todo feliz se não fosse complementada com o apêndice de todas as horas, de toda a vida, desde o nadir ao apogeu sideral da humanidade – o Sonho!

Mas,

Sonhar…

…O sonho, embora indevida e vulgarmente confundido com a imaginação, é totalmente diferente desta. Pode, no entanto, com algum esforço, dizer-se que é a consciência, a moderação, um freio à conduta por vezes atrabiliária da sua fogosa companheira.

 A imaginação é criação, esforço, aventura, realização; o sonho é fantasia, devaneio, aspiração, utopia, ilusão – almeja sem construir, deseja sem realizar. Ele é contemplativo, idealista, romântico, lírico e ingénuo; ela é a vontade perseverante, o projeto, a obra. Ele é visionário, indolente, passivo e subjetivo; ela é direta, pragmática, arquiteta e objetiva. Mas um não viverá sem o outro. São inerentes e estão ligados pela essência e intrinsecamente associados em simbiose perfeita e… eterna

Para nosso bem, felizmente, todos nós, de per si, estamos equipados com essa prodigiosa ambivalência. Aproveitemo-la então e utilizemo-la da melhor maneira e gozemo-la generosa e abundantemente. Sonhemos e imaginemos até fartar, mas, sobretudo, doseando o esforço, vinquemos o nosso inabalável querer, a nossa esperança e…  pensemos positivo!...

Constantino Braz Figueiredo   

 




ROMEIRO ETERNO


Romeiro eterno quis, sempre como agora,
em amplo leito, onde a maré entra e sai,
espraiar-me em repouso que bem me cai,
vencidos escolhos de sinuosas sendas fora.

 Descanso, porém, não tem demora
pela pressa de abraçar meu pai
e dar-lhe, alimentados, sem um ai,
meus filhos que aguarda a toda a hora

Aproveito para observar os mais recentes,
enquanto desfrutam o estuário de meu nome,
e o mais alegre é o rebelde de Porcim,
ávido por mostrar o valor das suas gentes.
Questiono-o, a brincar, se já tem fome…
Sorri… e pergunta-me onde é Albarracim!...





Constantino Braz Figueiredo

Cebolenses - 'Bora lá à Terra




cebolenses


bora lá

à terra
do graveto do chamiço
e das torgas
que já não há aos torgais

à terra
de casas senhoriais
imaginadas
planeadas
edificadas
no lugar de matagais

à terra
do cabeço e do outeiro
com pombal
sem pombas a voar
a arrulhar
hu-úúm-hu
e do airoso rodeio
que nun mostra
cmás fitas de cobóis
o laço a sibilar
tsssssssss
prás reses amansar

nun há cows
mas há boys

bora lá

ao ribeiro souto
ca canada e cascalhal
mas sem souto e sem chiqueiro
resta a presa e o ribeiro

o cabeço carvalheiro
e sua filha abesseira
onde a gente sempre passa
como pé em passadeira

não há adro
e ao terreiro falta terra
e espaço
e jogos
e festa
que foi pra capela arejar

arejar
arejar areja um campo
com ar de abandonado
não há golos
sobra mato
terreno para desbravar
a jogar

e outro sem balizas
à portela
onde jogam só os lobos
lobo preto a apitar
iiih ca mau
e o público a uivar
fora o árbitro
auuúúúúúu

bora lá
e se adro já não há
vamos à eira
com sol
mas sem milho pra secar
nem fontanário central
arte poliédrica
que a alguém fazia mal
quem tiver sede
sirva-se da parede

e a tapada destapada
alargada
pra passeio
vivó clube

tornadouro sem en
todo catita
hem
que regalo
um brinco
um asseio
abençoada fontita

com cravos e rosas
mas sem nabos
nem botôlhas
e cabaças
o quintal

e a cruz da rua sem podoa
nem com foices e martelos
fica igual

bem ficam os paralelos
no lugar do passadiço
que levou sumiço
oh o passadiço
que levou sumiço

e a moreira
sem amoreira
perdeu o a
ao cair
prámora não tingir
a veste domingueira

bora lá
à bênção dos velhotes
com saúde pois claro
bênção sincera
pudera

e do senhor prior
que já não é só nosso
o prior
é o que temos
senhor
é pena
o senhor bispo assim o quis
aceitemos

bora lá
à terra
onde nascemos
nossa origem
vossa nossa minha terra
que é onde está a morcela a chouriça
a pica a goleima
e a matança do porco
oinc oooiiinnnc
carne fresca à farta
corta ali mais dali
há fritada
hoje

e o leite no cincho
a coalhar
corre o soro o soro escorre
já não esbarriga
bota prá barriga
agora é queijo
fresco
queijo de cabra

no fresco da loja
onde a adega a pipa
o xquen o txiq o tonh o frëd
grandes companheiros
homens grandes
francos

é a magia de receber
a beber a comer sem talher
dar a receber
receber a dar

é partilhar
é amizade
é calar a saudade

o presunto já quase no osso
quase dói
e como por encanto
já outro além ao canto
espera o canivete
que também corta a broa
o canivete

e a malga cheia
numa rodada
à roda da pipa
da pipa que já roda

bota bota
enche enche
boa pinga dizem todos
se não é fica a ser
nome de crisma
boa

é du më bacelit da cerdera
cuns pezits das aradas
e du val da colhör
pro ano vai ser melhor
aposto

bora lá
à terra
da costa sem mouro
sem ouro
sem castelo
onde o sete do zodíaco balançou

e em estranha dança
pairou
olhou
parou
sortilégio de balança
calhou

e
assim nasceu
medrou amou
sofreu suou
um pelintra como eu



constantino braz figueiredo



AS FÍMBRIAS DO IMPÉRIO


Não obstante saídas pontuais à Covilhã para tratar de assuntos oficiais inerentes a vulgares exigências de cidadania, com breves visitas para jogar à bola às terras da vertente sul da Gardunha, e a outras do nosso concelho e do concelho do Fundão, foi para ser incorporado no serviço militar obrigatório que pela primeira vez fui arrancado à nossa querida e incomparável Cebola 

Até se me parte o coração por a terem alcunhado com nome de um intrometido que aqui não nasceu, viveu ou parentes teve… À serra não lhes foi permitido, e nem agora nem nunca o será, quer porque cá dorme eternamente o Cebola, o guardião, a quem a Terra durante séculos agradeceu o nome que seus honrados filhos dignamente e sem desdouro exaltaram pelo mundo, quer porque o nome da serra, que logicamente advém da Terra, tem registo nas organizações militares internacionais, e jamais haverá ilustres capazes de subverter a natureza da impossibilidade. 

Com orgulho mas sem apreço por quem levianamente lhe sonegou a mãe, responderá sempre, altaneira, por Serra de Cebola, ou Picoto de Cebola. E apenas sentirá saudades, grandes saudades, de ouvir de novo os maviosos andamentos quando o som emitido pelo badalar dos sinos da torre da igreja se misturava com a bucólica e ressonante parafernália de guizalhos, chocalhos e campainhas das pachorrentas cabras que diariamente a visitavam, atraídas pelos seus viçosos rebentos da mais variada flora rasteira, onde predominavam moitas, tenros carquejais e erva de húmidos e frescos lameiros.

Como se de Ares ou de Marte ou dos famosos e saudáveis ares de Marte tivessem recebido a graça para poderem dispor da nossa vontade, força e espírito para o desempenho de atividades que lhes aprouvesse, desprezando a opinião e interesses pessoais e familiares, favorecendo até, por vezes, alguma imaginação ostensiva e perversa, com foros e privilégios tomados de duvidosa proveniência ética, mas na realidade apenas mandatados pelos políticos, os profissionais dos recrutamentos e distribuição de contingentes destinaram-me como unidade de instrução o BT – Batalhão de Telegrafistas, em Lisboa, hoje Regimento de Transmissões. É perto da Graça, logo a seguir ao largo de Sapadores. 

Mal tinha posto os pés na cosmopolita Santa Apolónia, fui a Campo de Ourique em curta visita ao meu irmão Virgílio e logo me dirigi ao centro de instrução determinado. Desci do autocarro, e com a inevitável mala de cartão, passeio fora, encostado ao muro que contorna o quartel, dum amarelo esbatido pela chuva e pelo sol e encimado com pequenas ameias de castelo medieval, ia avaliando o terreno que, diga-se, pouco tinha de atrativo, e foi com algum acanhamento e ansiedade que cheguei à porta d’armas. Junto à guarita, de obsoleta arma mauser na posição de descanso, estava o guarda ou sentinela ou como lhe queiram chamar:

– Eh você, posso entrar?
– Claro que sim, ele me disse.
E repetiu-mo a berrar
Com medo que o não ouvisse

Entrei, e depois de cumpridas as formalidades de apresentação logo me misturei com a malta que vinha para o mesmo fim. Como não tive dispensa de recolher durante a primeira semana também não saí do quartel. Durante esse tempo, embora me gabasse de ter um sentido de orientação invejável (testei-o dentro das minas, aonde alguns domingos ia sozinho, descendo ou subindo a todos os níveis e galerias para recolher amostras das poeiras, medir os abatimentos do terreno e as pressões das condutas de água e de ar), com as voltas na cidade desconhecida, fiquei sem saber para que lado ficava Santa Apolónia, e, se formos a ver, é logo ali em baixo ao fundo da rua Vale de Santo António. Não será de admirar porque então não havia estes prodigiosos mapas nem acesso à informação que hoje nos é facultada, para não falar do moderníssimo GPS – Sistema de Posicionamento Global. 

Sabia, como todos, mesmo dispensando a bússola, onde era o sul, o norte, a direção da minha Cebola, mas a porta de saída… E um militar que preze a estratégia deve saber sempre o sítio preciso da saída do campo de batalha para uma eventual retirada de emergência, ou, melhor dizendo, para a necessidade de uma fuga apressada, senão está sujeito a ser outro lendário Martim Moniz que numa das investidas dos cruzados ao castelo de Lisboa ficara entalado numa porta, nunca se vindo a saber com exatidão se foi apanhado quando era o primeiro no ataque e empurrado de dentro para fora ao mesmo tempo que de fora para dentro, ou quando, por remota hipótese, era o último a fugir.

Não vou contar episódios nem peripécias de três anos passados na vida militar que me foi imposta, longe disso. É um marco indelével na vida de todos os que por lá andaram. Pouca diferença haverá. No entanto, como vim para Lisboa e para um quartel onde, parece, nunca um mancebo da nossa terra tinha assentado praça, erradamente pensava que alguém dos contrafortes das serras beirãs seria facilmente cilindrado por aquela gajada alfacinha e tripeira que era a grande maioria. Puro engano! Eles eram – tinham de o ser – do meu nível académico (o mais baixo), do meu estatuto social (o mais modesto) e, claro, da minha idade. 

A não ser a diferença de costumes, sotaques e outras expressões culturais, com realce para os idiomáticos e inócuos patuás de Alfama, Madragoa ou Bairro Alto, da repetição de slogans revisteiros do Parque Mayer ou das rábulas do Solnado que ora estavam na berra, e dos dragonados entons das Antas, ou dos atrevidos e maliciosos calões de bulhões ou boavisteiros, das Fontainhas, S. Bento ou Mira Gaia, não havia nada a temer. Assim, quando me perguntavam o nome da minha terra, imediatamente respondia com clareza e calculada altivez: Cebola. Era como se dissesse Lisboa, Paris, Londres ou Nova Iorque! 

Por vezes notava um ligeiro esgar trocista na cara de um ou outro, mas ao verem o orgulho e a dignidade com que pronunciava esse nome, e, em certos casos, o olhar furibundo com que os chispava, o assomo sarcástico logo desaparecia. Valeu-me que os iluminóides lá na terra ainda não tinham atuado, senão lá teria de ser trucidado pelos lanceiros dragons ou embrulhado em folha de alface e botado num contentor do lixo!  Acreditem,  nunca fui alcunhado de cebola, o que, para mim, até nem seria ofensa! Em termos de informação e cultura geral impunha-me sem esforço e depressa passaram a fazer-me perguntas sobre quase tudo. Admirados, queriam então saber o que fazia em Cebola, ao que eu, irónico, respondia que era pastor e que na minha terra todos sabiam mais do que eu. De tal sorte que, aceitando ou não, despistados ou não, confundidos ou não, a breve trecho tudo estava normalizado e o nome Cebola e o ceboleiro montanhês eram acolhidos sem reservas no seio dos tripeiros e alfacinhas .

Bons tempos e bons amigos!...

Falava-se então que na Índia aquilo estava aceso, melindroso, preocupante; que os sathyagrahas (?) – um punhado de ativistas coniventes com as autoridades oficiais, ditos pacifistas, pacifistas que punham bombas nas estradas e vias férreas e ateavam as mechas – haviam tomado os enclaves de Dadrá e Nagar Aveli, perto de Damão; que já havia prisioneiros, feridos, e alguns mortos nas nossas fileiras; que em Goa havia atentados de terroristas chamados libertadores, o que correspondia à verdade. O pior era que o meu quartel estava sempre na primeira linha a enviar contingentes para aqueles territórios, sobretudo radiotelegrafistas … e eu fui escolhido para radiotelegrafista! Ainda me ia calhar a mim…

Antes, já apurado e a saber onde ia ser colocado, escrevi a Salazar. Não foi um ato de coragem, mas de necessidade! Bem sabia que ele não iria ler a carta nem dela teria conhecimento, longe disso, para meu mal. Tinha gabinetes e os gabinetes é que tratam das coisas menores. Escrevia eu, não para Sua Excelência me livrar da tropa, mas para que na data da minha incorporação o meu irmão Zé Gil, que já por lá andava havia um ano, passasse à disponibilidade a fim de ajudar minha mãe a sustentar os quatro filhos mais novos, órfãos de pai, que ainda ficavam a seu cuidado. Parecia-me uma pretensão honesta e exequível. Tive resposta…respondem sempre… é a sua missão, mas nem sim nem não, era mais nim; afinal foi um não rotundo porque eu fui para a tropa, o Zé Gil ficou na tropa por mais um ano e os meus irmãos mais novos ficaram desamparados

Coisas e imposições dum Estado Novo, corporativista, de reverenciada moral, que se não fossem de pronto cumpridas por ousadia de candidato a justiceiro lhe era imposta a masmorra imediata e sumariamente.  Era acatar, concordar e… calar, por mais absurdas que fossem as determinações do poder e seus agentes. E lá me assaltava, de novo, a revolta: Como é que alguém, um governo, uma sociedade dita moderna e progressista, multirracial, pretensamente paladina e respeitadora dos Direitos Universais do Homem podia dispor da vida de um ser humano, quando nem condições, sequer uma migalha, lhe dava para atenuar as necessidades fundamentais dos entes mais queridos? 

Gozemos hoje, já que parece haver mais liberdade para protestar, reclamar e exigir, desfrutemos, faz-nos bem ao ego, mas também tudo não passará de ilusão, afinal é apenas mais um pouco de liberdade de pensamento e de expressão, porque mesmo num estado laico, dito democrático, é muito difícil ou mesmo impossível fazer prevalecer as razões que às vezes nos sobejam, e depressa chegaremos à conclusão de que, do mais alto ao mais baixo, do mais poderoso ao mais humilde, só encontraremos mais libertinagem, mais vícios e abusos, e menos respeito pelo cumprimento dos deveres e pela liberdade na verdadeira aceção da palavra.

Mas parece que tudo tinha explicação: O Zé Gil era de Infantaria. Andava lá por Tomar, Tancos, Santa Margarida em alta missão para conter as ameaças de discos voadores, e outros voadores de formas esquisitas, a que atribuíram o nome de OVNIS, onde estavam incluídas algumas classes de mosquitos e gafanhotos que pairavam aquela região. Era tido como atirador especial, sobretudo antiaéreo, e operador de elevado sentido tático e posicional… à mesa do refeitório… Com cada tiro era certo que abatia um veículo extraterrestre, seis gafanhotos marcianos e vinte mosquitos plutoides! Quanto aos caranguejos de Vega, como conta Carl Sagan em “Contacto”, não, porque esses, quando muito, ficaram-se pelas praias do litoral… na jurisdição dos fuzileiros! Também não lhes gabo a sorte!… 

Assim, voltando ao Zé Gil, como poderia alguém tão eficaz ser dispensado para dar alimento aos irmãos e cuidar da sua mãe? Que morressem de fome, a pátria é que tinha de ser salva daqueles estranhos e ferozes inimigos…

Prioridades são prioritárias!

No concernente ao meu estatuto, vim a saber depois que fora designado para feitos quase tão importantes como os do meu irmão. Não o eram porque os meus serviços seriam prestados longe da pátria-mãe, salvo seja… Alguém – eminências pardas - atuava na sombra e seguia o meu percurso utilizando satélites e outras sofisticadas tecnologias, exceto chips porque ainda não os conhecia, transmitindo em contínuo todas as informações às entidades do mais alto nível planetário.

O mundo estava em suspense…

Pandita Nehru, grande alma, como aliás seria exigível a um dos mais brilhantes discentes e fiéis seguidores de Mahatma Gandhi, negociava com o governo português a entrega dos territórios, dos sinos da Velha Goa e das bombardas de Diu, de Afonso de Albuquerque, Constantino de Bragança e de S. Francisco Xavier, tentando, para não trair a doutrina do mestre, lograr os seus intentos pela apologia da vitória sem agressão. Por outro lado, o governo português, arguto e diplomático, tudo fazia para explorar psicologicamente o apregoado e reconhecido pacifismo do chefe da potência negociante, além de politicamente confiar na diplomacia e persuasão das velhas alianças ocidentais (sobretudo Inglaterra e Estados Unidos), alianças que lhe viriam a ser tão falsas como dizem que foi a de Judas Iscariotes,,, – creio que foi aí que deram por que já estavam orgulhosamente sós. Salazar, casmurro, nada tinha aprendido com o Ultimato Inglês… 

Os argumentos esgrimidos por ambas as partes falhavam rotundamente em todas as etapas de conversações, e Nehru, o pacifista, começava a encrespar-se. Mas Salazar era macaco… raposa velha! Tinha um trunfo, melhor, uma arma secreta… O que seria, quem seria... se acaso se tratava de alguma coisa ou de alguém, só ele, os servidores de maior confiança e as altas esferas das potências mundiais o sabiam… Excitado, de pé, com os secretários e conselheiros em redor sem ousarem proferir palavra, botou um olhar de esguelha e desconfiado à sua cadeira… e, perentório, com o indicador espetado na direção do mais próximo, mandou; decretou; impôs: mobilizem o tal de Cebola! Ele que avance imediatamente. Top secret! Dera a sua ordem, e jamais haveria atrevimento ou conselheiro capaz de o dissuadir…

E é aqui que começa o meu trabalho; e é aqui que começo a compreender por que vim aqui parar. Salazar, talvez socorrendo-se de conhecimentos rudimentares que terá aprendido lá por Coimbra, quando jovem, sobre teorias e leis de atrações e repulsões de eletricidade e magnetismo de Ampère, Coloumb; de Joule, Faraday e Newton; ou matutando em estudos orientais sobre yang e yin de Fou-Hi ou Lao-Tse, queria anular um homem altamente pacífico opondo-lhe um outro totalmente inofensivo, seguindo o princípio da neutralização magnética ou atómica… ou cósmica! – Haveria ou haverá coisa assim?!... – Dois polos da mesma espécie não se tocam, não lutam; repelem-se, afastam-se, logo não haverá guerra entre eles porque são ou tornam-se reciprocamente inelutáveis!... Parece inteligente, com alguma lógica, sem dúvida, mas nunca chegou a explicar se o seu raciocínio se baseava em realidade experimental ou empírica, cientificamente comprovada, ou se era fruto de alguma incursão ao misterioso campo gravitacional do esoterismo…

Impunha-se  agir sem demora!

Ainda não tinha jurado bandeira e já estava mobilizado para seguir para a Índia. Para Salazar a paz voltaria aos territórios logo que eu lá chegasse! 

Era esperar para ver…

Não foi preciso chegar! Ainda no barco, e logo que passou o temporal que nos fustigou e perseguiu até se perderem de vista as Colunas de Hércules, e quando já quase todos recuperavam do alijar da carga ao mar, começaram a chegar-me notícias de que Pandita Nehru já recebia mensagens dos donos do mundo, dos senhores das guerras ativas, das guerras frias, mornas ou mortas, dos senhores dos países alinhados, não alinhados e desalinhados, de Nikita Khrushchev, John Kennedy, do Bando dos Quatro, Mão Tsé-tung, Liu Chao-chi, Chu En-lai, Harold McMilan, Charles De Gaulle…, para que suspendesse imediatamente todas as atividades hostis a Portugal, dado que avançava a todo o vapor a tal arma secreta portuguesa de que já há algum tempo se falava nos meandros das bem informadas e sofisticadas polícias secretas internacionais e dos enigmáticos, sombrios e eficientes agentes da espionagem mundial.

Pelo sim pelo não, Nehru que não sentia qualquer vocação para se tornar herói (não compreendia os heróis e até lhe causavam um certo desprezo), achou que era melhor parar, e parou! Não acreditava muito no que lhe diziam – arma secreta inofensiva? Hum! Dá para rir! Mas, filosoficamente como sempre o fazia, pensou em deixar amadurecer o assunto; o tempo se encarregaria de clarificar as suas razões ou os seus receios… E foi assim que, chegado lá, nem mais um tiro, nem mais uma bomba! Apenas encontrava gente da maior simpatia - afável, digna, prestável, inteligente e conhecedora da História.

Andei por todo o lado, fui várias vezes à fronteira como radiotelegrafista numa máquina sobre carris, dotada de vários equipamentos e pessoal especializado em todo o tipo de minas e armadilhas, que patrulhava a via-férrea – ora cortada, mas que antes ligava Mormugão a Bombaim ou Mumbai, a cidade mais populosa do mundo –, em missão de reconhecimento. Nunca senti a sensação de velocidade como foi o andar naquela máquina, creio que dava pelo nome de drysean ou coisa parecida. Tinha-se a impressão de que os montes, as árvores, as pessoas, as coisas eram atraídas ou aspiradas até nós. E ainda o TGV estava longe do sonho humano…! Estive destacado nos postos de rádio de cidades como Pondá, Vasco da Gama, Pangim, a capital; fui a Mormugão, a Velha Goa, Bicholim, Margão, Mapuçá… Nada! Uma paz que até me fazia guerra! 

Depois daquele marasmo, com vinte e seis meses decorridos, acharam por bem devolver-me a Cebola! Estávamos em sessenta e um… e lá me atiraram para um quadrimotor que demorou trinta e oito horas – só no ar – para poisar na Portela. Havia saído de Goa à terça e cheguei à quinta, com dormida em Barhein e outras pausas para abastecimento e manutenção técnica no Cairo e Tripoli.

Já na peluda, detive-me ainda alguns dias em Lisboa para, enfim, gozar um pouco a vida da grande urbe, com a sensação de liberdade que a roupa civil me conferia. Só quando cheguei ao Fundão telefonei então para a Terra a avisar da minha chegada na carreira da noite. E logo o Xico Moleiro, sempre em cima do acontecimento, em poucas horas arranjou um prestigiado grupo de músicos, tantos quantos conseguira encontrar disponíveis, e com eles me esperou a dar as boas-vindas, e com eles botou palavras de improviso ao Terreiro, à Eira e à Costa, anunciando ao povo, qual arauto dos tempos modernos, a chegada do mais modesto e inofensivo, mas vitorioso filho da Terra, porque um homem de Cebola nunca perdeu e jamais perderá uma guerra. Falava como se, comigo, transportasse a aura de herói nacional! Saberia o Xico da marosca de Salazar?...

Entretanto, no gabinete de Nehru começavam a entrar telegramas codificados com a assinatura dos mesmos que lhe haviam recomendado a suspensão das atividades anexantes, e todos continham a mesma frase: arma secreta regressou às origens e está inoperante. A si cabe decidir! E Nehru decidiu – invadiu Goa, Damão e Diu alguns meses depois de eu sair, ainda não se escoara o ano de sessenta e um!... Foi só o tempo de preparar o assalto, cuja violência foi dispensada porque na receção aos atacantes estava um Homem de caráter, inteligente e ponderado, o grisalho governador Vassalo e Silva. 

Ao mesmo tempo, aqui, no Continente, o Governo chefiado por Salazar transmitia ao povo as precisas palavras com que tinha exortado o Governador: combater, combater até ao último homem. Ele sabia que não, mas quis-nos fazer crer que se combatia ferozmente, palmo a palmo, em todas as frentes e que os indianos, desmoralizados, em algumas zonas até já fugiam. Quando, enfim, admitiu que os territórios tinham sido anexados sem sequer ser necessário desembainhar a espada, levantou-se, deu um chega p’ra lá na cadeira, olhou-a com desprezo, e, contra o seu costume, deixaria escapar uma quase impercetível censura, demasiado pejorativa para os destinatários, pelo que me dispenso de a referir…!

– Mas a culpa talvez seja minha – acrescentou –, porque autorizei o regresso do tal de Cebola! Porquê o deixei vir embora?! Porquê? E, mais pensativo, talvez com problemas de consciência, foi dizendo: Se, ainda assim, não tenho assinado aquele miserável decreto que matou Cebola, substituindo o seu nobre nome, a sua essência, por nome de intruso importado, talvez… talvez..., mas isso tirou-me a moral para lhe exigir maior sacrifício!

Quis ficar só e, meditando, delongou-se em vagarosos passeios pelo espaçoso gabinete. Por fim, já mais calmo, dirigiu-se de novo para a secretária, abanou a cadeira para ver se ao menos ela estava segura, e voltou a sentar-se. Com o olhar distante, ali permaneceu largos minutos, várias horas, anos, uma vida… talvez revendo os oito séculos de História da sua amada pátria, desde Afonso Henriques até ele próprio…! Estava triste! Muito preocupado. Perdera as joias da coroa, a terra dos vice-reis!... Sofria! Mas com o pragmatismo que estudara do filósofo americano, quase seu coetâneo, William James, pouco a pouco foi esvaziando a mente deste problema por se tratar de um facto consumado, sem retorno. Nada mais haveria a fazer! A sua reflexão e temor concentravam-se agora nas colónias africanas, onde os movimentos de libertação, já armados e organizados, começavam a sua marcha rumo à independência…

Estranhando a demora, alguém muito próximo e da sua inteira confiança, com redobrado cuidado e respeito, atreveu-se a espreitar por uma nesga da porta, ouvindo nitidamente este inquietante solilóquio:

– Os ratos começaram a esboroar as fímbrias do Império…

Constantino Braz Figueiredo







UM TAL ZÉ MARIA (2)


 

UM TAL ZÈ MARIA (2)

 

 

Este simples escrito tem por finalidade homenagear um mineiro que nos deixou, que me deixou, faz hoje, dia dois de março de dois mil e nove, sessenta anos. A narração é de quando já a silenciosa sílica ultimava os preparativos para consumar os seus desígnios. E é apenas uma lembrança e oferta do tio aos seus quarenta netos.

 

****************

 

Por imposição de temporâneas realidades em circunstâncias adversas, a que obviamente fui alheio, vi-me tristemente excluído do ingresso natural aos estudos académicos regulares, secundário e superior. Digo natural porque em qualquer sociedade justa, onde houvesse dirigentes e autoridades autarcas, políticos e governantes com sensibilidade para as prioridades universais como sejam o interesse e o dever de zelar pela igualdade de oportunidades e do bem-estar das pessoas, sobretudo das crianças, seria curial e de bom juízo ver até onde poderiam chegar as supostas potencialidades daquele que, na nossa aldeia, até àquela data, fora consensualmente considerado o melhor aluno.

 

Mas a despeito disso, ou talvez por isso, não recordo impaciência para qualquer divertimento ou para comer o que quer que fosse com tal  desejo e ansiedade como a que me encorajava e impelia para um livro ainda que quase mendigado, porquanto, também e principalmente, jamais esqueceria o que a esse respeito, quando tornávamos da Covilhã do exame da quarta classe, ouvira meu pai dizer a pessoas que o felicitavam por ter dois “doutores” só de uma assentada, já que – admirava-se o povo – dentre tantos alunos,  escola cheia,  apenas três foram a exame e dois eram seus filhos, e o outro, um pouquinho mais velho, pertencia a  família tida por mais abastada:

 

– Era para estar contente – disse com um sorriso mesclado de orgulho e apreensão –, bem sei, e estou, mas não satisfeito. Porquê?... porque me preocupa o que irá ser deles no futuro, sobretudo do mais novo que tem apenas dez anos… só teria a ganhar se ficasse na escola por mais um ano… bem instei quem de direito para que assim fosse, mas não fui atendido…. Qualquer dia morro, eles não vão estudar, e depressa, atendendo à idade, se lhes apagará da memória tudo o que aprenderam.

 

Por instantes ficou concentrado com o olhar fixo num ponto que só ele via, talvez meditando sobre os sombrios horizontes pejados de armadilhas e incertezas, talvez prevendo a brutalidade dos escolhos que nos esperavam, talvez avaliando o tempo de vida que lhe restava, talvez olhando a carência das coisas básicas necessárias e essenciais à nossa subsistência, talvez para um futuro sem futuro, talvez…

 

Parecia ter-se esquecido que ainda quase se ouviam os foguetes comprados na Panasqueira, tendo botado três à curva da capela, depois de pedir para a carreira esperar, e outros tantos quando chegámos à ponte… Quando enfim voltou à realidade, recuperando o momento, encarou de novo os interlocutores, mas a sequência do seu discurso, saído do mais profundo do seu ser, já não era com eles… soava mais como um magoado protesto, traduzido num conselho, numa lição dirigida a nós, a quem o ouvia…  ao mundo! Olhava-nos então com um semblante onde o sorriso já se extinguira, severo, e sopesando parcimoniosamente cada palavra que, sem levantar a voz, pronunciava:

 

– Agora ficais por vossa conta. Acabaram-se as aulas e os professores, e se não continuardes a exercitar a tabuada, a leitura e a redação depressa tudo esquecereis e  este bonito dia não terá qualquer significado; será  apenas uma lembrança inútil… Doravante, tudo deve ser aproveitado para ler e escrever; se virdes um papel velho de jornal no chão, numa valeta, sujo ou não, qualquer papel com letras, apanhai-o e lede-o e fazei por entender o que diz… para vós não será interessante, mas pode tornar-se muito valioso, mesmo que seja só pela prática da leitura e interpretação; não desperdiceis a mais pequena oportunidade para ler e principalmente para ouvir os mais velhos, e segui, por imposição própria e nunca descurada nem desviada, os conselhos e ensinamentos do mestre: aprender, aprender, aprender sempre

 

Notável, este inlustre de Cebola!

 

A partir daí, tudo o que viesse à rede era peixe”, e o primeiro “peixe” foi nem mais nem menos que “Os Lusíadas” … Isso mesmo – os Lusíadas! Ainda não tinha doze anos quando o filho mais velho da minha mãe, o meu irmão Zé Gil, apareceu em casa com a monumental epopeia de Camões. Alguém lho emprestou com a condição e exigência de não o estragar. Assim, o Zé Gil, sempre cioso dos seus compromissos, imediatamente me preveniu de que ficava proibido de pescar aquela truta. Qual quê!... com um livro à mão, ali, limpinho, charmoso, apelativo, capa dura com estampa do autor, legendas gravadas…  ia lá agora apanhar papéis sujos do chão!?...

Era ele virar costas e logo eu entrava na "forja" onde o erudito ferreiro com amabilidade me acolhia e franqueava a sua portentosa obra, servindo de cicerone para que admirasse e compreendesse com inefável arrebatamento as "brônzeas oitavas",  produto final daqueles metais preciosos que aquecera em subida fornalha ateada com sopros de musas, tágides, ninfas e ventos de tempestades adamastóricas; que caldeara de História, estrelas, mitos e lendas, de amor, aventuras e desventuras; que moldara num mar bravo de onduladas bigornas com martelo dourado e flamejante turquês; a que deu contornos, forma e brilho com cinzel de reserva olímpica, destinada e limitada a si e seus pares , e que concluiu com têmpera em águas de vertidas mágoas e nos óleos dos cegos olhos da política de uma sociedade contemporânea de obscurante compreensão e magra indulgência.

Embrenhava-me então e devorava e adorava os versos, as estrofes ou estâncias, os dez cantos, a construção imortal! Embora não a entendesse muito bem, sentia-me, no entanto, grato e regozijava-me por ser um dos raros, um eleito a quem foi concedida tal graça, e só me lembro de pensar como é que alguém podia ser senhor de tal arte e sabedoria...!  E tive sorte acrescida já que era um exemplar editado com todos os cantos, enquanto, naquele tempo, o “canto nono”, aquele da Ilha dos amores…


……………………………………

Toda banhada em riso e alegria,

Cair se deixa aos pés do vencedor,

Que todo se desfaz em puro amor.

 

Oh, que famintos beijos na floresta,

E que mimoso choro que soava!

Que afagos tão suaves! que ira honesta,

Que em risinhos alegres se tornava!

O que mais passam na manhã, e na sesta,

Que Vénus com prazeres inflamava,

Melhor é experimentá-lo que julgá-lo;

Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo. (*)

 

…, estava interdito no ensino liceal, daí que os livros aprovados fossem antecipadamente mutilados pelas editoras, de acordo com diretrizes governamentais salazaristas.

 

O segundo veio logo a seguir e foi lido a meias com um amigo, ao Rodeio, nas suas scaleras; líamos ao mesmo tempo porque o livro também não era seu e tinha prazo para o devolver. Era “A Rosa do Adro”, de Manuel Maria Rodrigues, escrito em 1870. Livros e conteúdos parecidos não eram… de todo... mas acho que me fez bem. Ao menos serviu para despertar a puberdade e imaturas qualidades e sentimentos que ainda se encontravam envoltos em manto de natural inocência, e muita ingenuidade para não lhe chamar ignorância…

 

Quem me dera amar um dia,

Ter amor, ter afeição.

Ser escrava, dar a vida

Por um terno coração.

 

Se tu queres amor, ó bela,

Eu te dou amor bem puro;

Se tu juras ser só minha,

Será belo o meu futuro. (**)

Notável, o Zé Maria… 

Não tinha quintas nem quintais; não tinha pomares, hortas e lezírias; nem courelas, oliveiras, matos e cabeços; não tinha vacas nem cabras; não tinha onde cair morto…, mas deixou-me por herança algo mais valioso que tudo isso: legou-me o interesse pelo misterioso e infinito universo sem marcos nem fronteiras, com horizontes a perder de vista. Planos espaciais euclidianos com seus axiomas e postulados, teoremas pitagóricos e azimutes cartesianos com pontos e coordenadas de orientação; admiráveis caminhos de beleza e de liberdade espiritual; vias e comunicações de excelência com sentido da verdade e honestidade, onde se pode circular sem poluir ou pagar impostos com toda a gama de veículos, cujas patentes dão por desejo,  paixão, razão, vontade  e  conhecimento; regatos e rios de ciências e experiências nos quais correm respeitáveis talentos e virtuosas sabedorias.

Tudo num baldio de floresta exuberante e repleto de frondosas árvores que eminente botânico metodicamente ordenou, classificou, catalogou, valorou e registou nos respetivos cânones, entre muitos outros, por Pitágoras, Galileu, Da Vinci, Newton, Einstein, Darwin, Espinosa, Shakespeare, Schopenhauer, Voltaire, Henri Bergson, Kant, Comte…,  cujas folhas são ricas e douradas patacas  perpétuas,  prenhes da esplendorosa luz dos génios, descodificada em caracteres configurando fórmulas, vocábulos, proposições… e lições; um éden adornado com flamejantes matizes de Rembrandt, Renoir, Marc Chagall, Gauguin, Michelangelo, Dali, Rubens, Picasso …, podendo, ao mesmo tempo, deleitar os ouvidos com sublimes arroubos imortais de Tchaikovsky, Wagner, Strauss, Verdi, Bach, Haendel, Mozart, Chopin, Brahms Um espaço de amplitude imensurável onde as sementes germinam, florescem e frutificam espontaneamente e que todos podem explorar e fruir e partilhar sem avenças nem desavenças.

Acima de tudo, este  Zé Maria, inculcou-me a cobiça do saber e as ferramentas para o satisfazer, assim como o imenso querer para com muito sacrifício e demais trabalho conduzir e educar os seus dois netos, esses sim, doutores, sem se deterem, qualquer deles, em repetições de anos ou cadeiras, desde a pré-primária, no colégio, até aos canudos das faculdades, coroados com dois bonitos chapéus de pós-graduação!

 Mas…ó senhores!...

Um homem como ele, naquele tempo, num meio que por razões óbvias lhe era hostil, rude, adverso; completamente desprovido de vivos horizontes sociais e intelectuais; isolado, criticado e sem qualquer escora de apoio no seio dos “ilustres”, para que chegasse a tal estado de ponderação teve de cheirar e sentir as fezes do mundo em que o mundo vivia. Teve de suportar em corpo e espírito dantescos flagelos morais; enfrentar enganos, desilusões, incompreensões, traições e covardias; conhecer a essência das suas causas, e possuir a força e o saber para calcar aos pés temores e preconceitos obscurantistas; repugnar sombrios e zelosos fanáticos ou inspirados sectários que desde a idade medieval, do tempo de Otão I ou do Sacro Império, barbaramente dominaram os povos.

 

Os mesmos que, depois, já nas planuras submissas, aos vencidos, reverentes e humilhados prometeram hipócritas recompensas para depois da morte em troca de cega obediência e serviços e sacrifícios e contribuições simoníacas, ou, em alternativa, ameaçando-os com  falsos e demagógicos castigos e sofrimentos eternos, rebuscados nas subtilezas da metafísica, abeberada nos tempos e nas ideias e escritos platónicos e aristotélicos, mas adulterada e burilada por sumas teológicas a jeito e preceito para os fins desejados, resultando em tão abstrata e duvidosa nos conceitos quanto intolerante e cruel na aplicação compulsória. 

 

E ter ainda a coragem para, arrostando com impiedosas vicissitudes físicas e materiais, conservar a sua intrínseca vontade, orgulhar-se do estatuto de arrogado positivista, manter a mesma atitude e desprezar o que parecia – e era, e foi – inexorável…

 

 

Constantino Braz Figueiredo

          (02/03/2009)

 

 

*   Camões – Os Lusíadas, canto nono, estâncias 82 (final) e 83

** Quadras colhidas no livro referenciado, citadas de memória de 60 anos

 

 






Memórias de Infância

 

Lembranças de garoto de aldeia 

Não trato aqui de contar a minha vida em Cebola, minha terra, meu orgulho. E tento desviar-me o mais que me permitem estes desajeitados relatos do recurso a repreensíveis lamechices, embora, de todo, não estarei livre de, aqui e ali, inadvertidamente, cair nessa pecha.  Apenas recordo  emoções, traduzidas de lembranças inapagáveis, e é meu desejo, com o melhor que sei e  posso,  enquadrá-las com a História, amparo deste pequeno contributo na presunção de que assim, situando as coisas,  melhor se compreenderá como era a existência na  nossa terra, naquele pequenino universo, cotejada com  o que se passava no mundo que a influenciava; como decorriam os dias nessa longínqua época, os meus e os de muitos, ou de quase todos, nascidos durante e entre guerras, na alternância de períodos de razoáveis alegrias e satisfações e de algumas tristezas e muitas carências.  

No diz tu, digo eu, em alegres e inócuas brincadeiras e bem sacrificadas atividades, caldeados  nas forjas do companheirismo, da amizade e entreajuda, fomos adquirindo o traquejo, a moral, o comportamento, que pela vida fora tanto nos haveriam de valer e orgulhar, e lá fomos crescendo e assim chegámos ao trabalho, a adultos, à tropa, e assomámos ao mundo que nos acolheu naturalmente, porque para isso já estávamos preparados por adequado e bem esforçado tirocínio.

Entretanto...

Os adultos mais esclarecidos ou para aí voltados, liam o jornal ou ouviam quem o lia ou iam para o estabelecimento do “Pedoa”, à Cruz da Rua, que, na loja de vinhos e outros artigos, tinha a única telefonia pública. Ali se juntavam  para ouvir o noticiário da uma, sempre à espera de uma notícia que tivesse acabado com a maldita guerra e o abominável Hitler, e os relatos de futebol aos domingos pelas quinze. Era o tempo da subjetiva, ostentosa e aberrativa quão descabida alcunha dos violinos, que só tocariam música para entreter português porquanto a Espanha, a Inglaterra, a Áustria, a Argentina, apenas com castanholas, bifanas, valsas e tangos, brindavam-nos  com oito, nove ou dez e depois até já se recusavam a fazer jogos, mesmo particulares, com grupos portugueses incluindo a seleção.

Havia mais duas telefonias, os rádios, como se dizia, uma a dos Batistas, à Eira, que generosamente, bem alto para o povo ouvir, nos deliciava com música e programas da Emissora Nacional, dirigidos pelos locutores Pedro Moutinho, Igrejas Caeiro e Jorge Alves, depois Alfredo Raposo, Artur Agostinho e outros. O Fernando Pessa era mais para documentários cinematográficos. Colocavam no ar música sinfónica, marchas, ranchos, fados e canções ligeiras, o Alberto Ribeiro, a Amália, Luís Piçarra, Hermínia Silva, Francisco José…. Outra telefonia era do meu padrinho,  que esporadicamente também facultava para se ouvir o relato de jogos mais importantes…. Havia, portanto, três rádios que pareciam caixotes como as primeiras televisões de 66cm a preto e branco. Poderia haver mais algum, não o nego, mas dele não havia sinais.

 

Viviam-se então em Cebola creio que os melhores dias de sempre. Havia dinheiro, bastante dinheiro e fartura de alimentos. As escolas abarrotavam. As instituições concelhias e estaduais não previram nem conseguiram acompanhar a capacidade e génio reprodutivo dos homens e mulheres do kilo e saltipilha. De modo que, a breve trecho, eram apenas duas salas e duas professoras para mais de centena e meia de alunos, as sacrificadas D. Maria José Ventura (rapazes) e D. Alice Clotilde Almeida (meninas). Não sei qual o motivo, mas a proporção era de dois rapazes para uma rapariga, em campos separados, não fosse haver por ali algum mexerico infantil! Mesmo no Inverno rigoroso, dentro da escola não se dava pelo frio. Pudera, com cem crianças a respirar em sala fechada!…

 

De repente…

 

Mil novecentos e quarenta e cinco, seis de agosto, bomba atómica sobre Hiroxima, três dias depois, dia nove, outra bomba é lançada sobre Nagasaki. Resultado: cento e oitenta mil civis morreram, muitos milhares de feridos e estropiados, mais de duzentos mil ficaram direta e psicologicamente a sofrer de doenças para o resto das suas vidas, e as gerações seguintes, indiretamente, de outras enfermidades causadas pela contaminação dos produtos dos solos e subsolos (águas e colheitas hortícolas), sobretudo as crianças e pessoas de saúde mais frágil. Aparte as razões, de justificação grosseira, embora  laboratorialmente fabricada, prevalece o senso comum de que foi um ato gratuito, de má-fé, porquanto a guerra já tinha acabado e não foram procurados alvos militares, mas objetivamente cidades, centros de cidades – quanto mais ao centro melhor - porque quantas mais mortes, maior seria o êxito da operação.

O mortífero sucesso foi logo difundido por todas as comunicações possíveis, sobretudo as militares do agressor, para que aterrorizasse todo o mundo e rapidamente se visse, se soubesse e ficasse bem vincado quem era bom, quem era o melhor e quem mandava; tal como o previsto, colheu, pois o objetivo primeiro era impressionar as potências beligerantes; tal como o quis e julgou, serviu os seus interesses imediatos e futuros nos domínios político-económico e militar.

Foi o ás de trunfo para jogar forte na partilha e dissimulada protetoria dos territórios conquistados e, acima de tudo, o primeiro ato político para a liderança e influência futura nas nações de todo o Globo. Com o sacrifício daqueles infelizes  e propaganda a condizer, começara ali a Guerra Fria – as lutas pelas terríficas armas atómicas e nucleares e pelas tecnologias espaciais, enfim, a luta pelos domínios do poder, do prestígio e das influências.

 

Já com quase oito anos, lembro-me de, ao coberto (onde a rua bifurca para a Costa e para os Cabecinhos), ouvir o meu pai, que todos os dias lia o “Século”, dizer para a sua tertúlia – os suspeitos do costume: “Pronto! Aconteceu o pior… lançaram a primeira bomba atómica.  Arranjaram-na bonita. A guerra acabou, mas daqui em diante outras guerras virão e bem piores que esta. Cada um vai sempre querer mais e melhores armas destruidoras que o vizinho. Só o respeito e principalmente o medo que tiverem uns pelos outros os poderá parar”.  E tinha razão. Lá longe, tocavam já tambores para novos conflitos - a Coreia, o Vietname, Cuba…  e por aí fora.

 

A partir daí, Cebola, “um cantinho do céu”, como lá soía dizer-se, começou imediatamente a ter carências de toda a ordem, o dinheiro nada valia pois não havia o que comprar. Os mais pobres ou de famílias mais numerosas, passaram então das boas… De pouco valia algum pecúlio proveniente do ainda quente “kilo”. O pão, o leite, a farinha, outros artigos de primeira necessidade, eram racionados e adquiridos com senhas que eram distribuídas consoante o agregado familiar. Lembro-me de quando, logo às cinco da manhã, com essas senhas, ir tomar lugar numa bicha para a padaria da Eira, onde era fornecido apenas um quarto de um “trigo” de um quilo (quilo?!) por dia e por pessoa… até se acabar. Os outros iam à fornada da tarde se por acaso houvesse fornada…

 

Enquanto isso, dizia-se que Salazar velava e Cerejeira rezava para que não tivéssemos guerra, embora o povo morresse à míngua. Não sei, nem percebia muito do que se passava, mas a Salazar era atribuída uma frase política bem reveladora: “Livro-vos da guerra, mas pelo sacrifício da fome”. E Cerejeira, também nesse tempo, agradando ao seu amigo, compunha: “Abençoada a fome que faz o povo humilde”.


Peço desculpa por invocar alguns nomes que cito com todo o respeito e com a disposição de que se os próprios ou os familiares com isso sentirem algum desconforto os retirarei imediatamente.

 

Constantino Braz Figueiredo

 

 



PONTOS DE CONTOS (2)

Pois é!...
 
Mas isso era o nosso ponto de vista, e o deles? Também o tinham, claro, e não nos era nada favorável. Milheiros de vezes, no trabalho, éramos confrontados com hipotéticos e duvidosos descuidos dos nossos avoengos, sempre improváveis, por certo inventados ou rebuscados em outros lugares, de outras gentes, por isso injustos, mas que eles não se coibiam de trazer à colação, tendo subjacente, unicamente, como vetor diretor, o angelina prazer de nos fazerem pirraça. Depois, ou até antes, também nós, provocatoriamente, com calculada, manhosa e inocente ingenuidade, gostando da liça, motejávamos com as que sabíamos sobre eles, ou a eles atribuídas porque no momento era o que mais nos convinha; um ciclo vicioso de paleio barato que nunca era tomado a sério, pelo que a facécia – nunca uma guerra! – até tinha a sua graça.

Destarte…

Contavam eles, por exemplo, que, certa vez, quando inauguraram a primeira estrada de terra batida das Minas para Cebola – vá lá saber-se em que data… –, antes de chegarem as entidades com os seus espadas último modelo, ou talvez apenas um desfile de carroças e carros de bois em substituição dos luxuosos e espampanantes rolls royces, pontiacs e Cadilacs, surgiu um homem como se fosse o batedor abrindo caminho para a comitiva oficial. Vinha montado na sua bicicleta – uma pasteleira todo-o-terreno daquela época, limpa e pintada de novo com as cores da bandeira nacional; com equilíbrio perfeito e estilo Jackes Anquetil, quase deitado, desfez a curva para a reta da ponte, logo sprintando e chegando mesmo a fazer o cavalinho; ao ver-se a habilidade do artista, exímio em cima das duas rodas, pairou a ideia de que se aproximava algum circo! E então, de cabeças levantadas e mirones bem concentrados na curva, quando todos já esperavam que ali aparecesse, em traje de rigor, uma fanfarra de bombos, pandeiretas e cornetas, precedendo um alegre e aguerrido cortejo de macacos, leões e elefantes, tratadores e domadores, vistosas e apelativas girls, palhaços, comediantes e ilusionistas, acrobatas, trapezistas e equilibristas, eis que, inopinadamente, para espanto geral, do meio do público saiu uma veneranda decavó que, não se contendo, e como que a rogar clemência ao Divino, levantou os braços para o céu, olhou o infinito, persignou-se… e exclamou:

– Credo! Jesus! Maria! Estamos no fim do mundo… está para chegar o Juízo Final! Onde é que já se viu um homem montado nuns óculos!?

Óculos… óculos…

Outra vez, quando um ourives terá vendido um rico cordão de ouro a uma sortuda do garimpo, esta, no ato do pagamento, ter-se-á lembrado que nesse momento não tinha o dinheiro certo disponível, faltando 100 escudos para a conta ficar saldada. O ourives, que conhecia bem toda a gente e mais quem tinha haveres e dinheiro, obeso de simpatia, apanágio indispensável na difícil arte de bem comerciar, tratou logo de a pôr à vontade dizendo as coisas do costume, aquilo que se impõe em tais ocasiões. Que isso não tinha importância, que ficasse descansada, que pagaria só para o mês seguinte ou quando melhor lhe calhasse, etc., apenas queria que escrevesse o valor do débito num papel qualquer. A mulher, encantada, e logo pronta para fazer uso dos conhecimentos adquiridos na primária, ademais vendo ali ensejo para mostrar que um diploma é um diploma ainda que da 3ª classe, de que poucas nesse tempo se podiam gabar, pegou num papelucho e, com teatral destreza, escreveu: Devo ao senhor ourives sem escudos. O ourives pegou no papel, mirou-o, remirou-o e, sorrindo para não parecer inconveniente, foi dizendo em jeito de brincadeira: “Ora a senhora … não quer dizer que nada me deve, pois não? Olhe que 100 escreve-se com um c. Sem é zero; é nada; é coisa nenhuma!...”

– Pois… tem razão, snhô ourives – apressou-se a mulher –, desculpe, é que me esqueci dos óculos…

Com óculos ou sem óculos…

…tínhamos de aturar a rábula, chistosa e irónica, bem gostosa aliás, de um homem dito de Cebola chamado João, quem sabe se descendente do lendário Don Juan, ou simples aspirante a Casanova enformado em alvos seixos e cebolas da própria cor, que certo dia foi a julgamento, não sendo, contudo, explicado pelos contadores se a sessão terá ocorrido no tribunal de Coimbra, Arganil, Fundão ou Covilhã, acusado de um pesado crime por ter prometido a mão a uma moça supostamente chamada Ladeira Cartagena e depois casado com outra de terra vizinha; o juiz era do Minho ou de lá perto (era um homem do norte, carago!); tinha fama de firmeza nas decisões e era tido como justo e clarividente na aplicação das sentenças, mas também de cortês, bonacheirão e divertido, e quando convidou a depor uma testemunha de acusação que por acaso era padeira de distribuição ou venda porta a porta, esta terá feito a sua declaração com discurso na ponta da língua, desde há muito pensado, treinado, preparado: “É tão verdade, senhor juiz – disse, sem hesitação – que a menina Ladeira estava à porta da sua casa a comprar-me um pão e já não mo comprou por ter desmaiado quando uma amiga lhe disse que o senhor João se tinha casado com outra daquela terra ao pé”. O juiz tirou os óculos; encarou-a calma e fixamente; delongou os olhos no ansioso público, na queixosa, no réu e em todos os oficiais e oficiosos elementos que compunham a audiência; cofiando a barbicha, aproveitou o ensejo para disfarçar um ligeiro pigarrear desobstruindo a traqueia, e, quando já todos esperavam que iria haver segundas núpcias, com voz limpa e bem timbrada, calando o sacramental silêncio, desferiu:

– Ora balha-nos Daus, quando vem uma desgraça nunca fica só por ali – já não bastava a menina Ladeira não receber o senhor Joon, também a senhora padeira não vendeu o seu poon”.

E voltou a pôr os óculos!

Conto estas pequenas estórias à guisa de divertimento. Em pontos de contos (1) escrevi algumas (poucas, atendendo ao rol) de nós sobre os vizinhos; desta vez, apenas uma amostra dos vizinhos sobre nós. Mas, a sério – e agora bué a sério –, bem sei que, hodiernamente, não parece que haja pessoas de comportamento normal que, honestamente, se importem muito com o que foi, como terá sido, em Cebola e noutros lugares, o viver e as vicissitudes dos antepassados, ainda que, aqui e além, entre pessoas mais sensíveis ou mais arreigadas à ancestralidade parental, possa haver condescendente curiosidade, conquanto vestida de natural e indisfarçável sobranceria, para aceitar e compreender o que lhes fora transmitido como certo pelos pais e avós que as terão experiênciado, pelos parentes cronologicamente mais próximos ou mais afastados ou tão-só por decanos conterrâneos que neste site e em outros lugares, com imagens e palavras, embora inevitavelmente impregnadas de eufemismos e subjetividades sempre suspeitas, que os podem conduzir ao ceticismo, mesmo desinteresse, e com total, legítima e justificada razão.

Óculos …

Não usava, mas a partir deste mês passei a usar, com lentes progressivas, embora, felizmente, de baixa graduação – talvez fosse isso (a novidade, a custosa adaptação… o preço…) que me levou a selecionar estas coisas dos óculos…vá lá saber-se...

Boas Festas

Constantino Braz Figueiredo