Pois é!...
Mas isso era o nosso ponto de vista, e o deles? Também o tinham, claro, e não nos era nada favorável. Milheiros de vezes, no trabalho, éramos confrontados com hipotéticos e duvidosos descuidos dos nossos avoengos, sempre improváveis, por certo inventados ou rebuscados em outros lugares, de outras gentes, por isso injustos, mas que eles não se coibiam de trazer à colação, tendo subjacente, unicamente, como vetor diretor, o angelino prazer de nos fazerem pirraça. Depois, ou até antes, também nós, provocatoriamente, com calculada, manhosa e inocente ingenuidade, gostando da liça, motejávamos com as que sabíamos sobre eles, ou a eles atribuídas porque no momento era o que mais nos convinha; um ciclo vicioso de paleio barato que nunca era tomado a sério, pelo que a facécia – nunca uma guerra!
Destarte…
Contavam, por exemplo, que, certa vez, no dia da inauguração da primeira estrada de terra batida das Minas para Cebola – vá lá saber-se em que data… talvez em finais do século XIX ou no começo do século XX –, antes de chegarem as entidades com os seus espadas último modelo ou, para os poupar, apenas um desfile de cavalos, carroças e carros de bois em substituição dos seus luxuosos e espampanantes rolls royces, pontiacs e Cadilacs, surgiu um homem, como se fosse o batedor, abrindo caminho para a comitiva oficial. Vinha montado em bicicleta – uma pasteleira todo-o-terreno daquela época, limpa e pintada de novo com as cores da bandeira nacional. Com equilíbrio perfeito, estilo Jackes Anquetil, quase deitado, desfez a curva da tiá Olivia para a reta da ponte, logo sprintando e chegando mesmo a fazer o cavalinho. Eis que, inopinadamente, para espanto geral, do meio do público saiu uma veneranda decavó que, não se contendo, e como que a rogar clemência ao Divino, levantou os braços para o céu, olhou o infinito, persignou-se… e exclamou:
– Credo! Jesus! Maria! Estamos no fim do mundo… está para chegar o Juízo Final! Onde é que já se viu um homem montado nuns óculos!?
Ao ver-se a habilidade do artista, exímio em cima das duas rodas, pairou a ideia de que se aproximava algum circo! Então, atentos, de cabeça levantada e mirones bem concentrados na curva, todos ficaram ansiosos à espera que ali aparecesse, em traje de rigor, uma fanfarra de bombos, pandeiretas e cornetas, precedendo alegre e aguerrido cortejo de macacos, leões e elefantes, tratadores e domadores, vistosas e apelativas girls, palhaços, comediantes e ilusionistas, acrobatas, trapezistas e equilibristas.
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Outra vez, quando um ourives terá vendido um rico cordão de ouro a uma sortuda do garimpo, esta, no ato do pagamento, ter-se-á lembrado que nesse momento não tinha o dinheiro certo disponível, faltando 100 escudos para a conta ficar saldada. O ourives, que conhecia bem toda a gente e mais quem tinha haveres e dinheiro, obeso de simpatia, apanágio indispensável na difícil arte de bem comerciar, tratou logo de a pôr à vontade dizendo as coisas do costume, aquilo que se impõe em tais ocasiões. Que isso não tinha importância, que ficasse descansada, que pagaria só para o mês seguinte ou quando melhor lhe calhasse, etc., apenas queria que escrevesse o valor do débito num papel qualquer. A mulher, encantada, e logo pronta para fazer uso dos conhecimentos adquiridos na primária, ademais vendo ali ensejo para mostrar que um diploma é um diploma ainda que da 3ª classe, de que poucas nesse tempo se podiam gabar, pegou num papelucho e, com teatral destreza, escreveu: Devo ao senhor ourives sem escudos. O ourives pegou no papel, mirou-o, remirou-o e, sorrindo para não parecer inconveniente, foi dizendo em jeito de brincadeira: “Ora a senhora … não quer dizer que nada me deve, pois não? Olhe que 100 escreve-se com um c. Sem é zero; é nada; é coisa nenhuma!...”
– Pois… tem razão, snhô ourives – apressou-se a mulher –, desculpe, é que me esqueci dos óculos…
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Com óculos ou sem
óculos…
A Segunda Boda
Um jovem de Cebola de
outras eras, o João, quem sabe se descendente do lendário Don Juan ou simples
aspirante a Casanova, bem enformado, pujante e garboso, com estatura e músculos
granjeados no duro trabalho, em substituição de ginásios desconhecidos ou por
inventar e o desporto uma miragem, com indisfarçável anseio no universo
feminino, da terra e das redondezas, certo dia foi a julgamento à comarca da
Covilhã, indiciado de um “pesado” crime que consistia em ter prometido a mão a
uma moça chamada Ladeirinha e depois ter recebido uma outra de terra vizinha.
O comportamento do
João, hoje, pode parecer - e talvez seja – fútil, leviano, de somenos, mas
antigamente, sobretudo nas aldeias, era coisa séria que bulia com o dever
moral, o desrespeito, não só com as moças, mas também e sobretudo com as
famílias. Em certos casos era levado muito a preceito e tido como uma vergonha,
ofensa grave à própria honra que manchava o bom-nome ancestral. Porém, a lei,
desde que não houvesse ofensas graves, vias de facto, não o julgava assim.
Daí…
O Juiz era um homem
do Norte. Gozava da reputação de firmeza nas decisões, justo e clarividente
na aplicação das sentenças, e também não se coibia, mesmo nas audiências mais
acesas, de ser cortês, bonacheirão e divertido. Pontualmente rigoroso, pôs os
óculos mal se sentou e iniciou a sessão com as tradicionais pancadinhas do instituído
martelo, logo convidando a depor a
testemunha de acusação, uma padeira de distribuição ou venda de broas de milho
porta a porta. Esta, desfrutando a importância que a ocasião lhe conferia,
tomou o seu ar de circunstância, ajeitou a rebelde melena que sempre a traía
nos instantes e locais menos convenientes, respondeu agilmente às perguntas
usuais e, sem hesitar, fez o depoimento com discurso na ponta da língua, desde
há muito pensado, treinado, repetido - bem preparado:
– Senhor Juiz, ninguém
sabe mais do que vou dizer. Se alguém soubesse eu também saberia, porque na
minha atividade diária falo com muita gente, com todas as pessoas - frisou. É
tão verdade senhor juiz – continuou fitando o réu –, que a menina Ladeirinha
estava à porta da sua casa a comprar-me um pão e já não mo comprou por ter
desmaiado quando uma amiga lhe disse que o senhor João tinha casado com uma
cachopa da Panasqueira.
O juiz encarou-a calma
e fixamente; olhou e apreciou a bonita queixosa, delongou os olhos no réu, no ansioso
público, nos advogados e em todos os oficiais e oficiosos elementos que
compunham a audiência; aproveitou o ensejo para pigarrear disfarçando uma
ligeira obstrução da traqueia, e, quando já todos esperavam que haveria
segundas núpcias - boda à vista! -, com voz limpa, calando o sacramental
silêncio, fez gala da pronúncia nortenha, desferindo:
– Ora balha-nos “Daus”,
quando bem uma desgraça nunca fica só por ali. Já não bastava a Ladeirinha deixar
de receber o senhor Joon, também a padeirinha não bendeu o seu poon”.
E, enquanto arrumava
os óculos e dava a martelada final, foi dizendo com sorriso malicioso:
- Bão em paz, carago.
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Conto estas pequenas estórias à guisa de divertimento. Em pontos de contos (1) escrevi algumas (poucas, atendendo ao rol) de nós sobre os vizinhos; desta vez, apenas uma amostra dos vizinhos sobre nós. Mas, a sério – e agora bué a sério –, bem sei que, hodiernamente, não parece que haja pessoas de comportamento normal que, honestamente, se importem muito com o que foi, como terá sido, em Cebola e noutros lugares, o viver e as vicissitudes dos antepassados, ainda que, aqui e além, entre pessoas mais sensíveis ou mais arreigadas à ancestralidade parental, possa haver condescendente curiosidade, conquanto vestida de natural e indisfarçável sobranceria, para aceitar e compreender o que lhes fora transmitido como certo pelos pais e avós que as terão experiênciado, pelos parentes cronologicamente mais próximos ou mais afastados ou tão-só por decanos conterrâneos que neste site e em outros lugares, com imagens e palavras, embora inevitavelmente impregnadas de eufemismos e subjetividades sempre suspeitas, que os podem conduzir ao ceticismo, mesmo desinteresse, e com total, legítima e justificada razão.
Óculos …
Não usava, mas a partir deste mês passei a usar, com lentes progressivas, embora, felizmente, de baixa graduação – talvez fosse isso (a novidade, a custosa adaptação… o preço…) que me levou a selecionar estas coisas dos óculos…vá lá saber-se...
Boas Festas
Constantino Braz Figueiredo
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