sábado, 1 de março de 2025

Coisas de meados do século passado

 

Coisas de meados do século passado

Tertúlias de aldeia


Alguns, vindos de recessos distantes da nossa aldeia, aqui já instalados e  com a vida assente, presenciavam, mas por natural timidez ou desconhecimento não ousavam participar nas pacíficas,  alegres e animadas discussões em que, amiúde,  os nativos de Cebola se envolviam, ficando, todavia,  como peixe na água se qualquer atrevido, brincalhão, em jocosa e subtil provocação, abria um tópico baseado no quinto império do sapateiro Bandarra, profeta beirão, sobre ocultismos com almas penadas ou errantes peregrinos do mundo das trevas que por aí, supostamente, vagueiam à deriva, invadindo intrusivamente os sonos de pacatos e serenos crentes e de outras despertas, mas ingénuas, frágeis e influenciáveis vontades. De pronto se empertigavam, tomando posição para entrar no paleio, e então, com entusiasmo, era vê-los narrar, à vez, como se fossem reais, adivinhações, enigmas e estórias macabras de danças demoníacas ao redor de grandes fogueiras em matas cerradas e tenebrosas, com bruxas de cabelo eriçado e vestes garridas, excitando auspiciosos e sedutores esqueletos de defuntos, uns armados de tochas com vistosas labaredas, manobrando cajados incandescentes, outros

Contavam de velas, velórios, carpideiras, caixões e enterros, que depois  se generalizavam em atávicos ou  empíricos conhecimentos sobre sinais dos tempos, apocalipses e juízo final − abracadabras, segredos, ocultações, premonições, revelações, presságios, agouros, predições e profecias; mistérios, falsos profetas, anticristos, sombras e assombrações; fantasmas, delírios, enguiços, fétiches e fantasias; grutas, catacumbas, masmorras, guinchos de vampiros e uivos de lobisomens; corvos a grasnar, cadáveres,  estripadores e extirpadores  com grandes e afiados caninos; luas vermelhas, tapetes, mantas e vassouras a voar com bruxas ao leme, acolitadas por encarapuçados chifrudos brandindo negras forquilhas;  portelas cruzadas por veredas com frescas pegadas  de monstros anteriores  ao tempo das cavernas;  espantalhos, talismãs, mascotes e amuletos; morcegos, sapos e gatos pretos; extermínios, facas, sangue e alguidares; sustos, estrafegos, maus-olhados, mezinhas, mixórdias, raspa d’unhas e chinelos de trança; espíritos malignos,  figas, feitiços, juras, pragas, superstições, predições e maldições; iluminados, espíritas, médiuns,  curandeiros, videntes, carochas e feiticeiras; possessões, reencarnações,  exorcismos, curas e benzeduras; blasfémias, sacrifícios e imolações; perjuros e esconjuros; t’arrenegos, cruzes-canhoto,  belzebus e mafarricos – lagarto-lagarto, vade-retro satanás!

Um rol sem fim…

Mas desta vez teve porque, cansados de tanta discurseira aberrativa e sem proveito, foi atalhada pelo mesmo atrevido cebolense (de Cebola), que aqui viu ensejo para fazer alarde da sua arrogada e conceituada erudição. 

− É estranho, no mínimo curioso – começou −, porque não falam de Fausto, um médico alemão, mago, alquimista e visionário que, segundo o livro com o mesmo nome, de Wolfgang von Goethe, chegou a fazer um pacto com o demónio, Mefistófeles, ao qual entregou a alma em troca de sucessos, riquezas e prazeres inenarráveis? Nem viram por lá o patife Rasputin, prestidigitador-charlatão de renome, conselheiro, amigo e frequentador dos paços da czarina Alexandra? Ou a heroína francesa, Joana D’Arc, queimada na fogueira pela santa inquisição, com o rótulo de bruxa? E da Farronca, uma lenda utilizada nalgumas terras do Norte como papa-crianças para as assustar? Podiam também falar dos cavaleiros da távola redonda, prosélitos  do rei Arthur e da sua  meia-irmã, Morgana, a terrível feiticeira dos bosques onde pernoitava Robim e passava Lancelote para os seus idílicos serões em Camelot; ou do profeta Zaratustra, sábio e mágico persa, criador da doutrina de Zoroastro, personagem de todas as literaturas de práticas éticas, que pregou e separou o Bem do Mal, cujos dogmas e preceitos religiosos foram mais tarde abeberados ou copiados pelo judaísmo e cristianismo; não esquecendo, ainda, o poderoso guerreiro das arábias, sultão Saladino, senhor de sumptuosos palácios das mil e uma noites,  das mil e uma lendas  e   sonhos onde, ao vulgo, só à própria imaginação era concedida entrada, sempre cheios de numerosa corte de aduladores e libertinos príncipes e princesas, sibilas, oráculos, pajens e  paladinos, odaliscas, fadas e favoritas, além da usual e indispensável caterva de convidados para faustosas festas, com orgias, caçadas e bacanais, aproveitadas para grandes negócios particulares e  de Estado entre ricos comerciantes das rotas da seda, os influentes xeques, califas e emires, e ainda com tempo, o grande Saladino, para comandar exércitos e vencer Ricardo Coração de Leão, malogrado comandante da armada cruzada, enviada pelo Papa à terra santa  para anexar Jerusalém. E onde andariam, nesse tempo, os imperadores e conquistadores europeus Alexandre, o magno macedónio/grego, na infância aluno de Aristóteles, e o franco Carlos Magno, neto de um prefeito de palácio, Pepino o Breve, com as suas incontáveis legiões de guerreiros e séquitos de profetas e conselheiros?

− Apenas observamos temas pela rama para conselho e ponderação – continuou – e  reiterar que, mesmo sem recurso a devaneios ficcionais ou à evocação de respeitáveis e saudosos defuntos, a fantasistas bruxarias e assombrações, mas lendo livros, muitos livros, sobretudo sobre a História dos Povos e Nações – está lá tudo –, poder-se-á a falar de seres que, a priori, parecem lendas fabulosas, símbolos ou astros, mas que sendo reais, tocáveis, com vida, foram ou são como qualquer de nós, a quem a existência e circunstâncias ocasionais deram estatuto invulgar, fazendo-os diferentes e especiais devido a prodigiosos atributos adquiridos muitas vezes anormalmente, pela sorte, pelo berço, educação, estudo, e, até, com ajuda da imaginação humana que, deslumbrada, os admirava, seguia e neles acreditava. Depois, o carisma natural, a fama, a aura e prestígio são como uma bola de neve, crescem à medida que as gerações vão transmitindo as suas espantosas e inacreditáveis obras, proezas ou façanhas alcançadas nas letras, artes, inventos, descobertas, realizações e conquistas, para gáudio, proveito e deleite dos povos ulteriores que as contarão, por sua vez, aos próprios descendentes, através da fala, da escrita e de todos os outros meios de comunicabilidade.

E terminou, acrescentando:

Aos livros de história, podem e devem juntar outros livros temáticos ou empolgantes romances, com páginas repletas de literatura fascinante escritas por grandes mestres, portugueses e de outras línguas bem traduzidas, sobre assuntos específicos, vidas e pessoas quase sempre ficcionadas, onde o interesse pelo enredo e encanto literário os prenderá até ao fim, servindo não só de prestimosa ajuda na ocupação de tempos lúdico-didáticos, mas também de enriquecimento cultural.

Sem palmas nem ovação, voltava o silêncio, e a retirada, de fininho, um a um, para as  tarefas habituais, seus ofícios, suas artes.

Constantino Braz Figueiredo

 

(trecho rearranjado,  faz parte do post

 “Detrás de Serra” – neste blogue)