Detrás de serra
Sempre que em Cebola aparecia algum estranho
procurando casa, com ares de quem se queria fixar, quase sempre negociantes de
gado e correlativos, ou gente de ofícios como alfaiates, sapateiros e afins, o
povo, curioso, naturalmente, perguntava-se:
– De onde será?
E o mesmo povo respondia-se, perentória e
invariavelmente – “de detrás de serra”.
Detrás de serra! …
Que melhor expressão para definir habitantes de
algum lugar indefinido que ficasse por trás daquele enorme maciço bicéfalo, uma
barreira natural quase intransponível que nos vedava o contacto visual com as
terras que sabíamos existirem, mas a cujo acesso estávamos quase
impossibilitados, a menos que um caso de força maior o exigisse ou a causa
fosse digna de tal sacrifício? Bem ouvíamos falar, além das vilas e cidades,
dos concelhos mais conhecidos, de aldeias e lugarejos como Aldeia das Dez,
Alva, Avô, Coja, Covanca, Fajão, Fórnea, Loriga, Piódão, Souto, Teixeira,
Varandas, Vide e outros recessos quase ignorados… mas ir lá!... Por mim falo: nunca encontrei
motivo que me atraísse a tais aventuras! É que, para guindar até àquelas
culminâncias os quilitos com que fui gratificado pela medrança, mais as broas
amarelas da tiá Olívia, a cinco paus cada uma, e os caldos de couves e feijões,
era preciso ter boa corda nos sapatos, quase os únicos meios de locomoção
daquele tempo em Cebola, rijas canetas e ar puro nos pulmões.
Houve gente, muita gente, quase toda a gente,
que nasceu, cresceu, viveu em Cebola e morreu sem nunca ter o atrevimento de agchör até ao cume. Não havia atalhos,
nem veredas ou carreiros, quem ia, ia a direito que era o melhor caminho, além
de ser o mais curto. Só me lembro de uma
vez ter-se organizado uma patuscada, mesmo, mesmo no picoto. Convidou-se uma
cozinheira e alugaram-se duas mulas para carregarem com as provisões. O almoço,
couvada cujo bacalhau foi adquirido no “armazém de víveres” da Panasqueira e
bifanas na brasa do talho poucochinho,
uma salada com todos e dois ou três garrafões com “tinto”. Estava um dia magnífico;
visibilidade boa, apenas com alguma neblina nos vales e barrocos mais húmidos
das encostas a norte. Sem binóculos (havia lá dinheiro para tal luxo!...), não
se distinguia Coimbra e dizia-se que era possível.
Detrás de serra…
Se, depois de ter vencido aqueles obstáculos
naturais, alguém aproava às portas de Cebola, pelos cabecinhos, pelo rodeio ou
pela porta de honra que era o saudoso passadiço, fosse de qualquer terra de
outro concelho, desde que supostamente ficasse abrangido por um arco imaginário
de mais ou menos cento e oitenta graus, calculado desde o sopé do Vale de
Cerdeira (porcim) e traçado, pelo Norte, até à portela, o povo, de ordinário,
logo os rotulava como sendo de “detrás de serra”. E com justificada razão,
porquanto quem viesse de outros quadrantes o seu destino seria as minas, logo
se deduzindo que vinha à procura de emprego e uma vez encontrado, que ao tempo
nem difícil era, por lá ficava, enquanto os que chegavam a Cebola, poucos, era
para exploração de negócios ou para trabalharem nas suas profissões, expectando,
como modo de vida honesta que a todos isso é legítimo, captar o dinheiro –
dinheiro vivo – trazido pelos que labutavam nas artes volframistas.
A princípio, o povo, não os olhava com
desconfiança, mantendo-se, contudo, atento, em estudo e avaliação contínua, e
só depois da habituação e sem atos que dessem motivo para reparo os acolhia sem
mais reservas. Pior para eles era a concorrência já instalada … mas, enfim,
dificuldades há sempre em qualquer atividade.
Uma coisa ressaltava logo nos primeiros
contactos, eram ainda de cultura e conhecimentos um tanto fossilizados, embora
pessoas de bem. Rara exceção era aquela
arsénica árvore, um indivíduo que depois de lá viver muitos anos, com família
constituída e o seu “arranjo” já consolidado, se passeava gritando: “eu, da
cinta pra cima é só veneno”. Como
olhássemos e não vislumbrássemos inimigo por perto, logo depreendíamos que era
unicamente para se afirmar e ser temido, mais que respeitado. E como o veneno
não sai da cinta para cima, a não ser que, por hipótese precária, saísse
dissimulado através da cera dos ouvidos, das lágrimas, do ranho ou da saliva
cuspida em gafanhotos planadores, deixou por aí, teria de deixar, o nosso
ilustre “homem de fora”, que veio de “detrás de serra” com certeza, atávicos
rebentos de terceira geração, logicamente saídos por baixo.
Algo reservados, lá se atreviam de quando em
vez a tomar um copito no Pedôa, ti Aurélio ou no Bagão … e a tentar conversar…
Mas as conversas nunca versavam assuntos que nós, os mais novos, pela vivência
nas minas (não me canso de dizê-lo), pelos livros, jornais e revistas que
líamos, pelos filmes que víamos na Panasqueira, pelo intercâmbio desportivo, pela
atividade na prestigiada filarmónica, as representações teatrais, as manifestações
lúdicas e de entretenimento, como campeonatos de sueca, damas, dominó e até da
malha e do “burro” (o “burro – quem não se lembra? – consistia em “fitar”
vinténs para cima de um caixote voltado, com a superfície dividida em retângulos
numerados de um a dez e um buraquito redondo na parte posterior, que tinha
pontuação bonificada com a introdução do vintém atirado da distância
regulamentar), pela participação em instituições e associações, em tertúlias
temáticas – a grande convivência, enfim, da gente de uma urbe a transbordar de
juventude.
Podíamos então falar, além dos problemas do
trabalho quotidiano e das atividades da nossa terra, dissecar e discutir sobre
os bestsellers da literatura, do rokc and roll e do seu rei Elvis Presley, dos
tenores Enrico Caruso e Mário Lanza, Alberto Ribeiro e Luís Piçarra, de Pedro
Infante, o monstro da canção mexicana e mundial, dos mais famosos temas
cinéfilos vistos nos melhores filmes bíblicos de Cecil B. de Mill, de aventuras
de amor, de pirataria e “capispada”
de Errol Flynn, as interpretações
de Burt Lancaster como em Trapézio, e Westerns com John Wayne e Gary Cooper, da
beleza de Ava Gardner, Gina Lollobrigida, Sophia Loren, B.B. e M.M., das lindas
pernas de Esther Williams e Kim Novak, falar do que no mundo se passava no
desporto automóvel, no ciclismo, futebol e em todos os outros eventos desde que
tivessem destaque nos média e na opinião pública… Diga-se, em abono da verdade,
que em certos núcleos sedimentares, havia ainda quem contasse episódios de
crendices, no entanto sempre com o
rótulo de coisas passadas antigamente, se
calhar antes da chegada do Cebola.
Ao invés, alguns vindos de “detrás de serra”,
ficavam como peixe na água se alguém, esporadicamente, com espírito trocista, abria um tópico sobre ciências ocultas, com almas do outro
mundo e almas penadas. Logo se emperigavam para entrar no paleio, e então era ouvir cobras e lagartos - verdadeiros tratados sobre apocalipses e
juízo final -
abracadabras, segredos, ocultações, premonições, revelações, presságios
e profecias; mistérios, falsos profetas, anticristos, trevas, sombras e assombrações; fantasmas,
delírios, enguiços, fetiches e fantasias; grutas, masmorras, morcegos, guinchos de
vampiros e uivos de lobisomens; cadáveres, estripadores, dentes de drácula e corvos a
grasnar; danças de bruxas, luas
vermelhas, tapetes, mantas e vassouras a voar; noites escuras, matas cerradas,
tenebrosas, portelas e cruzes de caminhos; espantalhos, mascotes, sapos e gatos
pretos; extermínios, facas, sangue e alguidares; sustos, estrafegos,
maus-olhados, mezinhas, mixórdias, raspa d’unhas e chinelos de trança; figas,
feitiços, juras, pragas, superstições, predições e maldições; iluminados,
espíritos malignos, curandeiros, videntes e feiticeiras; possessões,
reencarnações, exorcismos, curas e
benzeduras; blasfémias, sacrifícios e imolações; perjuros, abjuros e esconjuros; t’ arrenegos,
cruzes-canhoto, belzebus e mafarricos - vade-retro satanás, lagarto, lagarto!…
Um rol que não tinha fim…
No presente - naquele presente - o mais longe
que se ia, em Cebola, era que existia o medo, medo objetivo, de coisas
concretas, medo de perigos reais, como todos devem sentir, embora sem exageros
nem covardias.
Já o medo incorpóreo, aquele misticismo que
povoa e cria a demência nos fracos espíritos, e infelizmente comum onde a
iliteracia domina e a religião impera, está em todo o lado porque esse medo tem
sempre um hospedeiro – nunca está só porque está com quem o tem e vem com quem
o traz ou vai com quem o leva. Lá que gosta de boleia, gosta!...
Hoje e amanhã como ontem existiram, existem e
hão de existir fraquezas humanas, advindas pela hereditariedade ou pelas
vivências a que esses pacientes inconfessos foram ou estiveram sujeitos pela
educação obscurante e fanatismo religioso que lhes foi inculcado. Para essas
patologias e para os oportunistas iluminados em transes espirituais, já não há
curandeiros, bruxas, astrólogos e tarólogos, nem inspirações virtuosas de
ladeiras ou de covas que lhes valham … não chegarão horóscopos e planetas em
trânsito, nem as doze casas do Zodíaco elevadas à máxima potência.
Mas, felizmente, hoje em dia, existem prestigiados
técnicos de psicologia, psiquiatria e psicanálise – os únicos terapeutas que,
em vez da aplicação de mezinhas caseiras peregrinas e perigosas se continuadas, apenas com a
verdade científica os poderão ajudar nessas enfermidades mentais. Que façam,
pois, um esforço: que tratem a disfunção espiritual que parece não ter cura –
mas terá, no sítio e com as pessoas certas!
Foi então neste contexto – já lá vão mais de
sessenta anos – que, inopinadamente, houve um brado, um toque a rebate e grande alarido por causa de veemente jura a pés juntos de que um fantasma,
uma alma penada, atacara lá para os lados do corredouro.
E quem sofreu o insólito ataque, veio de
“detrás de serra”, vá lá saber-se donde. Era um homem alto, magro, ainda novo,
tido como “pessoa de bem”, com a arte de sapateiro ou alfaiate ou albardeiro,
já não me recordo bem, eu tinha uns onze doze anos, alugou uma casa e, com a
família e a oficina, instalou-se ali para os lados da cruz da rua. Um dia,
resolveu ir ao talho comprar uma dobrada (os bifes eram caros e não havia
negócio nem carteira que a eles chegasse). A sua mulher, à falta de feijão
branco, serviu-se de uns restos de grão-de-bico e, por não ter tempo para o
demolho que duraria pelo menos dois dias, arriscou cozinhá-los pensando que era
só deixá-los mais tempo a ferver. Deu para o almoço para toda a família e ainda
sobrou um bom prato que o nosso homem não resistindo ao cheiro ou à falta de alternativa
comeu ao jantar.
Jantou.
Como não houvesse muito trabalho nem televisão
para passar o tempo, foi deitar-se com o estômago já em ligeiros soluços ou
convulsões espasmódicas. Por lhe ter caído em cima dose igual àquela do almoço
ainda mal digerida, o estômago, num ato de boa vontade, tentou resolver o
problema pondo toda a sua química em alerta e pronta para uma emergência. Mas
não encontrando mecânica adequada para resolver a questão, pragmático e eficaz,
resolveu que o melhor era expulsar aquelas bolinhas malcozidas e intragáveis, e
vai daí atirou-as para o intestino delgado. Mas o intestino delgado, não tendo
condições para tratar esta matéria, rejeitou-a também enviando-a ao intestino
grosso. “Grão a grão enche a galinha o papo”, ou, melhor dizendo, grão a grão
se atesta a tripa! O homem ia-se contorcendo, voltava-se, esperneava, tentava
adormecer na esperança que aquilo passasse. Era a sério, começou a sentir as
tripas revoltadas, a fazer força para, também elas, expurgarem de uma vez a
intratável mixórdia.
Tinha de fazer alguma coisa… levantou-se,
enfiou umas calças que não abotoou e uns sapatos que não atacou e desatou a correr
para as hortas perto do casarão. Entrou por uma cancela que por sinal até
estava aberta, dobrou-se e zás … despejou em catadupa toda aquela
excrementícia. Com o alijar repentino da carga, os grãos ainda redondos,
inteiros, tal como tinham sido engolidos pela sofreguidão do lauto manjar,
espalharam-se quais bolas de berlinde ou zagalotes de caça às lebres em várias
direções.
Foi quando ouviu claramente ouvido o que lhe pareceu ser uma saudável e estrondosa
gargalhada saída de debaixo do rabo. O seu instinto logo lhe disse que se as
suas tripas lhe doíam com os corpos conhecidos (tripas e bucho de uma vaca
misturadas com grão), aquilo que ouvia, uma risada saída do chão só poderia ser
de coisa do outro mundo, certamente do fantasma de alguém que deixou a terra e
andava agora expiando pecados mal resolvidos. Sentiu tal arrepio que quase o
paralisou. E a sua mente já abalada com o sofrimento tripeiro, só pôde reagir fugindo,
porque, sem margem de erro, só riam assim almas do inferno perdidas na procura
de perdão. E, calças na mão, ainda ouvindo as terríveis gargalhadas, correu,
correu … tateou o passadiço, guiou-se pelos telhados para não esbarrar com as
paredes e, demolido pelo susto e pelo cansaço, lá chegou a casa.
Já não se deitou e contou à mulher; amanheceu,
foi tomar o mata-bicho, para o matar de facto, e narrou a odisseia a quem o
quis ouvir; a sua mulher foi logo à fonte e disse às que enchiam o regador, e
foi à primeira missa onde segredou a novidade. Daí a pouco toda a povoação,
incrédula, falava em almas do outro mundo, e o homem mais a sua família,
borrados de medo, em três dias desapareceram de Cebola, deixando vaga a casa e
o que fora o seu atelier.
Pouco tempo depois, ouvi contar uma história a
um moço, mais velho que eu uns quatro ou cinco anos, bastante pândego
aliás, que, regressando do trabalho, ele
e mais dois foram gamar umas peras, ou
maçãs ou figos ou as três coisas a uma horta que por ali havia, pertencente aos
Pereira ou aos Branco ou aos Alves, talvez aos Covita, com árvores carregadas
de boa fruta, eis senão quando, no meio
do ato do furto, entra alguém a correr pela cancela que eles só tiveram tempo
para deitar-se ao comprido.
Logo verificaram que o homem que entrou não era
o dono e o que queria era aliviar-se. Com tanto azar que o fez mesmo junto à
cara dele, que não bulia e continha a respiração para não ser reconhecido.
Contou ainda que, ao bater-lhe um grão no nariz, achou a isso graça e, pelo
caricato da situação, não se conteve sem soltar uma estridente gargalhada, e
mais se riu quando viu o homem arrancar atrapalhado, correndo e segurando as
calças como podia, deixando-os de vez em paz para acabarem o seu trabalhinho.
Retirámos porém a ilação de que homens de fora
nos querem impingir fantasmas, e não só os ignorantes como aquele de “detrás de
serra”, mas também outros mais sabidos, com a apresentação de trabalhos
literários travestidos de humanitárias roupagens, que, se o intruso e adotado
Jorge, um fantasma inglês, aceita por desconhecer e não compreender o
intrínseco sentir e caráter sadio deste povo, dado ser, também ele, um
forasteiro, um homem de fora, de de “detrás de serra”, embora de outra serra, o
Cebola, o legítimo e verdadeiro pai da terra, o pai biológico, jamais
aceitaria.
Constantino Braz Figueiredo