O carriço
do Valedemuro
Ainda não tinham sarado as feridas morais da Primeira Guerra
Mundial; ainda o ar parecia impregnado dos gases incapacitantes e letais
utilizados como armas pelos beligerantes; ainda se choravam os mortos, entre
eles mais de dois mil portugueses que pereceram na carnificina de
Foi fácil assim que os ditadores, ainda que pelo povo sufragados, entre
outros Mussolini, Hitler e Salazar se apoderassem das rédeas do poder, e que em
Espanha se abrisse uma fenda para o sucesso das falanges nacionalistas de
Franco, apoiadas pelos boinas verdes de Mussolini, por Salazar, que, às
ocultas, sob a capa da neutralidade, enviou a Legião Viriato e sobretudo pela aviação hitleriana, bem patenteada
nos vários bombardeamentos a cidades, sobressaindo
os de Madrid e de Guernica, em Abril de trinta e sete, cuja horrorosa
devastação viria a inspirar Pablo Picasso a pintar o famoso quadro com aquele
nome, que finalizou em Outubro do mesmo ano. Quadro que depois deu lugar a um
episódio tristemente pitoresco, quando, em mil novecentos e quarenta, um
oficial de alta patente, das tropas nazis que haviam conquistado Paris, fora
ver uma exposição do famoso pintor que decorria naquela cidade. Admirando com
sabedoria e manifesto entendimento a soberba obra, terá perguntado a Picasso:
“Foi você que fez isto”? “Não –
respondeu de pronto o artista –, foram vocês, alemães”!...
Com as economias em perda e sem solução, e o desemprego e a fome
em franca expansão – as ditaduras salvadoras, as lutas intestinais (guerras civis) não seriam mais do que um balão de ensaio para a mãe de todas as
guerras que eclodiu em 1939 (Hitler apenas esperou pela consolidação da vitória
franquista), deixando transparecer que logo que começasse seria bem-vinda porque desejada
(talvez se exagere, mas era, ao tempo, tida como um mal necessário) pelos timoneiros
das grandes potências. Seria apenas um pretexto para se lançarem na luta e com
isso poderem sarar os males que julgavam já incuráveis. Alguns, com artimanhas
políticas, diziam-se provocados para justificarem a entrada no conflito sem a ele serem chamados,
outros procuravam-no através de controversas
e estranhas alianças.
Foi neste plácido e prometedor ambiente que o mundo oferecia que, em Outubro de
trinta e sete, a seguir ao atentado a Salazar que ocorrera em Julho do mesmo ano, e quando, paradoxalmente, em Cebola
se vivia em paz e com dinheiro, resolvi
nascer. Foi precisa muita coragem, confesso! Não foi bem na povoação, diga-se,
mas ao Valedemuro, naquela casa isolada, aos pés da Panasqueira, logo a
seguir ao pontão da ribeira, junto à vereda que iniciava a subida para as
Minas. Meu pai, que ocupava um lugar de destaque nos quadros da empresa
mineira, tinha também uma casa a condizer, de privilégio, na Barroca Grande,
onde vivia com toda a família. Como esse cargo superior terminara, com ele se
foram as mordomias e privilégios. Havia que regressar a Cebola. Mas como já
tinha seis filhos e o sétimo com pressa de vir ao mundo, era urgente e
necessário restaurar e ampliar a casita da Costa. Mãos à obra, pois! Mas,
enquanto durassem os trabalhos, teria de arranjar um espaço para acomodar o seu agregado. O pior era que Cebola naquele tempo rebentava pelas costuras.
As famílias eram numerosas e havia muitos recém-casados cuja única solução era
ficarem a viver com os pais. Onde então? Havia lugar ao Valedemuro? Pois
seria ao Valedemuro! Era uma instalação precária? Pois que fosse, mas era um
abrigo, aliás transitório. Minha mãe estava grávida e ali me teve. Acho que não
me queixei… da casa!
Tínhamos um cão, o carriço, que, encontrado abandonado junto à
ribeira, logo foi adotado com todo o seu consentimento e contentamento. Segundo
dizem, gostava do meu choro, pois passava largas horas deitado junto ao rule,
mas também aproveitava para dormir. Dormia… porque é bom… dormir!
Contava a minha mãe que certo dia, tendo-me acomodado, bem amamentado, fora ali ao lado, à ribeira,
lavar uns trapos. Deixara a porta entreaberta para o carriço entrar e sair; meu
pai também andaria por perto ou estaria a chegar. De repente, o cão começou a
ladrar… e em comportamento nervoso e desusado, correu até onde estava o dono, e
numa dança estranha e inquieta começou a puxá-lo pelas calças e a bater-lhe com
o rabo, dando pequenas correrias em direção à casa. Meu pai foi atrás dele,
pois algo de insólito acontecia. Chegado a casa, o que viu? Uma cobra subia já
o rule
em que eu dormia, com destino, certamente, ao local de onde provinha o cheiro a
leite: a minha boca…
O texto que se segue, a negrito, cujo autor morreu em 1900 e
é ainda considerado um dos maiores filósofos do Século XIX, foi publicado 50
anos antes dos acontecimentos da minha narração. Leiam, que embora já um pouco
deturpado por ter sido escrito por um prussiano e por isso ter chegado até mim depois
de traduções em série – do alemão para o
inglês, do inglês para o brasilês e do brasilês para o português –, é um fragmento duma obra mundialmente
reconhecida, uma obra de beleza e valor incalculáveis, e é aqui inserido apenas
por haver ligeira analogia nos factos, que não na alegoria em si, que essa,
concebida por um génio, foi vestida de roupagem em forma de valores dramáticos,
poético-filosóficos, com simbolismos abstratos tais que eu nem em sonhos chegaria às suas
franjas.
(…)
Assim falava eu, em voz cada vez mais baixa, porque me
assustavam os meus próprios pensamentos e a sua oculta intenção, quando de
súbito ouvi uivar um cão ali perto.
Ouvira eu já alguma vez uivar assim um cão? Os meus
pensamentos tentaram lembrar o passado. Sim! Era eu criança, na minha mais
longínqua infância, ouvira um cão uivar assim. E vira-o também, com o pelo
eriçado, a cabeça erguida, trémulo, no meio da noite silenciosa, quando até os
cães acreditam em fantasmas.
E tive pena dele. Acabara há pouco de aparecer, num
silêncio de morte, a lua cheia por cima da casa: detivera-se com o disco
incendiado, sobre o telhado, como em propriedade alheia.
Foi isso que despertou o cão. Que os cães acreditam em
ladrões e fantasmas. E quando o tornei a ouvir uivar, tornei a sentir dó dele.
(…)
Encontrei-me de repente entre agrestes brenhas, sozinho,
abandonado à luz da solitária lua.
Mas ali jazia um homem! E o cão, a saltar e a gemer, com o pelo
eriçado — vendo-me a caminhar — começou
a uivar outra vez, e pôs-se a gritar. Nunca ouvira um cão pedir socorro assim.
Nunca vi nada semelhante ao que ali presenciei. Vi um moço
pastor a contorcer-se anelante e convulso, com o semblante desfigurado, e uma
forte serpente negra pendendo-lhe da boca.
Quando vira eu tal repugnância e pálido terror num
semblante? Adormecera, decerto, e a serpente introduziu-se-lhe na garganta,
aferrando-se ali?
A minha mão começou a puxar a serpente, a puxar ... mas em vão! Não conseguia arrancá-la da
garganta. Então saiu de mim um grito: “Morde! Morde!
(Aqui, ó crentes, perdoai-me! Quando li isto pela primeira vez, eu, Constantino,
pensei, aterrado, que o personagem estava a incitar a serpente para que
mordesse no homem…, mas, felizmente, Zaratustra continuou):
Arranca-lhe a
cabeça! Morde!” Assim gritava qualquer coisa em mim; o meu espanto, o meu ódio,
a minha repugnância, a minha compaixão, todo o meu bem e o meu mal se puseram a
gritar em mim num só grito.
Valentes que me rodeais! Exploradores, aventureiros! Vós
outros que apreciais os enigmas, se adivinhastes o enigma que eu vi então e
explicai-me a visão do mais solitário.
Que foi uma visão e uma previsão: que símbolo foi o que vi
naquele momento? E quem é aquele que ainda deve chegar?
Quem é o pastor em cuja garganta se introduziu a serpente?
Quem é o homem em cuja garganta se atravessara assim o mais negro e mais pesado
que existe?
O pastor, porém, começou a morder como o meu grito lhe
aconselhava: deu uma dentada firme! Cuspiu para longe de si a cabeça da
serpente e saltou para o ar.
Já não era homem nem pastor; estava transformado, radiante;
ria! Nunca houve homem na terra que risse como ele!
Oh! meus irmãos! Ouvi uma risada que não era risada de
homem... e agora devora-me uma sede, uma ânsia que nunca se aplacará.
Devora-me a ânsia daquele riso. Oh! Como posso eu viver
ainda? E como poderei suportar agora o ter de morrer?"
Frédéric Nietzsche in assim falava Zaratustra. (Visão
do Enigma)
(...)
Para
satisfação do carriço, comigo não se chegou a esse extremo, já que meu pai,
decidido pela aflição, correu para o rule e, sem pejo e sem qualquer receio,
apanhou a serpente que segurou com força e, tal que nem uma funda para
arremesso de pedras a grande distância, ou imitando um atleta lançador de
martelo, deu-lhe algumas voltas no ar, entontecendo-a, para de imediato lhe
esborrachar a cabeça na ombreira da porta.
Com
suprema alegria, o carriço fez o resto!...
O
carriço do Valedemuro…
Boas Festas
Constantino Braz
Figueiredo
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