sábado, 27 de junho de 2009

Bye-bye, pintor


 

Por um singular acaso, que propositadamente omito porque nada acrescentaria a esta história, certo dia bateu-me à porta um sujeito que dizia ser pintor de quadros a óleo e desenhos a carvão. Disse-me que não era conhecido porque não tinha condições para trabalhar nem espaço para expor. Ao analisar a questão, abri-lhe as portas de um barracão semiabandonado que possuía nas traseiras de minha casa, e porque sempre fui tido como um ferrenho admirador da arte, arranjei-lhe ainda tinta e telas e mais algum material necessário para o ajudar na sua atividade cultural. Ali poderia pintar e expor à vontade desde que ele próprio ou os ocasionais visitantes não causassem perturbações à ordem social, às crenças religiosas, ao sossego e tranquilidade da comunidade local. Eu mesmo fiquei visita assídua, não só para admirar a sua arte mas também para me assegurar de que tudo decorria sem prejuízo do que ficara estabelecido.


Ele nada pagava; eu nada recebia. Melhor, eu cedia-lhe o espaço e como paga ele pintava e regalava-me os olhos com os seus belos quadros; a mim, à minha comunidade e aos visitantes que eram já muitos e com clara tendência para aumentar. As coisas iam bem, até que um dia recebi queixa de uma influente comunitária, uma matrona fervorosa devota de S. Pedro e S Paulo e já indiciada para candidata a diretora do núcleo duro das novenas. A santinha, madrepérola de jeorjá ou de moreirá, ficara deveras constrangida porque o pintor estava a expor um quadro com cenas escaldantes, provocatórias, vexando os bons costumes e aviltando os valores ancestrais social e universalmente reconhecidos como os únicos aceitavelmente corretos.

O artista ferira a sensibilidade de alguém, tocando o seu conceituado prestígio e, sobretudo, os seus sagrados interesses materiais, ultrapassando, por isso, os limites da liberdade criadora ou se deixando por ela ultrapassar! Avisei-o imediatamente de que estava a pisar o risco, e ele retirou o quadro e pediu desculpa a mim e a toda a comunidade. Mas eu tinha obrigação de saber que artista é artista e quando o seu génio é invadido por satânica inspiração, transfigura-se e fica incorrigivelmente possesso, com loucos arrebatamentos e diabólicas pinceladas a que o vulgo apoda de talentosa criatividade.

Nada há que o detenha…

E logo repetiu a façanha, dando lugar a mais reclamações oriundas da eclésiana matrona, desta vez já encabeçando o tal núcleo duro das novenas, com o infernal dante empunhando a bandeira do bota para o inferno senão vou eu. Então, com nova advertência, o quadro, o pomo da discórdia, foi escondido lá bem atrás e bem protegido de olhares indiscretos.

Ficou indignado!

A princípio não fiz caso nem respondia às suas sempre crescentes reclamações. Encrespou-se o homem e começou a aborrecer-me a sério. Esquecido do contrato e do bem que lhe fizera, ousou enfrentar-me como se o usufruto do espaço fosse já um direito adquirido; e eu, não tem mais – por cada ação há sempre uma reação –, retirei-lhe a chave, mudei a fechadura, e o barracão, agora já com outros artistas, guarda ainda aquelas preciosidades, ou aquelas porcarias, não sei bem, mas que, ainda assim, considero minhas porque foram criadas, pintadas, expostas e valorizadas dentro daquilo que é meu, e é lá que devem ficar!

A partir daí, sem nunca pedir para reentrar, digo-o por justiça e em abono da verdade, insistiu tanto, tanto para lhe entregar as pinturas que um dia, com pena daquele infeliz, botei tudo à porta, mas ele é duro e parece ter alguma dignidade, não aceitou porque faltava uma, dizia. Fui de novo lá e enquanto catava a que faltava, pensei, ou o d. paolo mo teledisse: mas porque há de ele levar os quadros?

Ora!!!...

E voltei a pôr tudo no seu lugar!...

Então, ao ver-se na rua e sem nada poder fazer para retirar o que diz pertencer-lhe, divaga por aí como alma penada apregoando que lhe roubei a obra! Só demonstra que não percebe o velho chavão com milenares foros consuetudinários: o que está em Portugal é dos portugueses. Se não era, passou a ser, por confiscação; confiscação compulsória, digo eu!

Agora chateia-me com mails, mas não lhe ligo. Há de cansar-se, lixar-se e deixar-me em paz. Ainda assim reconheço que poderá haver alguma prepotência na minha atitude. Mas que querem? Sou forçado ou aprendi com os grandes caciques e alguns padrinhos deste burgo que me rodeiam e me sujeitam, como o trinitário d. paolo, que não ousa enfrentar a eclésiana matrona com medo de retaliações e sabotagem da cruzada a que há muitos anos louvavelmente se propôs, e as picadas daqueloutro que procura um xxl para satisfação pessoal, e ainda, por maioria de razão, pelo medo que infunde o temível inferno de dante. Gosto da arte mas não sou artista; embora este pintor me causasse uma certa simpatia, tenho a certeza que ele entende que eu nada mais poderia fazer em defesa e para defesa dos valores desta mui nobre sociedade!… É preciso manter a comunidade na ordem, coesa, para que haja paz e todos se deem bem e sejam felizes. Isso é a empreitada que me incumbiram e a que meti ombros sem reservas; isso é o menos que todos esperam de mim. Descansem que cumprirei…

E a ele, coitado, de nada lhe valerá a insistência, nem que venha para aí com a Inspeção Geral de Atividades Artísticas, invocando Direitos de Autor.

Bye, pintor!...

Constantino Braz Figueiredo





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